Opinião
- 10 de agosto de 2021
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Quem são os quakers?
Por Jorge Cruz
A Sociedade de Amigos (Society of Friends ou Religious Society of Friends), comumente designada de Quacres (Quakers), é um movimento que integra a tradição carismática da espiritualidade cristã e que teve grande influência na história do cristianismo. Surgiu em Inglaterra no século 17 por iniciativa de George Fox (1624-1691).
O jovem Fox cresceu numa paróquia da Igreja Anglicana emergente, na cidade inglesa de Leicestershire, mas sentia-se incomodado com a imaturidade espiritual e hipocrisia dos cristãos, que professavam as doutrinas da Igreja aos domingos e comportavam-se como os descrentes nos restantes dias da semana. Aos 19 anos, mudou-se para casa de um tio em Londres e iniciou uma jornada espiritual em busca da verdade e de paz com Deus, estudando a Bíblia e ouvindo a opinião de muitos conselheiros. Porém, encontrou a paz e alegria que procurava somente em 1647, quando teve um encontro pessoal com Deus, que lhe disse que somente Jesus Cristo poderia responder aos seus anseios. Como resultado dessa experiência, reconheceu que todos os cristãos poderiam ter acesso direto a Deus e receber dEle sabedoria e orientação espiritual para as suas vidas.
George Fox e os adeptos deste movimento acreditavam e anunciavam publicamente que as pessoas não precisavam recorrer à igreja organizada e ao clero ordenado para terem um encontro com Deus e conhecerem a Sua vontade. O nome “sociedade de amigos” baseia-se nas palavras de Jesus aos Seus discípulos: “vós sereis meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando” (João 15:14). Defendiam que a Igreja eram as pessoas, os amigos de Jesus, e não os edifícios, pois Deus não habitava em templos feitos por mãos humanas mas sim no coração dos crentes. Reuniam-se por isso em lares e salões sóbrios para ler a Bíblia e esperar pela interpretação do Espírito Santo. Para os quacres, era mais importante que os cristãos vivessem de acordo com a mensagem do Evangelho do que serem teólogos eruditos, mas terem uma conduta repreensível. Para eles a revelação direta de Deus, acessível a todos, tinha mais valor do que o ensino e autoridade da própria Bíblia. Não faziam discriminação das pessoas em termos de género, raça ou classe social, numa altura em que a escravatura ainda era praticada e os direitos da mulher não eram reconhecidos. Eram pacifistas e recusavam prestar serviço militar e participar em atividades bélicas. Também não faziam juramentos solenes, pois pugnavam pela verdade em todas as circunstâncias, mas essa prática impedia-os muitas vezes de ocuparem cargos públicos importantes. Encaravam com suspeição a participação em atividades lúdicas, consideradas pecaminosas, como a música, o teatro ou a leitura de romances. O compositor inglês Solomon Eccles (1618-1683), quando se tornou quacre, queimou as suas composições e instrumentos musicais.
Fox e os primeiros quacres viveram numa época de grande agitação política e social, em que a Inglaterra sofreu uma violenta guerra civil, que culminou na abolição da monarquia e instituição de uma república efémera (1649-1658) sob a liderança de Oliver Cromwell. Durante o reinado de Carlos II, após a restauração da monarquia, mais de 10 mil quacres, entre os quais o próprio Fox, sofreram perseguição e foram presos algumas vezes, e muitas centenas perderam a vida. Numa das ocasiões em que Fox foi levado a julgamento, o juiz Jeremy Bennett disse-lhe que ele devia tremer perante a autoridade do tribunal. Fox respondeu que o juiz é que deveria tremer perante o Todo-Poderoso, ao que o magistrado replicou: “vocês é que devem tremer, seus quakers”. O termo quaker, que significa “pessoa medrosa” ou “pessoa que treme”, foi utilizado inicialmente para ridicularizar os membros deste movimento. Mais tarde, passou a ser uma designação corrente, e até prestigiosa, deste grupo religioso.
Margaret Fell (1614-1702), esposa de um respeitado juiz da cidade de Ulverston, no norte de Inglaterra, foi um dos primeiros convertidos à pregação de Fox, e o seu lar tornou-se um importante local de reunião dos adeptos desta nova doutrina. Em 1667, onze anos após a morte do seu primeiro marido, Margaret Fell viria a casar com George Fox, adotando o apelido do seu novo cônjuge, sendo considerada uma das pioneiras do movimento e tendo sido promotora da capacitação de mulheres para funções de liderança nas reuniões de senhoras do grupo.
Os primeiros quacres usavam um vestuário simples e modesto, e os homens um chapéu de abas largas. Eram trabalhadores dedicados e ajudavam os pobres e mais desfavorecidos. Usavam números para os dias da semana e os meses do ano, de modo a evitarem os nomes pagãos na língua inglesa. Na sequência da perseguição a que foram sujeitos em Inglaterra no reinado de Carlos II, emigraram em larga escala para os Estados Unidos. William Penn, membro deste grupo, fundou em 1681 a colónia inglesa da Pensilvânia, que após a independência dos EUA em 1776 viria a ser um estado americano autónomo. Penn celebrou, em 1682, um tratado de paz com os índios de Delaware, que durou mais de um século. Vários quacres fundaram colégios e universidades que ainda hoje são reconhecidos pela qualidade do seu ensino.
O foco da espiritualidade da Sociedade de Amigos é a sua experiência interior de comunhão com Deus, que lhes confere a capacidade de resistirem ao pecado e à tentação e de viverem em santidade. Tal como referido, não consideram as Escrituras Sagradas como a única regra e autoridade máxima em matéria de fé e conduta. Utilizam vários termos para se referirem à divindade, como Deus, Luz Interior, Vida Interior, Cristo e Espírito. Embora as práticas religiosas sejam diversas nas diferentes comunidades, existem algumas caraterísticas comuns, como a valorização da simplicidade, do silêncio, do pacifismo, da igualdade, da honestidade, da solidariedade e da ação social. A sua prática religiosa está baseada na doutrina do sacerdócio universal dos crentes, de modo que não existem pastores em muitas das suas congregações e as mulheres têm toda a liberdade para ministrarem nos cultos. Ao contrário da maioria das igrejas cristãs, a Sociedade de Amigos não realiza batismos nem celebra a Ceia do Senhor, pois acreditam que os sacramentos devem ser uma experiência espiritual interior. Consideram que a presença de Jesus em cada crente torna desnecessário realizar cerimónias em memória de Cristo. A ênfase da prática religiosa dos quacres é na vida presente e não existe uma crença unânime acerca do céu e do inferno. Além disso, para este grupo todos os dias são santos e especiais, pelo que não conferem especial valor ao domingo nem a eventos como o Natal e a Páscoa. Os primeiros quacres que se dedicavam ao comércio tinham o costume de encerrar as suas lojas às quartas e aos domingos, que eram os dias em que se reuniam, mas poderiam abri-las no dia de Natal se não fosse um desses dias da semana.
O ensino da Sociedade de Amigos foi considerado herético pelas igrejas tradicionais. Contudo, a Lei da Tolerância, aprovada pelo parlamento inglês em 1689, veio conceder alguma liberdade de culto à Sociedade de Amigos e a outras denominações cristãs minoritárias. O famoso escritor e pregador batista John Bunyan (1628-1688), contemporâneo de George Fox, considerava os quacres inimigos do Evangelho de Cristo.
A Sociedade de Amigos teve também uma enorme influência na abolição da escravatura, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos. O eminente estadista cristão inglês William Wilberforce (1759-1833), principal mentor do movimento antiesclavagista e abolicionista do tráfico negreiro, não era quacre mas tinha vários amigos que pertenciam a esta denominação.
Durante o século 19, vários quacres foram banqueiros e empresários de sucesso. O Banco Barclays, fundado em Londres em 1690, o Banco Lloyds, fundado em Birmingham em 1765, a Western Union, uma das maiores empresas mundiais de transferência de dinheiro, e três empresas de chocolate britânicas (Cadburys, Frys e Rowntrees) eram propriedade de cristãos pertencentes a este movimento. Estavam também envolvidos em indústrias do calçado e do ferro. O nome quaker cedo se tornou sinónimo de qualidade, a ponto de ser usado na comercialização de produtos, como cereais de aveia, por empresários e comerciantes sem qualquer ligação ao grupo. Ainda no século 19, o movimento pelo sufrágio das mulheres contou com a participação de membros da Sociedade de Amigos, como Lucretia Mott e Alice Paul. Mais recentemente, a organização ambiental Greenpeace e a organização Amnistia Internacional, que defende os direitos humanos, foram também fundadas por membros desta comunidade. O Prémio Nobel da Paz de 1947 foi atribuído a duas organizações quacres, a Friends Service Council, sediada em Londres, e a American Friends Service Commitee, sediada em Washington D.C., pelo excelente trabalho humanitário desenvolvido durante a 1.ª e a 2.ª Guerra Mundial.
Uma das publicações mais emblemáticas e apreciadas da espiritualidade cristã contemporânea é a obra Celebração da Disciplina, escrita pelo teólogo quacre norte-americano Richard Foster. Foi publicada originalmente em língua inglesa em 1978 e é considerada pela revista Christianity Today um dos 10 livros cristãos mais importantes do século 20.
Estima-se que existem atualmente cerca de 360 mil quacres ao redor do mundo e a maior comunidade, com cerca de 146 mil membros, encontra-se no Quénia, em resultado da atividade missionária de crentes norte-americanos no início do século passado. A tradição evangélica da Sociedade de Amigos, com cerca de 280 mil membros à escala mundial, é a mais importante, mas existem grupos liberais e outros que nem sequer se consideram cristãos.
• Jorge Cruz, médico especialista em angiologia e cirurgia vascular, doutor em bioética, membro do Comitê de Países de Língua Portuguesa da International Christian Medical & Dental Association (ICMDA), membro honorário da Associação Cristã Evangélica de Profissionais de Saúde (ACEPS-Portugal), membro do Conselho Internacional da PRIME - Partnerships in International Medical Education. Reside em Porto, Portugal.
Bibliografia
CAIRNS, Earle E. Christianity Through the Centuries: A History of the Christian Church (3rd ed). Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 2006, pp. 461-463.
CURTIS, A. Kenneth. Os 100 acontecimentos mais importantes da história do cristianismo. São Paulo: Editora Vida, 1991, pp. 120-121.
DANDELION, Pink. The Quakers: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008.
FOSTER, Richard J. A Celebração da Disciplina: o caminho do crescimento espiritual. São Paulo: Editora Vida, 2007.
PETERSON, Eugene H. Um pastor segundo o coração de Deus. São Paulo: Textus, 2008.
The Surprising Quakers. Christian History Magazine, issue 117, March 2016.
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