Opinião
- 29 de outubro de 2018
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Sansão – a história dramática de um herói da fé
Por Carlos Caldas
O filme Sansão (Bruce McDonald, 2018) é mais um longa da Pure Fix, a produtora de filmes cristãos evangélicos, responsável por, entre outros, Deus não está morto e Deus não está morto 2. A narrativa de Sansão curiosamente ocupa quatro capítulos inteiros no livro de Juízes (13-16) – muita coisa, se levarmos em conta que há um juiz mencionado em apenas uma única linha, o misterioso Sangar (Jz 3.31). A outro, chamado Tolá, o narrador desconhecido do livro de Juízes dedica dois versículos (Jz 10.1-2). Considerando o proverbial aspecto sucinto das narrativas da Bíblia Hebraica (muito bem explorado pelo crítico literário Erich Auerbach em seu texto “A cicatriz de Ulisses”) chega a ser surpreendente que Sansão ocupe tanto espaço no livro de Juízes.
Outro elemento interessante a ser observado é que, na Bíblia, Sansão, literariamente falando, é quem mais se aproxima do conceito clássico de herói. Não estou dizendo que a narrativa bíblica de Sansão apresente os doze passos da “jornada do herói”, a famosa categoria proposta por Joseph Campbell em “O herói de mil faces”. Todavia nesta narrativa encontram-se alguns elementos que são encontrados em relatos de heróis de diversas tradições da antiguidade, como o Hércules dos gregos, o Beowulf dos escandinavos ou o Cuchulain dos celtas. Mas evidentemente há também diferenças notáveis entre o relato bíblico e os relatos destas outras tradições antigas. O relato bíblico é de uma sobriedade desconcertante, absolutamente ausente de relatos como os citados, e outros da mesmo natureza. Argumentado de maneira inversa, falta ao relato bíblico o elemento de fantasia, que é a base de relatos como os citados acima.
Por isso não é de se admirar que o drama de Sansão seja, vez ou outra, transportado para as telas do cinema. A primeira vez foi a versão clássica, dirigida pelo grande Cecil B. DeMille, de 1949, com Victor Mature no papel título. Em 1963 surgiu uma produção italiana absolutamente fantasiosa, um autêntico “épico spaghetti”, que, assim como os “spaghetti westerns” eram extremamente populares nas décadas de 1960 e 1970: Hércules, Sansão e Ulisses. Neste filme os heróis lutam uns contra os outros, e lutam juntos contra os filisteus, que queriam invadir a Grécia, além de lutar contra um monstro do mar. Mais recentemente a série A Bíblia (veiculada no Brasil pela Record) apresentou Sansão em um episódio, com uma novidade: pela primeira vez um ator negro – Nonso Anozie, inglês de origem nigeriana – interpretou o juiz cabeludo e fortão. É praticamente zero a chance que o Sansão histórico tenha sido negro.
Mas voltando a atenção para o filme de Bruce McDonald: a produção é bastante simples, e os efeitos especiais são muito amadores. A cena da luta de Sansão com o leão chega a ser risível, de tão malfeita. O elenco conta com pelo menos dois atores veteranos: Billy Zane, que faz o Rei Balek dos filisteus, e o holandês Rutger Hauer como Manoá, o pai de Sansão. O diretor se permitiu algumas liberdades, como introduzir na trama Calebe, um irmão de Sansão. Ao mesmo tempo, o diretor optou por ignorar que no relato bíblico não há um rei filisteu, mas cinco: os reis da liga da pentápole filisteia, formada por Gate (de onde mais tarde virá Golias), Acrom, Gaza, Asdode e Ascalom.
O Sansão de McDonald, interpretado pelo ator inglês Taylor James (ator muito limitado, diga-se de passagem) preserva as características do Sansão bíblico: teimoso, mulherengo, mas com uma fé sincera. O roteiro do filme tenta “moralizar” Sansão de uma maneira que a própria Bíblia não faz: o texto bíblico não tem constrangimento em dizer que Sansão em Gaza vai a um prostíbulo (Jz 16.1-3), e lá fica por horas. O texto não precisa dizer o que ele foi fazer lá, porque pressupõe que os leitores entenderão. Todavia, o filme apresenta Sansão entrando no prostíbulo para se esconder de filisteus que o perseguiam.
O diretor McDonald captou que o Sansão bíblico é um personagem eminentemente dramático, e seu filme tenta apresentar este aspecto. David Grossman, escritor israelense, em seu livro Mel de leão (São Paulo: Companhia das Letras, 2006) apresenta uma leitura do relato bíblico de Sansão na perspectiva da psicanálise. Grossman mostra como a narrativa de Sansão tem características de uma tragédia clássica. Sansão é o gigante ingênuo, sincero em sua fé (tanto assim é que Sansão é citado na galeria dos heróis da fé, em Hb 11.32), mas facilmente manipulável, um líder que perdeu uma oportunidade de liderar seu povo contra os filisteus, como antes dele fez Josué, liderando o povo contra vários grupos de cananeus, e como depois dele fez Davi contra vários inimigos, incluindo os mesmos filisteus. Grossman observa como Sansão é um homem com crise de identidade: um hebreu que está sempre entre os filisteus, que não está à vontade entre seu povo, e quer ser aceito pelos que o rejeitam e o desprezam. Talvez Bruce McDonald teria feito um filme mais denso e mais profundo se tivesse lido o livro de Grossman.
Enfim, a despeito das limitações do filme, que está longe de ser uma super produção, ele vale por lembrar que o Eterno nos usa a despeito das nossas contradições e incoerências, e que a graça é misteriosa, escandalosa e generosa.
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O filme Sansão (Bruce McDonald, 2018) é mais um longa da Pure Fix, a produtora de filmes cristãos evangélicos, responsável por, entre outros, Deus não está morto e Deus não está morto 2. A narrativa de Sansão curiosamente ocupa quatro capítulos inteiros no livro de Juízes (13-16) – muita coisa, se levarmos em conta que há um juiz mencionado em apenas uma única linha, o misterioso Sangar (Jz 3.31). A outro, chamado Tolá, o narrador desconhecido do livro de Juízes dedica dois versículos (Jz 10.1-2). Considerando o proverbial aspecto sucinto das narrativas da Bíblia Hebraica (muito bem explorado pelo crítico literário Erich Auerbach em seu texto “A cicatriz de Ulisses”) chega a ser surpreendente que Sansão ocupe tanto espaço no livro de Juízes.
Outro elemento interessante a ser observado é que, na Bíblia, Sansão, literariamente falando, é quem mais se aproxima do conceito clássico de herói. Não estou dizendo que a narrativa bíblica de Sansão apresente os doze passos da “jornada do herói”, a famosa categoria proposta por Joseph Campbell em “O herói de mil faces”. Todavia nesta narrativa encontram-se alguns elementos que são encontrados em relatos de heróis de diversas tradições da antiguidade, como o Hércules dos gregos, o Beowulf dos escandinavos ou o Cuchulain dos celtas. Mas evidentemente há também diferenças notáveis entre o relato bíblico e os relatos destas outras tradições antigas. O relato bíblico é de uma sobriedade desconcertante, absolutamente ausente de relatos como os citados, e outros da mesmo natureza. Argumentado de maneira inversa, falta ao relato bíblico o elemento de fantasia, que é a base de relatos como os citados acima.
Por isso não é de se admirar que o drama de Sansão seja, vez ou outra, transportado para as telas do cinema. A primeira vez foi a versão clássica, dirigida pelo grande Cecil B. DeMille, de 1949, com Victor Mature no papel título. Em 1963 surgiu uma produção italiana absolutamente fantasiosa, um autêntico “épico spaghetti”, que, assim como os “spaghetti westerns” eram extremamente populares nas décadas de 1960 e 1970: Hércules, Sansão e Ulisses. Neste filme os heróis lutam uns contra os outros, e lutam juntos contra os filisteus, que queriam invadir a Grécia, além de lutar contra um monstro do mar. Mais recentemente a série A Bíblia (veiculada no Brasil pela Record) apresentou Sansão em um episódio, com uma novidade: pela primeira vez um ator negro – Nonso Anozie, inglês de origem nigeriana – interpretou o juiz cabeludo e fortão. É praticamente zero a chance que o Sansão histórico tenha sido negro.
Mas voltando a atenção para o filme de Bruce McDonald: a produção é bastante simples, e os efeitos especiais são muito amadores. A cena da luta de Sansão com o leão chega a ser risível, de tão malfeita. O elenco conta com pelo menos dois atores veteranos: Billy Zane, que faz o Rei Balek dos filisteus, e o holandês Rutger Hauer como Manoá, o pai de Sansão. O diretor se permitiu algumas liberdades, como introduzir na trama Calebe, um irmão de Sansão. Ao mesmo tempo, o diretor optou por ignorar que no relato bíblico não há um rei filisteu, mas cinco: os reis da liga da pentápole filisteia, formada por Gate (de onde mais tarde virá Golias), Acrom, Gaza, Asdode e Ascalom.
O Sansão de McDonald, interpretado pelo ator inglês Taylor James (ator muito limitado, diga-se de passagem) preserva as características do Sansão bíblico: teimoso, mulherengo, mas com uma fé sincera. O roteiro do filme tenta “moralizar” Sansão de uma maneira que a própria Bíblia não faz: o texto bíblico não tem constrangimento em dizer que Sansão em Gaza vai a um prostíbulo (Jz 16.1-3), e lá fica por horas. O texto não precisa dizer o que ele foi fazer lá, porque pressupõe que os leitores entenderão. Todavia, o filme apresenta Sansão entrando no prostíbulo para se esconder de filisteus que o perseguiam.
O diretor McDonald captou que o Sansão bíblico é um personagem eminentemente dramático, e seu filme tenta apresentar este aspecto. David Grossman, escritor israelense, em seu livro Mel de leão (São Paulo: Companhia das Letras, 2006) apresenta uma leitura do relato bíblico de Sansão na perspectiva da psicanálise. Grossman mostra como a narrativa de Sansão tem características de uma tragédia clássica. Sansão é o gigante ingênuo, sincero em sua fé (tanto assim é que Sansão é citado na galeria dos heróis da fé, em Hb 11.32), mas facilmente manipulável, um líder que perdeu uma oportunidade de liderar seu povo contra os filisteus, como antes dele fez Josué, liderando o povo contra vários grupos de cananeus, e como depois dele fez Davi contra vários inimigos, incluindo os mesmos filisteus. Grossman observa como Sansão é um homem com crise de identidade: um hebreu que está sempre entre os filisteus, que não está à vontade entre seu povo, e quer ser aceito pelos que o rejeitam e o desprezam. Talvez Bruce McDonald teria feito um filme mais denso e mais profundo se tivesse lido o livro de Grossman.
Enfim, a despeito das limitações do filme, que está longe de ser uma super produção, ele vale por lembrar que o Eterno nos usa a despeito das nossas contradições e incoerências, e que a graça é misteriosa, escandalosa e generosa.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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