Opinião
- 06 de setembro de 2021
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Sancho Pança longe dos palácios
Por Cézar Feitoza
Em 10 de agosto, seis horas após tanques de guerra desfilarem na Esplanada dos Ministérios, encontrei-me com quatro senadores na antessala da CPI da Covid. Havia governistas e oposicionistas, todos tomando café ou suco de laranja e comendo pães de queijo. Um deles, sentado no sofá, apontava para a televisão, que retransmitia o passeio dos blindados da Marinha. “Isto é uma loucura”, disse o senador. E, na sequência, emendou frases em crítica à pressa com que a Câmara dos Deputados se preparava para votar a PEC do voto impresso naquele mesmo dia.
Era unânime o entendimento dos governistas e oposicionistas que o desfile dos blindados abria a possibilidade de péssimas interpretações. No ápice da pior crise entre os Poderes desde a redemocratização, o ato era visto como uma demonstração de poder.
“Na minha cidade tem gente passando fome”, foi mais ou menos o que o senador, que dominava a conversa, disse. Entre uma mastigada e outra, ele dava detalhes do Estado na época que foi governador e dizia que crise igual a esta não se via na região há tempos.
As falas do senador me fizeram lembrar das conversas que tive com uma importante fonte para entender as movimentações dos caminhoneiros. Numa das ligações, ele me disse que os transportadores estão recebendo menos do que costumavam receber, pelo desrespeito à tabela mínima do frete, mas a inflação não dava trégua. Em vez de carne, muitos passaram a comprar mais feijão para os filhos.
Apesar da crise, uma das razões pelas quais a categoria não consegue se unir para uma grande mobilização é o fato de muitos deles discutirem a suposta cassação da liberdade de expressão. É um não assunto que tomou o país e impede o avanço de discussões sobre políticas públicas que realmente são fundamentais.
O cenário se repete com muitos trabalhadores – e é ainda pior para os 14,8 milhões de desempregados. A inflação chegou a 9% nos últimos doze meses.
Em Anápolis, Goiás, Benta Correia, o marido Israel Rosa e uma sobrinha de 10 anos tiveram o corpo queimado em um acidente doméstico. Com o preço do botijão de gás nas alturas, eles tentaram usar álcool para cozinhar.
“Não tinha botijão de gás, só faltava cozinhar o feijão. Meu marido estava com o galão de álcool na mão. Quando coloquei fogo no papel, o galão explodiu”, disse a mulher ao G1.
Apesar da tragédia, a horas mortas, as principais lideranças políticas do país se articulavam naquele 10 de agosto para preparar a votação da PEC do voto impresso. E agora, em Brasília, toda a tensão está ligada às manifestações de 7 de setembro, com ameaças de invasão ao Supremo.
Se reencarnasse hoje, onde Jesus Cristo estaria no meio de tudo isso? Seria um daqueles que exclamam vitupérios contra os inimigos imaginários ou estaria preocupado com os que sofrem? Arrotaria bravatas contra moinhos de vento ou dividiria o pão com o necessitado?
Há um mês, as redes entraram em uma discussão sobre o fato de um padre dar comida a moradores de rua em São Paulo. Havia uma acusação, liderada por uma deputada, de que, ao dar alimento a viciados em drogas, o padre ajudava a mantê-los na situação degradante em que aquelas pessoas vivem.
No argumento, está implícita a ideia de que a fome seria a punição correta para estimular aquelas pessoas a saírem das ruas – como se a mendicância fosse um estado eufórico, o segredo do malandro para a vida boa.
O que quero deixar claro com este artigo, como sugestão, é que as pautas estabelecidas nos palácios não devem guiar a nossa ação. Que as discussões, os não assuntos, não deveriam receber o espaço que temos dado. E que nós não devemos nos embriagar desses assuntos, viciados em nossas bolhas nas redes, a ponto de ter o olhar turvo para o nosso lado, sem conseguir ver a realidade que nos cerca.
Sancho Pança vive longe dos palácios. E que o evangelho seja o nosso guia nesses tempos difíceis.
• Cézar Feitoza é repórter de política da rádio CBN em Brasília, com passagens por O Antagonista, Bandnews e Correio Braziliense. É diácono da Igreja Presbiteriana do Lago Norte e baixista da banda Trem Caipira.
>> Conheça o livro Fé Cristã e Ação Política, de Pedro Dulci.
Leia mais:
» A idolatria política e a atuação cristã
Em 10 de agosto, seis horas após tanques de guerra desfilarem na Esplanada dos Ministérios, encontrei-me com quatro senadores na antessala da CPI da Covid. Havia governistas e oposicionistas, todos tomando café ou suco de laranja e comendo pães de queijo. Um deles, sentado no sofá, apontava para a televisão, que retransmitia o passeio dos blindados da Marinha. “Isto é uma loucura”, disse o senador. E, na sequência, emendou frases em crítica à pressa com que a Câmara dos Deputados se preparava para votar a PEC do voto impresso naquele mesmo dia.
Era unânime o entendimento dos governistas e oposicionistas que o desfile dos blindados abria a possibilidade de péssimas interpretações. No ápice da pior crise entre os Poderes desde a redemocratização, o ato era visto como uma demonstração de poder.
“Na minha cidade tem gente passando fome”, foi mais ou menos o que o senador, que dominava a conversa, disse. Entre uma mastigada e outra, ele dava detalhes do Estado na época que foi governador e dizia que crise igual a esta não se via na região há tempos.
As falas do senador me fizeram lembrar das conversas que tive com uma importante fonte para entender as movimentações dos caminhoneiros. Numa das ligações, ele me disse que os transportadores estão recebendo menos do que costumavam receber, pelo desrespeito à tabela mínima do frete, mas a inflação não dava trégua. Em vez de carne, muitos passaram a comprar mais feijão para os filhos.
Apesar da crise, uma das razões pelas quais a categoria não consegue se unir para uma grande mobilização é o fato de muitos deles discutirem a suposta cassação da liberdade de expressão. É um não assunto que tomou o país e impede o avanço de discussões sobre políticas públicas que realmente são fundamentais.
O cenário se repete com muitos trabalhadores – e é ainda pior para os 14,8 milhões de desempregados. A inflação chegou a 9% nos últimos doze meses.
Em Anápolis, Goiás, Benta Correia, o marido Israel Rosa e uma sobrinha de 10 anos tiveram o corpo queimado em um acidente doméstico. Com o preço do botijão de gás nas alturas, eles tentaram usar álcool para cozinhar.
“Não tinha botijão de gás, só faltava cozinhar o feijão. Meu marido estava com o galão de álcool na mão. Quando coloquei fogo no papel, o galão explodiu”, disse a mulher ao G1.
Apesar da tragédia, a horas mortas, as principais lideranças políticas do país se articulavam naquele 10 de agosto para preparar a votação da PEC do voto impresso. E agora, em Brasília, toda a tensão está ligada às manifestações de 7 de setembro, com ameaças de invasão ao Supremo.
Se reencarnasse hoje, onde Jesus Cristo estaria no meio de tudo isso? Seria um daqueles que exclamam vitupérios contra os inimigos imaginários ou estaria preocupado com os que sofrem? Arrotaria bravatas contra moinhos de vento ou dividiria o pão com o necessitado?
Há um mês, as redes entraram em uma discussão sobre o fato de um padre dar comida a moradores de rua em São Paulo. Havia uma acusação, liderada por uma deputada, de que, ao dar alimento a viciados em drogas, o padre ajudava a mantê-los na situação degradante em que aquelas pessoas vivem.
No argumento, está implícita a ideia de que a fome seria a punição correta para estimular aquelas pessoas a saírem das ruas – como se a mendicância fosse um estado eufórico, o segredo do malandro para a vida boa.
O que quero deixar claro com este artigo, como sugestão, é que as pautas estabelecidas nos palácios não devem guiar a nossa ação. Que as discussões, os não assuntos, não deveriam receber o espaço que temos dado. E que nós não devemos nos embriagar desses assuntos, viciados em nossas bolhas nas redes, a ponto de ter o olhar turvo para o nosso lado, sem conseguir ver a realidade que nos cerca.
Sancho Pança vive longe dos palácios. E que o evangelho seja o nosso guia nesses tempos difíceis.
• Cézar Feitoza é repórter de política da rádio CBN em Brasília, com passagens por O Antagonista, Bandnews e Correio Braziliense. É diácono da Igreja Presbiteriana do Lago Norte e baixista da banda Trem Caipira.
>> Conheça o livro Fé Cristã e Ação Política, de Pedro Dulci.
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