Opinião
- 06 de fevereiro de 2023
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Sobre os ombros de um gigante
Por Bruno Mori Porreca
Kuyper, Dooyeweerd e Bavinck não são mais apenas um grupo de nomes estranhos na boca de um grupo de crentes nerds. Saindo da obscuridade teológica eles foram pouco a pouco se popularizando no meio cristão. Ideias como “soberania das esferas”, “graça comum”, “antítese” e “cosmovisão” foram se popularizando cada vez mais. Se tornaram alvo de palestras e conferências. Mas o fato desses autores e dos termos por eles usados terem se popularizado não necessariamente implica que eles tenham sido devidamente lidos. E por mais que muitos adorem repetir o mote kuyperiano de que “não existe um único centímetro quadrado em toda esfera da criação ao qual Cristo não diga ‘É Meu!’”, quantos conhecem o contexto onde essa frase foi dita? No caso, na palestra de inauguração da Universidade Livre de Amsterdam?
Além do mais, no atual clima de polarização política no Brasil, não é raro você ver as ideias kuyperianas serem cooptadas por um discurso que as atrela a determinado movimento político. Como se Kuyper tivesse sido algum defensor da “direita” ou da “esquerda” como as conhecemos hoje. E como se os discípulos de Kuyper tivessem seguido estritamente as suas ideias. Mas a verdade é que o Neocalvinismo, como esse movimento de engajamento cultural cristão que ocorreu na Holanda do século 19 ficou conhecido, é muito mais refinado teologicamente e muito mais criterioso em seu envolvimento com os desafios culturais do que gostamos de admitir. Foi um movimento que gerou uma legítima tradição de pensamento, com seus próprios intelectuais e instituições de referência. Intelectuais esses que realizaram tanto a expansão do pensamento kuyperiano, quanto trouxeram as devidas autocríticas ao legado do pensador holandês.
Por isso foi com grande alegria que soube da publicação em português da obra Calvinismo Para uma Era Secular: Uma leitura contemporânea de Abraham Kuyper, publicado pela Editora Ultimato. O livro é uma coletânea de artigos que revisita a mais conhecida das obras de Kuyper: as Palestras Stone, conhecidas no Brasil simplesmente como “Calvinismo”. O livro é organizado pelo casal Jessica Joustra e Robert J. Joustra e traz em cada capítulo um autor diferente comentando um capítulo da obra original. Cada capítulo em geral segue uma estrutura básica: 1) O que Kuyper disse?, 2) Os que os kuyperianos fizeram? e 3) O que devemos fazer. Desse modo é possível ter uma perspectiva geral tanto do pensamento do próprio Kuyper, como dos desenvolvimentos posteriores dos neocalvinistas e os dilemas atuais que a tradição tem enfrentado. Todos os autores convidados estão, de certa forma, mergulhados na tradição neocalvinistas.
O primeiro capítulo nos brinda com uma reflexão de ninguém menos do que Richard Mouw sobre o uso que Kuyper faz do termo “sistema de vida” e da forma como o conceito se desenvolveu ao longo dos anos. Uma reflexão necessária que ajuda a nos situar numa definição mais precisa do que neocalvinistas entendem por “cosmovisão”, um conceito que se popularizou de tal forma que tem começado a se banalizar e ser tratado de forma injusta por seus detratores. A seguir temos a reflexão de James Eglinton sobre a compreensão kuyperiana de religião, principalmente no papel distintivo do calvinismo.
O capítulo de Jonathan Chaplin sobre “Kuyper e Política” é excepcional justamente por nos apresentar (se não me engano, pela primeira vez em português) vários desdobramentos da Tradição Kuyperiana na ciência política, como a idéia-chave de Pluralismo de Princípios e o papel distintivo do Governo na promoção de justiça pública. É aqui que podemos perceber o legado democrático da visão neocalvinista, principalmente na preocupação original de Kuyper com os mais pobres. E essa é uma visão que contrasta bastante com a propagada imagem de um “Kuyper Neoliberal” que prevalece em alguns círculos.
A seguir nós temos Deborah Haarsma comentando a visão de Kuyper sobre a relação entre cristianismo e ciência, principalmente no espinhoso tema do uso da Teoria Evolutiva Darwiniana, a qual Kuyper era extremamente crítico. A autora do capítulo, que é também diretora do Biologos, instituto fundado por Francis Collins e destinado a promover o diálogo entre fé e ciência, também traz as mudanças na concepção de ciência desde o século XIX até o século XXI, propondo um ligeiro ajuste na ênfase de Kuyper na antítese no campo científico. Esta deveria ser mantida no campo das cosmovisões que influenciam os cientistas e não necessariamente no campo das descobertas e achados da ciência.
Os dois capítulos posteriores, de Adrienne Dengerink Chaplin e de Bruce Ashford, tratam, respectivamente, da visão de Kuyper sobre a arte e sobre o futuro. O capítulo sobre arte é primoroso por mostrar o desenvolvimento da visão neocalvinista sobre arte em direções muito diferentes das previstas por Kuyper. É muito bom ver ideias de luminares, como os já conhecidos Hans Rookmaaker e Nicholas Wolterstorff, serem apresentadas a um público mais amplo. Mas minha satisfação foi ver os desenvolvimentos de Calvin Seerveld, um autor ainda desconhecido no Brasil, serem trazidos pela primeira vez para o português. Já o capítulo de Bruce Ashford nos traz o contraste entre a perspectiva neocalvinista e os dilemas da modernidade tardia, diante de problemáticas que Kuyper ainda não havia se deparado.
Uma menção especial precisa ser dada ao capítulo de Vincent Bacote, que lida com a sensível temática do racismo. É conhecido o impacto que as ideias de Kuyper tivera sobre o modelo segregacionista no apartheid sul-africano. Ali cristãos encontraram uma espécie de justificativa teológica para o próprio preconceito. Também tem se aumentado a consciência de vieses e preconceitos presentes nas falas do próprio Kuyper. Este, como filho do seu tempo, não esteve isento de erros ou de afirmações com forte teor colonialista e preconceituoso. Bacote confronta aqui o próprio Kuyper e convoca seus discípulos a realizarem a dolorosa tarefa de reavaliar a influência desses vieses na própria obra do teólogo.
Num apêndice final temos o historiador George Harinck nos trazendo um pormenorizado relato dos imprevistos envolvidos na publicação original das Palestras Stone e uma conclusão panorâmica escrita pela organizadora.
É uma obra acessível e de fácil leitura, que promete fornecer ao leitor brasileiro um olhar mais acurado do legado de Abraham Kuyper, tanto em suas limitações quanto em seu imenso potencial. Kuyper não era perfeito. Longe disso. Mas sua vida e obra tem aplicações preciosas para a realidade brasileira. Num momento histórico em que a sociedade brasileira e, especialmente, a igreja evangélica brasileira, se encontra tão ferida e dividida, tão tomada pela idolatria política e tão presa por ideologias, a proposta de um engajamento cristão genuíno, da política às artes e a ciência, a defesa de um pluralismo social democrático e um chamado ao serviço cristão na construção de uma sociedade mais justa, se torna um dever de todos aqueles que professam ser seguidores de Cristo.
- Bruno Mori Porreca é psicólogo, Pós-graduado em Intervenção ABA para Autismo e Deficiência Intelectual, mestrando em Filosofia pela UFPR, membro da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba.
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