Opinião
- 03 de outubro de 2020
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Realidade produzida: uma análise sobre “O Dilema das Redes”, da Netflix
Por Fillipe Mendes Cotta
Dilema é sinônimo de dúvida, impasse, perplexidade, um tipo de experiência que marca todos os seres humanos. Frequentemente estamos entre duas opções e ambas nos parecem ruins: ficamos entre o ruim e o pior ainda. De certa forma, é isso que sentimos ao assistir ao novo documentário sobre tecnologias digitais, “O Dilema das redes”.
“The Social Dilemma” estreou na Netflix no último dia 9 de setembro, e lá vai “viralizando” na internet como uma espécie de “metalinguagem crítica”, em que a própria rede fala sobre as redes. O documentário dramático foi dirigido por Jeff Orlowski e tem duração de 94 minutos, entre várias entrevistas e uma dramatização pouco atrativa em torno do vício gerado pelas redes na vida de adolescentes. No filme, ex-funcionários de Google, Facebook, Twitter, Instagram e Pinterest exploram a questão sobre como essas companhias desenvolvem algoritmos a fim de manipular usuários e alterar padrões de comportamento e consumo.
Tristan Harris, ex-designer em ética do Google e cofundador do Center for Humane Technology, guia a discussão a respeito do grande problema: "o efeito das mídias sociais sobre o homem contemporâneo, demonstrando como a tecnologia avançada dos algoritmos tem moldado nossa visão de mundo". O documentário evidencia o fato de que as mídias sociais são projetadas para manipular a forma como lidamos com a realidade, lenta e progressivamente. Afinal, dentro da lógica do “capitalismo de vigilância”, proposta por Shoshana Zuboff1, professora emérita de Harvard, para cada indivíduo seria necessário produzir uma experiência personalizada e consequentemente uma "verdade" personalizada. A coleta de milhões de dados nas redes serviria para desenhar o “futuro do ser humano”, aquilo que você pensará, consumirá e será amanhã.
No final das contas, nós seríamos o “produto a ser vendido”, ou, mais especificamente, a forma como enxergamos as coisas seria o produto mais precioso no mercado, nossa atenção estaria à venda. O algoritmo iria se tornando cada vez mais inteligente e o “sistema de recomendação” sugere aos usuários o que devem consumir, em que verdade devem acreditar, em que devem depositar sua atenção.
O filme ainda propõe que esse sistema estaria manipulando a sociedade e desequilibrando seu funcionamento: as “Fake News” seriam um exemplo claro disso. As mídias sociais hoje permitiriam manipulação política e social em uma medida jamais vista, colocando em risco a própria democracia. O documentário acaba por não esconder seus pressupostos políticos ideológicos e esboça críticas a “corridas políticas” contemporâneas em todo o mundo, com uma ênfase interessante a respeito do Brasil. Mas esse não é o ponto desse texto, faça sua própria avaliação.
De qualquer forma, a reflexão proposta é relevante e necessária, afinal são tantas as informações falsas sendo compartilhadas, que se torna difícil lidar com o que de fato está acontecendo. O que é real? O que é verdade em meio a tanta desinformação? Em certo ponto é exemplificado que: "O que estamos presenciando com o Covid é uma versão extrema do que acontece em nosso ecossistema de informações". Creio que esse é um problema patente, não há dúvidas de que estamos nos afogando em um mar de pseudoinformações.
O filme, entretanto, deixa um problema sobre a mesa. A pergunta feita aos entrevistados nos primeiros minutos, “qual é o problema das redes?”, fica sem resposta, em meio ao silêncio confuso dos entrevistados. Um vislumbre de resposta aparece quase ao final, quando Tristan Harris sugere o seguinte:
"Não é que a tecnologia em si seja uma ameaça existencial. É a capacidade da tecnologia de trazer à tona o pior da sociedade, e o pior da sociedade é uma ameaça existencial".
Ainda assim, sua resposta é incompleta, pois o que seria esse pior da sociedade? Parece que nem Harris nem os demais tem condição de dar nome ao real problema. Creio que a formulação adequada deveria ser:
"Não é que a tecnologia em si seja uma ameaça existencial. É a capacidade da tecnologia de trazer à tona o pior do coração humano, e o pior do coração humano é o pecado, que nos ameaça e destrói existencialmente".
Falta à película a cosmovisão bíblica necessária para compreender que a corrupção pecaminosa do nosso coração é a raiz de todos os nossos dilemas. Afinal, quando olhamos para o capítulo 3 de Gênesis, nas primeiras páginas da Bíblia, encontramos nessa narrativa algo que é supremamente importante para a minha e para a sua compreensão a respeito da raiz de todo dilema humano, nas redes ou fora delas, a saber, a presença do pecado.
Os homens desobedeceram a Deus. Quebraram toda a Lei de Deus, fazendo de sua autonomia seu próprio deus. Perderam o temor do Senhor e, consequentemente, como diz o puritano Thomas Watson: “a falta do temor de Deus é a causa natural de toda a impiedade”2. Tendo quebrado a aliança, o homem perdeu sua direção, perdeu sua vida e, enquanto estivesse separado de Deus, o homem estaria e está perdido. Essa é a resposta. Essa é a tragédia. Esse é o cerne do dilema. Essa é a raiz de todo mal no homem e no mundo: o pecado e seu poder parasitário, que a tudo corrompe.
Enquanto não compreendermos isso, estaremos tateando no escuro sem encontrar a verdade. Jason Thacker, em sua postagem recente no site The Gospel Coalition, aponta para o mesmo ponto ao dizer que “a verdadeira mudança não virá até que admitamos que essas tecnologias não surgiram e não operam em um vácuo moralmente neutro - mas dentro de um ambiente generalizado de pecado”. Somente em Cristo, em que encontramos a Verdade, podemos ser livres de toda manipulação, de todo engano do pecado, por quaisquer meios.
Por fim, vale dizer que, dilematicamente, saímos do filme intrigados, pensando sobre até que ponto o documentário também não estaria nos manipulando, uma vez que apresenta uma narrativa crítica às mídias sociais, sendo produzida por uma provedora de filmes via streaming, cujo algoritmo funciona tentando manipular clientes, em todo o globo, a nunca pararem de assistir seus produtos.
• Fillipe Mendes Cotta é pastor presbiteriano, professor do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. Denoel Nicodemos Eller, com mestrado em Teologia Sistemática pelo CPAJ (Centro de pós-graduação Andrew Jumper) e doutorando pela mesma instituição. Autor do e-book “A Raiz de Todo Mal”. Redes sociais: @pastorfillipe
Notas
1. Shoshana Zuboff. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. London: Profile Books, 2019.
2. Thomas Watson. The Great Gain of Godliness. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 2006. p.19.
Notas
1. Shoshana Zuboff. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. London: Profile Books, 2019.
2. Thomas Watson. The Great Gain of Godliness. Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 2006. p.19.
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