Opinião
- 21 de maio de 2014
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Somos todos leitores. Da Bíblia e de outro livro qualquer
O cristianismo tem como um de seus pilares a interpretação das Escrituras. Ou melhor, a correta interpretação das Escrituras. A esse respeito, há discussões que cobrem os dois milênios da história cristã e que estão muito longe de serem solucionadas. Afinal, as muitas denominações e grupos religiosos originam-se, quase sempre, de interpretações específicas e diferenciadas que fazem com que divirjam entre si e se constituam de forma autônoma.
A interpretação, em geral, é construída a partir daqueles que detêm técnicas como a exegese, a hermenêutica e, claro, o domínio das línguas bíblicas. Tais ferramentas são usadas para a produção de comentários bíblicos e, na ponta final, para a organização de confissões de fé e tratados dogmáticos. A grande maioria do povo cristão, denominado “leigo” pelo clero especializado e detentor dos saberes interpretativos, fica ausente de tais labores.
Em outro contexto, que não o religioso, há também um interesse pelo significado dos textos. Em perspectiva multidisciplinar e tributária dos estudos da Nova História Cultural, surgiu nos anos 1980 um novo campo de pesquisa intitulado História da Leitura. Essa área de estudos abriga principalmente historiadores, sociólogos e teóricos da literatura que abordam a leitura como uma “prática cultural”. Nesse sentido, há grupos de leitores específicos, com protocolos específicos de leitura. Costuma-se chamá-los de “comunidades de leitores”.
Entre os constituidores desse novo campo de pesquisa recebem destaque os historiadores Roger Chartier, francês, e Robert Darnton, norte-americano. No Brasil podem ser identificados na Literatura, minha área de pesquisa, nomes como Márcia Abreu, professora da Unicamp, Marisa Lajolo, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e Regina Zilberman, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outros.
A História da Leitura não procura interpretar obras, sejam elas literárias ou não. Ela se empenha em compreender como comunidades de leitores constituem historicamente suas leituras. Sim, leituras, no plural, visto que o contexto existencial de tais comunidades, bem como sua formação educacional, seus valores e suas experiências determinam caminhos pelos quais a leitura produzirá sentidos no tempo e no espaço.
Talvez não seja necessário, mas convém salientar, que a História da Leitura encontra nos grupos religiosos um vasto e promissor campo de pesquisa. Afinal, eles são compostos a partir de identidades religiosas e teológicas, que poderíamos situar em perspectiva cultural, criando, assim, comunidades de leitores historicamente identificáveis.
Dessa forma, da perspectiva da História da Leitura, não existe “uma” leitura da Bíblia, assim como não existe “um” leitor da Bíblia ou de qualquer outro livro. Vemos isso na prática mediante o sem número de interpretações diferentes da Bíblia que estão ao nosso redor. E, do ponto de vista acadêmico, na multidão de comentários aos livros da Bíblia, que testemunham o que estamos falando.
Por isso mesmo os exegetas e teólogos – talvez principalmente eles – constituem comunidades de leitores com protocolos específicos de leitura determinados, principalmente, pela doutrina de suas igrejas, que se torna o filtro a partir do qual leem a Bíblia. Mas, alguém dirá: “Não é a Bíblia que gera a doutrina?” Sim e não. A doutrina certamente provém da Bíblia; mas, por outro lado, a Bíblia é lida a partir de determinadas tendências e inclinações, fruto da história e vivência do grupo específico que a lê, que produzem, assim, doutrinas específicas.
Por outro lado o povo - os leigos - nem sempre entende e aceita as interpretações do clero. Do ponto de vista da História da Leitura esse fato é compreensível e digno de pesquisa, uma vez que tais pessoas, embora participando de cultos e reuniões onde práticas interpretativas oficiais são colocadas em operação, na maior parte de seu tempo desenvolvem leituras a partir de referenciais de vida que estão muito além daqueles oferecidos por suas denominações.
No Brasil a História da Leitura tem se desenvolvido de forma consistente nos meios acadêmicos. Mas ainda são raros os trabalhos sobre religião e religiosidade a partir dessa teoria. Apenas aos poucos se começa a ver em algumas universidades de nosso país, seja em um departamento de Ciências da Religião, ou de História das Religiões, ou mesmo de Letras, pesquisas sobre religião a partir da História da Leitura. A boa notícia é que, embora poucos, tais estudos são promissores.
• João Leonel é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor em História da Leitura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas, SP, e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP.
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Em outro contexto, que não o religioso, há também um interesse pelo significado dos textos. Em perspectiva multidisciplinar e tributária dos estudos da Nova História Cultural, surgiu nos anos 1980 um novo campo de pesquisa intitulado História da Leitura. Essa área de estudos abriga principalmente historiadores, sociólogos e teóricos da literatura que abordam a leitura como uma “prática cultural”. Nesse sentido, há grupos de leitores específicos, com protocolos específicos de leitura. Costuma-se chamá-los de “comunidades de leitores”.
Entre os constituidores desse novo campo de pesquisa recebem destaque os historiadores Roger Chartier, francês, e Robert Darnton, norte-americano. No Brasil podem ser identificados na Literatura, minha área de pesquisa, nomes como Márcia Abreu, professora da Unicamp, Marisa Lajolo, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e Regina Zilberman, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, entre outros.
A História da Leitura não procura interpretar obras, sejam elas literárias ou não. Ela se empenha em compreender como comunidades de leitores constituem historicamente suas leituras. Sim, leituras, no plural, visto que o contexto existencial de tais comunidades, bem como sua formação educacional, seus valores e suas experiências determinam caminhos pelos quais a leitura produzirá sentidos no tempo e no espaço.
Talvez não seja necessário, mas convém salientar, que a História da Leitura encontra nos grupos religiosos um vasto e promissor campo de pesquisa. Afinal, eles são compostos a partir de identidades religiosas e teológicas, que poderíamos situar em perspectiva cultural, criando, assim, comunidades de leitores historicamente identificáveis.
Dessa forma, da perspectiva da História da Leitura, não existe “uma” leitura da Bíblia, assim como não existe “um” leitor da Bíblia ou de qualquer outro livro. Vemos isso na prática mediante o sem número de interpretações diferentes da Bíblia que estão ao nosso redor. E, do ponto de vista acadêmico, na multidão de comentários aos livros da Bíblia, que testemunham o que estamos falando.
Por isso mesmo os exegetas e teólogos – talvez principalmente eles – constituem comunidades de leitores com protocolos específicos de leitura determinados, principalmente, pela doutrina de suas igrejas, que se torna o filtro a partir do qual leem a Bíblia. Mas, alguém dirá: “Não é a Bíblia que gera a doutrina?” Sim e não. A doutrina certamente provém da Bíblia; mas, por outro lado, a Bíblia é lida a partir de determinadas tendências e inclinações, fruto da história e vivência do grupo específico que a lê, que produzem, assim, doutrinas específicas.
Por outro lado o povo - os leigos - nem sempre entende e aceita as interpretações do clero. Do ponto de vista da História da Leitura esse fato é compreensível e digno de pesquisa, uma vez que tais pessoas, embora participando de cultos e reuniões onde práticas interpretativas oficiais são colocadas em operação, na maior parte de seu tempo desenvolvem leituras a partir de referenciais de vida que estão muito além daqueles oferecidos por suas denominações.
No Brasil a História da Leitura tem se desenvolvido de forma consistente nos meios acadêmicos. Mas ainda são raros os trabalhos sobre religião e religiosidade a partir dessa teoria. Apenas aos poucos se começa a ver em algumas universidades de nosso país, seja em um departamento de Ciências da Religião, ou de História das Religiões, ou mesmo de Letras, pesquisas sobre religião a partir da História da Leitura. A boa notícia é que, embora poucos, tais estudos são promissores.
• João Leonel é graduado em Teologia e Letras. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutor em História da Leitura pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Professor no Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas, SP, e na graduação e pós-graduação em Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP.
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