Opinião
- 14 de fevereiro de 2020
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Saúde mental, um dos aspectos da missão
Por Esther Carrenho
A saúde mental não se relaciona à cura de uma enfermidade, mas indica a capacidade que uma pessoa tem de lidar com seus sentimentos, pensamentos e comportamento, e administrá-los mesmo nas situações desastrosas, de faltas e de perdas. É um requisito fundamental para que o ser humano desenvolva e coloque em prática todo o seu potencial. Atualmente, no Brasil, constata-se um aumento elevado – o maior do continente americano segundo a Organização Pan Americana de Saúde – de desequilíbrios que desembocam na depressão e ansiedade, levando seus portadores a serem incapazes de trabalhar e realizar suas obrigações cotidianas. Boa parte dessas pessoas recorre ao Estado em busca de apoio financeiro e médico, nesse último caso, estamos falando do Sistema Único de Saúde (SUS).[1]
A população cristã não está imune a tais problemas. Talvez, em alguns lugares, apresente até índices mais elevados, considerando que muitos líderes são insensíveis para com as necessidades emocionais de seu rebanho. Não temem afirmar que o estar deprimido, ou o sentir medo, é apenas falta de fé e oração. Com essas afirmações, a pessoa acumula sobre seu sofrimento a culpa por se sentir fraca e fracassada na caminhada cristã.
Da perspectiva bíblica, percebemos um prejuízo no equilíbrio emocional que se iniciou com a desobediência do ser humano no Éden. Quando Deus questiona o homem – “Onde está você?” (Gn 3.9) –, ele responde que viu que estava nu, ficou com medo, e se escondeu. Teve medo porque desobedeceu, não porque estava nu. A exposição da nudez traz vergonha, não medo. Ficam claros a desconexão para com os sentimentos e o bloqueio em expressar o que se sente a partir desse ocorrido. Porém, muitos fatores podem contribuir para o aumento da angústia, sofrimento emocional e incapacitação humana.
Três pontos da realidade brasileira que afetam a saúde mental e para os quais a igreja deve atentar
1. Família
Há pais que não sabem acolher e aceitar um filho, outros usam da violência física e verbal na educação dos filhos. Aumentou significativamente também o número de mulheres deixadas sós com seus filhos, pelo marido ou companheiro, nos últimos anos: saltou de 23% (1995) para 40% (2015) segundo o IBGE. Mais de 80% das crianças têm como responsável apenas uma mulher, e 5,5 milhões não têm o nome do pai no registro de nascimento.[2] É claro que isso não significa que todos esses filhos serão desajustados emocionalmente falando. Mas, com certeza, a vida ficaria um pouco mais leve se essas mulheres e esses filhos, que foram deixados, tivessem um espaço onde pudessem abrir o coração e expressar suas possíveis angústias. Essas mães poderiam falar sobre como, possivelmente, sentem-se sobrecarregadas por serem obrigadas a tentar fazer também o papel de pai na família. E, na Igreja, esses filhos que sofrem com tal falta na sua história de formação de vida, poderiam encontrar pessoas saudáveis psicologicamente falando, diferente dos genitores, como referência. Talvez por isso Cristo tenha ampliado o conceito de família, transferindo para a comunidade religiosa a possibilidade de novos irmãos e novos pais. “Minha família é quem faz a vontade do meu Pai”, disse (Mt 12.48-50).
2. Situação socioeconômica
A distribuição de renda no Brasil é altamente injusta. Enquanto alguns vivem confortavelmente, sem a necessidade de fazer qualquer planejamento financeiro para gastos com necessidades primárias, boa parte da população brasileira luta e não consegue ter suas necessidades básicas supridas satisfatoriamente. Muitos deles trabalham duro, outros buscam com afinco uma oportunidade, mas não conseguem ser inseridos no sistema. A frustração de lutar tanto e conseguir tão pouco (ou não conseguir) vai desfazendo sonhos e projetos, e joga a pessoa numa situação, característica da depressão, de morte em vida, diz Virginia Moreira.[3] Muitos casos de depressão nada mais são que o esgotamento total do ânimo da pessoa.
3. Tragédias e catástrofes
A Igreja também deveria compadecer-se e agir em prol daqueles que perderam muito, ou tudo, em uma tragédia ou catástrofe, outra fonte de aflição do coração humano. Em nosso País, furações e terremotos não são comuns, mas muitos brasileiros são vítimas de enchentes, secas, incêndios, desmoronamentos de barragens… Todos os anos, somos sabedores de centenas de famílias em todos os Estados brasileiros acampadas em algum lugar improvisado. Incluo aqui ainda os imigrantes e refugiados – o descolamento de pessoas em função de guerras ou em busca de melhores condições de vida aumenta em todo o mundo, e o Brasil tem recebido sírios, haitianos, venezuelanos e pessoas de muitos outros países.
Saúde mental como um dos aspectos da missão
A Igreja engajada na missão de Deus deve não só repartir o que tem com aqueles que aparecem, praticamente, apenas com a roupa do corpo. Ela deve olhar para as dores da alma comuns dos que perderam, até mesmo, suas referências históricas de vida. Deus quer que seus seguidores sejam também portadores e proclamadores de uma boa saúde mental.
Quando olhamos para a visão do Martureo, por exemplo – cristãos brasileiros bem preparados sendo testemunhas do Senhor Jesus e de todo seu ensinamento em todos os povos da terra e em todas as esferas da sociedade – fica claro que devemos incluir a preocupação, o olhar, a aceitação e a ajuda para com aqueles que sofrem angústias emocionais. O Movimento de Lausanne identificou, no Compromisso da Cidade do Cabo, mais de 30 desafios missionais urgentes, criando assim uma rede temática, uma espécie de mapa para orientar a colaboração da igreja hoje no mundo com a missão de Deus. Um dos tópicos é, justamente, Saúde e Trauma Mental.
Deus cuidou dos seus filhos emocionalmente falando e nós, como seus imitadores, não temos a opção de não cuidar escutando, acolhendo e ajudando a jogar luz nas trevas da aflição da alma.
Tire primeiro a viga
Se somos chamados a promover saúde mental, somos também convocados a rever, em nós mesmos, as mazelas e marcas que empobrecem o desempenho na vida e desqualificam o trabalho de ajudar. No chamado sermão da montanha, Cristo desqualificou aquele que “repara no cisco que está no olho do seu irmão, e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho. […] Tire primeiro a viga” (Mt 7.3-5).
Ao mesmo tempo que somos chamados a ajudar de forma integral, somos também chamados a cuidar de nossa própria saúde emocional para ter melhores condições de ajudar o outro. Ziel Machado, pastor e vice-reitor do Seminário Teológico Servo de Cristo, afirmou: “Confrontado por meus próprios limites, tomei a decisão de buscar apoio emocional”.
Sei que muitos cristãos ainda apregoam que a psicologia é desnecessária. Porém, muita verdade pode vir também por meio da ciência. Assim, entendo que a psicologia pode ser uma ferramenta preciosa, que nos oferece recursos que contribuem para a conquista do equilíbrio emocional. Assim, os cristãos – em especial os que estão em posição de liderança –, ao atentar para o desenvolvimento do bem-estar próprio, tornam-se capazes de ajudar de forma mais eficiente as pessoas necessitadas, encaminhado, inclusive, pessoas com comportamento disfuncional para atendimento médico e psicológico quando necessário. Mas há muito o que pode ser feito antes da ajuda dos profissionais em saúde mental (e até mesmo sem ela). Gladys Mwiti e Bradford Smith, em artigo publicado pelo Movimento de Lausanne, afirmam: “Temos identificado cada vez mais abordagens baseadas na comunidade como essenciais para tratarmos as necessidades globais; deste ponto de vista, as igrejas – comunidades de fé onde as pessoas podem encontrar segurança e ajuda em momentos de necessidade – podem ter um papel importante”.[4]
Penso mesmo que a psicologia, que tem menos de 200 anos de existência, surgiu porque os cristãos falharam em reconhecer e abrir espaço para os aflitos, seja lá qual for a causa.
Saúde mental e relacionamentos
Em geral, tanto a falta como a restauração da saúde mental giram em torno de relacionamentos. O fruto do Espírito mencionado na carta de Gálatas, que apresenta nove características – amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio –, só pode ser desenvolvido na convivência com outros. As comunidades que tiverem espaço para convivência (onde há desenvolvimento das características citadas, todas elas carregadas de compaixão) com certeza estarão promovendo saúde emocional.
As necessidades primárias de qualquer ser humano são aceitação, amor, aprovação e inclusão. Quando essas necessidades não são supridas, principalmente nos primeiros anos de vida, por uma ou outra razão a pessoa poderá desenvolver, no intuito de se proteger e sobreviver no deserto do desamparo afetivo, o que é comumente conhecido na psicologia como defesas. Na vida adulta, as defesas podem aparecer como comportamentos inadequados que poderão ferir a própria pessoa e também aqueles com quem ela se relaciona. Essas ofensas, na verdade, apontam para a consequência da falta de acolhimento e inclusão, tão necessários na vida. Tal lacuna pode desencadear um desajuste emocional que detona comportamentos que podem ser gritos de pedido de socorro. Ouvi de Gilberto Safra, psicólogo e professor da Universidade de São Paulo, em palestra proferida no congresso do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), em maio de 2005, que as faltas nos anos de formação podem bloquear uma pessoa em um determinado estágio. Mesmo que a idade cronológica avance, a maturação emocional fica estacionada, mas o profissional amoroso com capacidade de escuta empática pode em muito ajudar a desfazer o bloqueio.
No meio cristão evangélico, nota-se que a chamada doença emocional ainda tem muito domínio tanto nos líderes como nos liderados. Já há um avanço para a melhora muito grande. Atualmente, tenho visto alguns pastores e missionários buscando ajuda em psicoterapia, o que era impossível alguns anos atrás.
Há também denominações se preocupando com sua liderança. Fui convidada pela Igreja Evangélica Holiness do Brasil a ministrar um treinamento para seus pastores e líderes. A denominação fez o possível para que todos pudessem participar do programa, que se estendeu por doze anos, com cursos que tinham a duração de dois anos e visavam, além de treinar, ajudar cada líder a ver melhor a si mesmo. Muitas igrejas têm cedido espaço para o trabalho Celebrando a Recuperação, com reuniões onde há escuta e acolhimento dos possíveis sofrimentos e angústias dos participantes. A Igreja Presbiteriana Independente do Ipiranga, preocupada em promover saúde mental entre seus frequentadores, programou para o mês de novembro de 2019 vários encontros com profissionais da área de saúde mental.
Aqui estão alguns exemplos de movimentos necessários (e sei que deve haver outros), mas ainda é pouco. Podemos ampliar mais para que os seguidores de Cristo Jesus possam ter um equilíbrio saudável entre razão, sentimentos e ação. Vale citar que o CPPC disponibiliza ajuda aos líderes de igrejas e comunidades no campo da saúde mental.
Saúde mental e espiritualidade
Sob a ótica da psicologia, a vida de Moisés é rica em exemplos. Primeiro porque, acredito eu, a reação explosiva que o levou a cometer um assassinato indica que ele era mal resolvido com a questão da injustiça. Moisés havia sido vítima de um sistema cruel e injusto, que o obrigou a ter de lidar com a dura realidade de ter duas mães, duas culturas e dois contextos. Aos 40 anos, ele resolve conhecer suas origens e, ao se deparar com um egípcio agredindo injustamente um conterrâneo, não suportou. Explodiu violentamente e matou o agressor. Estou certa que os planos de Deus nunca são frustrados, como diz Jó, mas, como sei que Moisés era o escolhido para ser o libertador de Israel, acho que ele começou do jeito errado. E me pergunto se ele não atrasou a libertação dos israelitas em 40 anos. Seja lá qual for a resposta, o certo é que Deus foi amoroso cuidando e preparando Moisés para a tarefa importantíssima de liderar o povo na libertação do Egito, a ponto de, em Números 12.3, encontramos o registro de que Moisés era paciente, mais que qualquer outra pessoa na terra.
Depois, já vivendo no deserto, vemos Moisés sendo chamado por Deus para voltar ao Egito e ser o condutor do povo. Uma das desculpas que Moisés dá é não sabe falar (talvez por ter sido forçado a silenciar nos três primeiros meses da sua vida). Mas Deus, mesmo ficando irado, aceita a desculpa de Moisés e nomeia Arão para ser um tipo de voz para Moisés (Ex 4).
Outra situação onde percebemos claramente Deus lidando com a falta de equilíbrio de Moisés está registrada em Números 11, quando ele se vê numa profunda estafa. Moisés reclama com Deus, dizendo que está sendo tratado com crueldade, que não gerou todo aquele povo para carregá-los no colo, e que prefere morrer. Nos dias atuais, o diagnóstico seria bornout, que é um esgotamento mental e físico oriundo do excesso de trabalho. Novamente, Deus respeita a limitação de Moisés, e indica para ele o caminho para aliviar seu estresse. Pede a indicação de setenta homens que seriam seus auxiliares, poupando assim a saúde emocional de Moisés.
No 1º livro dos Reis, temos um bom exemplo de como Deus tratou Elias, que entrou numa depressão considerada grave. Fugiu, isolou-se, apresentou um espírito crítico, desejou morrer, ficou inapetente e dormia exageradamente, até que Deus lhe manda comida por meio de um anjo que o convida a caminhar até o monte Horebe. Ali, Deus se manifesta em uma brisa suave, e estabelece uma conversa amorosa, ajudando Elias a enxergar a realidade, que em geral fica distorcida na ótica do deprimido. Em seguida, motiva-o, revelando para ele funções importantes que dependiam dele.
Kepler, nos comentários da Bíblia de Estudo Conselheira, alerta-nos: “Como Elias é um homem sujeito aos mesmos sentimentos que nós, é possível que você também já tenha sentido vontade de morrer”.[5] Deus tratou amorosamente Elias, providenciando comida, motivando-o e, com ternura, trazendo-o de volta à realidade. Afirmou que ele não estava sozinho, e que tinha dois trabalhos muito importante para realizar.
Em 2 Reis 20, o rei Ezequias, que estava vivendo situações de pressão e tensões terríveis, adoece, e recebe do profeta Isaías o veredito de que morreria. Ezequias ora, lembrando sua fidelidade para com Deus, e chora amargamente, diz o texto sagrado. Isaías, então, retorna, e diz que a oração dele foi ouvida; as lágrimas, vistas; e a vida dele, prolongada. A maioria de nós tem dificuldades com o choro, principalmente se for um homem. Mas o profeta registra: Deus viu suas lágrimas!
Poderia citar ainda mais exemplos no Velho Testamento que mostram Deus tratando e considerando o lado emocional de seus filhos.
Cristo e a expressão de sentimentos
Cristo Jesus afirmou: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14.9). Sendo assim, podemos ter em Cristo o modelo de como lidar com os sentimentos.
Começo pontuando que Jesus manifestou raiva em três situações:[6] (1) na cura do homem que tinha uma mão atrofiada (Mc 3.5); (2) no evento em que os discípulos tentaram impedir que os pais trouxessem as crianças para serem abençoadas por ele (Mc 10.14); e (3) no episódio da expulsão dos vendedores do templo, onde havia uma exploração visível dos menos afortunados socialmente falando (Jo 2.13-25 – apesar de o texto não afirmar que Jesus estava indignado, seu comportamento e atitude mostram o quanto ele ficou enraivecido ao presenciar o que acontecia no templo judaico).
O segundo sentimento que Cristo expressou relatado nos evangelhos foi a tristeza. No Getsêmani, um pouco antes da prisão pelos seguranças do sinédrio, Cristo confessa aos seus amigos mais íntimos dentre os discípulos: “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal” (Mc 14.34). Em outra situação, na morte do amigo Lázaro, Cristo expressa sua tristeza por meio do choro (Jo 11). Diante da perda pela morte, ele se identifica com as irmãs enlutadas e chora. Então, como humanos, temos muito a aprender com Cristo Jesus. Não só sobre como lidar com nossas próprias emoções, mas também como ajudarmos outros a crescer emocionalmente.
• Esther Carrenho é psicóloga clínica, colunista da revista Cristianismo Hoje e autora dos livros Ressurreição interior, Raiva – seu bem, seu mal e Depressão: tem luz no fim do túnel. Estudou Teologia da Faculdade Teológica Batista de São Paulo, é casada, tem três filhos e sete netos.
> Este artigo foi originalmente publicado no site do Centro de Reflexão Missiológica Martureo. Reproduzido com permissão.
NOTAS
- https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/05/saude-mental-brasileira-sofre-de-instabilidade.shtml
- https://www.huffpostbrasil.com/2018/09/18/7-numeros-da-realidade-das-mulheres-que-criam-filhos-sozinhas-no-brasil_a_23531388/
- Moreira, Virginia & Sloan, Tod. Personalidade, ideologia e psicopatologia crítica. São Paulo: Escuta, 2002, p. 203-205.
- Mwiti, Gladys & Smith, Bradford. “Voltando a atenção da igreja à saúde mental: restaurando os contritos de coração” em Análise Global de Lausanne, Vol. 7, Ed. 6, 2018. Disponível em: https://www.lausanne.org/pt-br/recursos-multimidia-pt-br/agl-pt-br/2018-11-pt-br/voltando-a-atencao-da-igreja-a-saude-mental.
- Kepler, Karl Heinz e vários autores. Bíblia de Estudo Conselheira. Barueri: SBB, 2011. p. 581.
- Para quem quer se aprofundar, recomendo meu livro. Carrenho, Esther. Raiva – seu bem, seu mal. São Paulo: Editora Vida, 2005.
Algumas vezes, os cristãos parecem pessoas “perfeitas”, sem problemas, especialmente no que diz respeito à saúde mental e emocional. Mas e aqueles que, mesmo se entregando a Cristo e confiando nele, sentem que a sua vida é um desastre?
Um Novo Dia é um livro sério e cheio de ternura, bíblico e também prático sobre saúde emocional e vida cristã.
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