Opinião
- 12 de agosto de 2020
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Racismo como profanação da imagem de Deus
Por Lucas Ramos Pereira
Comumente, a verdade de que a humanidade foi feita a imagem de Deus é usada como base para cristãos defenderem a dignidade humana. Isso é bom, porque é uma verdade expressa na Escritura. Entretanto, é importante uma boa compressão do que significa imago Dei, para que o cristão encontre as raízes corretas para seu engajamento diante das injustiças sociais.
As implicações deste princípio são diversas, mas o presente artigo pretende aplicar o ensino à questão do racismo. A expressão “imagem de Deus” aparece em Gênesis 1.27. Por isso, inicialmente, para uma compressão adequada do que é a imago Dei, é necessária uma leitura adequada de todo o relato da criação, de Gênesis 1.
Gênesis 1, mais do que um relato sobre origem material, narra a origem de um espaço sagrado. Segundo a narrativa, nos dias 1, 2 e 3, Deus cria espaços e ambientes. Nos dias 4, 5 e 6, Deus cria aqueles que povoam esses espaços, incluindo o ser humano. Isso ensina que Deus, do caos (Gn 1.2), foi organizando tudo como um lugar habitável. Nesse trecho, o relato de Gênesis apresenta um Deus hospitaleiro. Esse escrito faz um contraste com a crença de alguns povos antigos, que acreditavam que o mundo veio da guerra dos deuses.
Entretanto, para uma visão mais refinada de Gênesis 1, é importante um olhar para o sétimo dia da narrativa, o dia do descanso. John Walton comenta:
Os relatos de construção de templos eram geralmente acompanhados de cosmologias, pois, após estabelecer a ordem (o foco das cosmologias no mundo antigo), o deus assumia o controle daquele sistema ordenado.1
Considerando a colocação de Walton, não seria incomum para o povo hebreu essa relação entre cosmologia e templo. Deus santifica e abençoa o dia em que descansa. Isso não teria relação com os relatos de construção dos templos? Parece que sim. Tanto em Êxodo 40 (tabernáculo) quanto em 1 Reis 8 (templo de Salomão), observa-se que o templo não é a construção em si. O espaço se torna templo, de fato, após a cerimônia, que era finalizada com o enchimento da glória de Deus sobre o local (Ex 40.34; 1Rs 8.10-11), como se Deus estivesse habitando ali. No caso do templo de Salomão, a cerimônia durou sete dias (1Rs 8.65), assim como no relato da criação.
Portanto, o relato da criação do cosmos aponta para a criação de um templo. Deus, no ato da criação, não está fazendo somente um lar para os seres humanos, ele também está construindo um lar para si. O descanso do sétimo dia não fala de um de um cochilo ou lazer, mas de uma consagração de um ambiente. John Walton acrescenta:
Descobrimos que tanto na Bíblia quanto no Antigo Oriente Próximo existe uma solenidade de inauguração que, formal e cerimonialmente, marca a transição da estrutura física ao templo funcional, da casa ao lar. Nela, proclamam-se as funções do templo, instalam-se os funcionários e iniciam-se os rituais enquanto Deus desce para habitar o local que foi preparado por sua instrução. Não surpreende, portanto, que em Gênesis 1 encontremos a proclamação das funções e a instalação de funcionários. Ainda mais importante, deveríamos notar que na Bíblia e no mundo antigo, o número sete figura proeminentemente a inauguração de espaços sagrados.2
O sétimo dia marca a inauguração de um lugar sagrado, como propõe Walton. Por isso, a criação é o grande templo de Deus, onde ele decidiu habitar. Isso nos aporta para Salmos 132.13-14, que relaciona a habitação de Deus com seu descanso. Então, se pode concluir que Gênesis 1 narra a construção e a consagração do grande templo de Deus, sua criação. O texto de Isaias 66.1-2 resume todos esses ensinos:
Assim diz o Senhor: "O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés. Que espécie de casa vocês me edificarão? É este o meu lugar de descanso? Não foram as minhas mãos que fizeram todas essas coisas, e por isso vieram a existir?", pergunta o Senhor. "A este eu estimo: ao humilde e contrito de espírito, que treme diante da minha palavra".
Portanto, a imago Dei aparece dentro de uma narrativa da origem de um espaço sagrado. Entender seu contexto é de muita importância para uma boa compressão do seu significado e aplicabilidades para a questão do racismo.
Naturalmente, podem-se destacar vários aspectos da imagem de Deus, dentre eles: funcionalidade, identidade, substitutivo e relacional. Entretanto, para nossa temática, o foco será no caráter substitutivo da imago Dei. Esse aspecto remete-se a representatividade, que, no mundo antigo, acontecia em pelo menos dois momentos.
O primeiro momento fala sobre a terra conquistada por um rei. Um rei quando conquistava um território, depois de um tempo, retornava para a sede do seu império. Entretanto, na terra conquistada, ele deixava uma imagem de si mesmo, uma estátua colocada no portão da cidade ou nas fronteiras. Essa imagem representava a presença desse rei ali. No entanto, é importante entender que essa imagem era mais do que uma cópia, sua estética comunicava ideias sobre o rei, seu governo e reinado3.
O segundo momento está relacionado ao templo de um determinado deus. As imagens dos deuses em seus templos eram inauguradas por um ritual que dotava a imagem com a essência divina4. Se o relato da criação fala sobre a origem do grande templo de Deus, isso significa que a humanidade é a escultura de Deus nesse grande templo. Por essa razão, ela deveria se espalhar por toda terra, pois o ser humano é a imagem de Deus em seu templo, e em todos os lugares deveriam conter a imagem de Deus. Assim como a estátua é uma representação do deus, a humanidade é a representação de Deus no cosmos. Isso esclarece o porquê de Deus não permitir a construção de imagens dele (Ex 20.4), pois sua imagem está estampada em toda humanidade. Pode-se dizer que a humanidade é a “estátua” do templo de Deus.
Imaginando um fato, onde alguém entra em um grande templo de uma determinada religião e ali quebra todas as imagens e símbolos daquela fé e de seus deuses, imagina-se que os devotos ficariam profundamente indignados pela profanação e tristes pelo ocorrido. O cristão, sabendo que o próximo é a imagem de Deus, em seu templo, ao vê-lo ser discriminado e excluído por causa da sua etnia, não deveria ter um sentimento semelhante? O zelo pela glória de Deus, seu santo templo (a criação) e sua imagem (o próximo) deve impulsionar o seguidor de Jesus a ser contra qualquer expressão de racismo.
Alguém poderia argumentar que, após a queda, a humanidade perdeu a imagem de Deus. Entretanto, essa alegação não se fundamenta na Escritura, pois, após a queda, o texto bíblico apresenta a imagem de Deus como fundamento para não derramar sangue alheio (Gn 9.6). Um dos principais autores sobre o tema, Anthony Hoekema, comenta: “Após a queda do homem em pecado, a imagem de Deus não foi aniquilada, mas pervertida. A imagem no seu sentido estrutural permaneceu”5. Portando, pode-se concluir que por mais que a imago Dei foi distorcida pelo pecado, ela ainda permanece no ser humano. Tudo isso aponta para Jesus, a plenitude da imagem de Deus (Cl 1.15). Nele encontra-se a redenção de todas as coisas (Cl 1.20), isso inclui a renovação da imagem de Deus na humanidade.
Quando o cristão fala do próximo, ele fala de algo sagrado. Por isso, o seguidor de Jesus não pode dar uma resposta secularizada para a questão do racismo. A denuncia cristã não deve ser motivada pela raiva alheia ou filosofias não cristãs, antes, deve ser encharcada pelo evangelho. Respostas com motivações seculares, para as distorções que o pecado gerou na criação, geram em um local santo – o templo do Senhor – mais desordem. A palavra de Deus deve reger as motivações e razões do cristão quando se levantar com voz profética, já que entende-se que toda a realidade é templo do Senhor. Para o seguidor de Jesus, não existe dualismo entre secular/sagrado, pois tudo é sagrado, a Escritura deve nortear todas as dimensões da sua existência.
Tratar o próximo com parcialidade por causa da etnia é marginalizar a estátua do templo de Deus, é profanar o próprio Deus.
• Lucas Ramos Pereira é mestrando em Estudos Pastorais pelo CPAJ e Bacharel em Teologia pela FBMG. Atualmente é pastor da Primeira Igreja Batista em Vila Pilho, em Belo Horizonte/MG. Também atuou como Coordenador de Missões da Juventude Batista Mineira (2016–2018).
Notas
1. WALTON, John H. O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis. Viçosa: Ultimato, 2016. p. 46.
2. WALTON, 2016, p.47
3. WALTON, 2016, p.183-186.
4. WALTON, 2016, p.186.
5. HOEKEMA. Anthony. Criados à imagem de Deus. 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018. p. 99.
>> Conheça o livro O Mundo Perdido de Adão e Eva, de John Walton
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