Opinião
- 19 de maio de 2017
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Sobre pastéis de feira, signos e responsabilidades na família
Por Ricardo Wesley
Toda pessoa tem suas tradições, ou manias. Elas fazem parte de quem você é. São pequenos rituais que dão sentido e ordem à vida. Como comer pastel de palmito na feira, às terças-feiras. Foi ali que tudo aconteceu.
Concentrado para pingar não mais nem menos pimenta no pastel, me distraio com as exaltadas vozes das donas da barraca. Elas irrompem e encaixam conhecidos em determinadas atitudes e comportamentos conforme seus “signos”: “Ah, fulana é muito difícil.” “Também, é tourina”. “Gêmeos, duas caras!”.
Surpreso, talvez por minha ignorância zodiacal, escuto a descrição de cada pessoa, família ou amigos próximos, absolutamente confiados que se comportavam guiados por sua data de nascimento. Assim começaram a falar do “escorpião”. Sei pouco ou nada dos signos, mas sei que nasci em novembro. Logo descobri que no reino das frituras seus parentes “escorpianos” não gozavam de muito apreço. Mastiguei, relutei, mas não resisti:
“Olha, eu também nasci em novembro. Não sou desse jeito não. Ou nasci no dia errado, ou isso que vocês estão falando é bem furado.”
Quase se queimam os pastéis diante da súbita comoção. A chefe da banca tentou restabelecer a ordem no caos: “Vai comer aqui ou é pra levar?”. “Camarão com ou sem catupiry?”. “Então, pois é, nem todos são iguais, podem às vezes agir diferente, mas no fundo a sua personalidade é a mesma”, uma ênfase especial na palavra “personalidade”.
“Sai dois de carne para o jovem simpático aqui”. Era outro, não eu, o que me fez pensar se eu já não começava a involuntariamente confirmar suas teorias sobre os escorpianos. Como eu não parecia muito convencido, ela insistiu.
“Um amigo sempre me dizia que ele não combinava com o seu signo. Daí, já grande, conversando com a mãe, descobriu que na verdade havia nascido em um mês e registrado em outro. Tá vendo? Solta um de carne seca aqui para esse cabra...”.
Pensei em comentar que minha filha mais velha também era de novembro, que não nos encaixávamos no tal perfil, mas como sou homem de tradições, queria continuar comendo pastel sem riscos para minha saúde, resignei-me: “Então é isso, devo ter nascido no dia errado”.
O episódio se deu na semana em que me preparava para compartilhar uma mensagem na igreja sobre a santidade das relações dentro da família, utilizando um trecho do sermão do monte1 acerca das tentações, do adultério e do divórcio. Matutei nas possíveis conexões durante toda a semana, em como Jesus nos chama a assumir responsabilidades no caminho rumo à maturidade.
A santidade das relações
Jesus novamente desafia os fariseus, esses para quem as aparências eram o mais importante, que buscavam obediências visíveis a regras sem considerar o espírito e o propósito para o qual haviam sido pronunciadas. Para Jesus, a tragédia do pecado tem a ver não apenas com o ato exterior, com algo que se faz. O pecado também tem a ver com o que se busca, com o que se fantasia, com o que nos alimentamos e guardamos no coração. Essas carregam consigo o poder de prejudicar, oprimir e escravizar.
Em um texto paralelo2 o mestre faz referências ao ideal da relação entre homem e mulher em Gênesis. Jesus afirma que o ponto principal não é a preocupação consigo mesmo, nem com seus próprios desejos e interesses. Que a santidade do relacionamento se traduz em ir em direção ao outro e unir-se, com o outro, com a outra, em compromisso e lealdade. Assim Jesus diz claramente um não ao egoísmo, à indiferença e ao isolamento, enfatizando a responsabilidade mútua, a construção da comunicação e da intimidade, a força da comunhão e do pertencimento.
Jesus reconhece a tragédia do pecado
Para o mestre, o foco deve estar em como alguém vê o pecado. Isto é, o problema seria principalmente de atitude, sobre minha abordagem ao tema do erro e do engano. Contrário aos religiosos, para quem o assunto do pecado estava sempre ligado a aprender como dar a volta, como burlar e escapar de ser incriminado.
Há muitos equivalentes contemporâneos: aqueles sempre à procura das brechas na lei, tentando se defender dizendo que o fizeram “dentro da lei”, não importando quaisquer outras considerações, morais ou éticas. Para aqueles especialistas em agarrar-se à letra da lei, Jesus não diminui o problema, não o reduz a uma lista. Para ele o problema está no coração, na postura, em como vemos o mal e o pecado. Por isso as recomendações a seguir.
Manejando as tentações
Jesus diz para cuidar-nos. Primeiro, não alimentando o mal e reconhecendo limites. Algo mais importante ainda para as áreas cinzas da vida, essas onde não há clareza e onde mais facilmente nos enganamos e entramos em problemas.
Seguro que há situações, lugares e circunstâncias, com o potencial de causar danos a todos ou a quase todos. Mas há outras que causam danos a um e não a outros. Para quem enfrenta um perigo potencial, há que considerá-lo e agir com a devida seriedade, como Jesus nos adverte. O mais importante não é gerar uma lista de regras que sirva para todos, porque ela não iria funcionar. Mas sim ser capaz de tomar as medidas necessárias para evitar se colocar em uma situação de vulnerabilidade. Orar em todo o tempo, recordando que “orar é a capacidade de manter a sua mente desperta em meio da escuridão”3 e ter amigos de alma que te ajudam a prestar contas mutuamente.
Em segundo lugar, assumindo responsabilidades. Lembram-se do pastel? Interessante, ou triste, como muitas vezes atribuímos a responsabilidade a outros, pessoas ou circunstâncias, e não a nós mesmos. O que a conversa do pastel revela, ao tentar escondê-la, é o tema da responsabilidade humana, real, das pessoas que escolheram agir de certa forma, ou que foram imprudentes ou omissas em condições adversas.
Alguns caminhos tão simples para lidar com isso poderiam ser: deixar as desculpas; saber reconhecer seus limites e fraquezas; escolher bem e sempre assumir a responsabilidade por suas escolhas. Podemos e devemos pedir a ajuda de Deus e dos outros para crescer em santidade. Mas no final das contas dependerá das escolhas que cada um de nós fizer. Espero e oro que sejam sempre as melhores escolhas, e que o resultado seja uma vida melhor, mais santa e verdadeira, nas relações em família e com todos. Até mesmo na feira.
Notas:
1. Mateus 5.27-32.
2. Marcos 10.6-9.
3. “Diálogos con el Silencio”, Thomas Merton.
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Por que (ainda) nos casamos?
Jacó, a personificação da ovelha negra da família
Reimaginando a visão bíblica de casamento e sexo
Acontece nas Melhores Famílias [Carlos “Catito” Grzybowski e Jorge E. Maldonado]
Toda pessoa tem suas tradições, ou manias. Elas fazem parte de quem você é. São pequenos rituais que dão sentido e ordem à vida. Como comer pastel de palmito na feira, às terças-feiras. Foi ali que tudo aconteceu.
Concentrado para pingar não mais nem menos pimenta no pastel, me distraio com as exaltadas vozes das donas da barraca. Elas irrompem e encaixam conhecidos em determinadas atitudes e comportamentos conforme seus “signos”: “Ah, fulana é muito difícil.” “Também, é tourina”. “Gêmeos, duas caras!”.
Surpreso, talvez por minha ignorância zodiacal, escuto a descrição de cada pessoa, família ou amigos próximos, absolutamente confiados que se comportavam guiados por sua data de nascimento. Assim começaram a falar do “escorpião”. Sei pouco ou nada dos signos, mas sei que nasci em novembro. Logo descobri que no reino das frituras seus parentes “escorpianos” não gozavam de muito apreço. Mastiguei, relutei, mas não resisti:
“Olha, eu também nasci em novembro. Não sou desse jeito não. Ou nasci no dia errado, ou isso que vocês estão falando é bem furado.”
Quase se queimam os pastéis diante da súbita comoção. A chefe da banca tentou restabelecer a ordem no caos: “Vai comer aqui ou é pra levar?”. “Camarão com ou sem catupiry?”. “Então, pois é, nem todos são iguais, podem às vezes agir diferente, mas no fundo a sua personalidade é a mesma”, uma ênfase especial na palavra “personalidade”.
“Sai dois de carne para o jovem simpático aqui”. Era outro, não eu, o que me fez pensar se eu já não começava a involuntariamente confirmar suas teorias sobre os escorpianos. Como eu não parecia muito convencido, ela insistiu.
“Um amigo sempre me dizia que ele não combinava com o seu signo. Daí, já grande, conversando com a mãe, descobriu que na verdade havia nascido em um mês e registrado em outro. Tá vendo? Solta um de carne seca aqui para esse cabra...”.
Pensei em comentar que minha filha mais velha também era de novembro, que não nos encaixávamos no tal perfil, mas como sou homem de tradições, queria continuar comendo pastel sem riscos para minha saúde, resignei-me: “Então é isso, devo ter nascido no dia errado”.
O episódio se deu na semana em que me preparava para compartilhar uma mensagem na igreja sobre a santidade das relações dentro da família, utilizando um trecho do sermão do monte1 acerca das tentações, do adultério e do divórcio. Matutei nas possíveis conexões durante toda a semana, em como Jesus nos chama a assumir responsabilidades no caminho rumo à maturidade.
A santidade das relações
Jesus novamente desafia os fariseus, esses para quem as aparências eram o mais importante, que buscavam obediências visíveis a regras sem considerar o espírito e o propósito para o qual haviam sido pronunciadas. Para Jesus, a tragédia do pecado tem a ver não apenas com o ato exterior, com algo que se faz. O pecado também tem a ver com o que se busca, com o que se fantasia, com o que nos alimentamos e guardamos no coração. Essas carregam consigo o poder de prejudicar, oprimir e escravizar.
Em um texto paralelo2 o mestre faz referências ao ideal da relação entre homem e mulher em Gênesis. Jesus afirma que o ponto principal não é a preocupação consigo mesmo, nem com seus próprios desejos e interesses. Que a santidade do relacionamento se traduz em ir em direção ao outro e unir-se, com o outro, com a outra, em compromisso e lealdade. Assim Jesus diz claramente um não ao egoísmo, à indiferença e ao isolamento, enfatizando a responsabilidade mútua, a construção da comunicação e da intimidade, a força da comunhão e do pertencimento.
Jesus reconhece a tragédia do pecado
Para o mestre, o foco deve estar em como alguém vê o pecado. Isto é, o problema seria principalmente de atitude, sobre minha abordagem ao tema do erro e do engano. Contrário aos religiosos, para quem o assunto do pecado estava sempre ligado a aprender como dar a volta, como burlar e escapar de ser incriminado.
Há muitos equivalentes contemporâneos: aqueles sempre à procura das brechas na lei, tentando se defender dizendo que o fizeram “dentro da lei”, não importando quaisquer outras considerações, morais ou éticas. Para aqueles especialistas em agarrar-se à letra da lei, Jesus não diminui o problema, não o reduz a uma lista. Para ele o problema está no coração, na postura, em como vemos o mal e o pecado. Por isso as recomendações a seguir.
Manejando as tentações
Jesus diz para cuidar-nos. Primeiro, não alimentando o mal e reconhecendo limites. Algo mais importante ainda para as áreas cinzas da vida, essas onde não há clareza e onde mais facilmente nos enganamos e entramos em problemas.
Seguro que há situações, lugares e circunstâncias, com o potencial de causar danos a todos ou a quase todos. Mas há outras que causam danos a um e não a outros. Para quem enfrenta um perigo potencial, há que considerá-lo e agir com a devida seriedade, como Jesus nos adverte. O mais importante não é gerar uma lista de regras que sirva para todos, porque ela não iria funcionar. Mas sim ser capaz de tomar as medidas necessárias para evitar se colocar em uma situação de vulnerabilidade. Orar em todo o tempo, recordando que “orar é a capacidade de manter a sua mente desperta em meio da escuridão”3 e ter amigos de alma que te ajudam a prestar contas mutuamente.
Em segundo lugar, assumindo responsabilidades. Lembram-se do pastel? Interessante, ou triste, como muitas vezes atribuímos a responsabilidade a outros, pessoas ou circunstâncias, e não a nós mesmos. O que a conversa do pastel revela, ao tentar escondê-la, é o tema da responsabilidade humana, real, das pessoas que escolheram agir de certa forma, ou que foram imprudentes ou omissas em condições adversas.
Alguns caminhos tão simples para lidar com isso poderiam ser: deixar as desculpas; saber reconhecer seus limites e fraquezas; escolher bem e sempre assumir a responsabilidade por suas escolhas. Podemos e devemos pedir a ajuda de Deus e dos outros para crescer em santidade. Mas no final das contas dependerá das escolhas que cada um de nós fizer. Espero e oro que sejam sempre as melhores escolhas, e que o resultado seja uma vida melhor, mais santa e verdadeira, nas relações em família e com todos. Até mesmo na feira.
Notas:
1. Mateus 5.27-32.
2. Marcos 10.6-9.
3. “Diálogos con el Silencio”, Thomas Merton.
Leia mais
Por que (ainda) nos casamos?
Jacó, a personificação da ovelha negra da família
Reimaginando a visão bíblica de casamento e sexo
Acontece nas Melhores Famílias [Carlos “Catito” Grzybowski e Jorge E. Maldonado]
É casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo (SP), serve globalmente como secretário adjunto para o engajamento com as Escrituras na IFES (International Fellowship of Evangelical Students) e também apoia a equipe da IFES América Latina.
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