Opinião
- 14 de maio de 2009
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Quem ama não impede a justiça de Deus
Derval Dasilio
Amigos, o texto bíblico de Jo 15.9-17 é paradoxal. Sua síntese poderia nos levar à ideia mestra de que não existe nada mais “escravizante” que o amor, seja para quem dá ou para quem o recebe. Podemos imaginar um precedente em Isaías, que coloca a ação concreta no campo do amor justo, “ahavah”, amor visceral e misericordioso de Javé; amor como fruto da justiça, exercício dos direitos fundamentais do homem, igualitariamente, sem considerar ódios raciais, preconceitos religiosos e classificações sociais, sob o “ethos” principialista que organiza a justiça. Isaías aponta o amor que julga: “Ai dos que ao mal chamam bem, que fazem da escuridão luz, e da luz escuridão; põem o amargo por doce, e o doce por amargo” (Is 5.20). Segundo a perspectiva de João, porém, esse amor não é humano, é “agape”, porque a seiva que recebe vem da raiz e do tronco que sustentam a fé no Cristo de Deus. Jesus funda e engloba tudo que abrange a justiça e o direito.
Este amor, verbo dinâmico (“agapao”), ultrapassa em muito o trivial. Não há mística ou abstração que possa esconder a prática do imperativo de Jesus, pois o amor não se refere aqui a uma “felicidade” amorosa em boa vizinhança social, ou à estabilidade familiar ou conjugal. Não se trata de “amor à virtude”, e sim de colocar-se em prontidão para a ação concreta no campo da justiça, da misericórdia, do cuidado, da compaixão, da ternura, tal como o amor de Jesus Cristo. O escravo do amor (“doulos”) serve à justiça (“tsedakah” ou “dikaios”), no rumo da paz (“shalom” ou “eirene”), em total fidelidade a Deus (“emunah”). Deus é amor, disse João. O evangelista hebreu nos lembra de amar uns aos outros com o amor sem medida de Jesus. Não há amor maior que este.
Amar o outro por ele mesmo, como ele é, desejar que ele continue a ser o que é, não violentá-lo a pretexto de transformá-lo “por amor”. Desejar sua independência e liberdade, interceder para sua salvação de tudo que o oprime e faz sofrer. Mensagem ecumênica: “Respeitai-vos mutuamente”, diz João, reproduzindo o imperativo de Jesus, “sejais ternos, nas desgraças, nas angústias, nos tormentos, curai o sofrimento uns dos outros ... para que o mundo creia”.
A última palavra sobre o amor, conforme a piedade cristã em vigor, poderia envolver considerações inspiradas nas novelas imbecis da TV ou nos romances rasteiros das bancas de revista: amor cor de rosa, sensual, prazenteiro, edulcorado; amor “abstrato”, filosófico, sem realismo humano. O amor sem igual, solidário, sem medida, concreto, relacional, “full contact”, de Jesus tem alguma coisa a ver com as imagens sentimentais da linguagem cotidiana? Pode a cruz, símbolo de morte e sofrimento, ser um símbolo de amor? Na realidade, o amor extremo de Jesus é um desafio ainda maior que aquele apresentado na parábola: “Ama a teu próximo como a ti mesmo...”.
Por quê? O amor é também juiz das consciências, do mesmo modo que é juiz dos algozes e dos que torturam e matam os que amam a causa de Deus. O Cristo intencionalmente violentado, torturado, crucificado por amor, nos lembra, como se fazia há pouco, e nos apoia a história do Brasil imperial: Calabar garroteado, Tiradentes esquartejado, divulgação exaustiva do assassinato de Che Guevara. Demonstrações públicas dos cadáveres dos mártires com intenção intimidadora a qualquer movimento rebelde ao totalitarismo.
A questão dos mártires está sob o juízo de Deus (Moltmann). Estêvão, Tiago, Pedro e Paulo sofreram o martírio por causa do amor. A ressurreição, como nos lembramos também em todas as Páscoas, é parte significativa do amor que julga e faz ressuscitar os mortos, que voltam à vida na primavera como as flores ressurgem depois do inverno. A justiça de Deus vinga os torturados, os violentados, trazendo à tona o testemunho dos que foram mortos por causa da justiça. Amor como semente de um mundo transformado. O amor solidário de Deus está no Cristo morto, crucificado e trazido à ressurreição para toda a eternidade, para que todos possam ressuscitar com ele e gozar da sua justiça amorosa.
• Derval Dasilio é pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil.
Amigos, o texto bíblico de Jo 15.9-17 é paradoxal. Sua síntese poderia nos levar à ideia mestra de que não existe nada mais “escravizante” que o amor, seja para quem dá ou para quem o recebe. Podemos imaginar um precedente em Isaías, que coloca a ação concreta no campo do amor justo, “ahavah”, amor visceral e misericordioso de Javé; amor como fruto da justiça, exercício dos direitos fundamentais do homem, igualitariamente, sem considerar ódios raciais, preconceitos religiosos e classificações sociais, sob o “ethos” principialista que organiza a justiça. Isaías aponta o amor que julga: “Ai dos que ao mal chamam bem, que fazem da escuridão luz, e da luz escuridão; põem o amargo por doce, e o doce por amargo” (Is 5.20). Segundo a perspectiva de João, porém, esse amor não é humano, é “agape”, porque a seiva que recebe vem da raiz e do tronco que sustentam a fé no Cristo de Deus. Jesus funda e engloba tudo que abrange a justiça e o direito.
Este amor, verbo dinâmico (“agapao”), ultrapassa em muito o trivial. Não há mística ou abstração que possa esconder a prática do imperativo de Jesus, pois o amor não se refere aqui a uma “felicidade” amorosa em boa vizinhança social, ou à estabilidade familiar ou conjugal. Não se trata de “amor à virtude”, e sim de colocar-se em prontidão para a ação concreta no campo da justiça, da misericórdia, do cuidado, da compaixão, da ternura, tal como o amor de Jesus Cristo. O escravo do amor (“doulos”) serve à justiça (“tsedakah” ou “dikaios”), no rumo da paz (“shalom” ou “eirene”), em total fidelidade a Deus (“emunah”). Deus é amor, disse João. O evangelista hebreu nos lembra de amar uns aos outros com o amor sem medida de Jesus. Não há amor maior que este.
Amar o outro por ele mesmo, como ele é, desejar que ele continue a ser o que é, não violentá-lo a pretexto de transformá-lo “por amor”. Desejar sua independência e liberdade, interceder para sua salvação de tudo que o oprime e faz sofrer. Mensagem ecumênica: “Respeitai-vos mutuamente”, diz João, reproduzindo o imperativo de Jesus, “sejais ternos, nas desgraças, nas angústias, nos tormentos, curai o sofrimento uns dos outros ... para que o mundo creia”.
A última palavra sobre o amor, conforme a piedade cristã em vigor, poderia envolver considerações inspiradas nas novelas imbecis da TV ou nos romances rasteiros das bancas de revista: amor cor de rosa, sensual, prazenteiro, edulcorado; amor “abstrato”, filosófico, sem realismo humano. O amor sem igual, solidário, sem medida, concreto, relacional, “full contact”, de Jesus tem alguma coisa a ver com as imagens sentimentais da linguagem cotidiana? Pode a cruz, símbolo de morte e sofrimento, ser um símbolo de amor? Na realidade, o amor extremo de Jesus é um desafio ainda maior que aquele apresentado na parábola: “Ama a teu próximo como a ti mesmo...”.
Por quê? O amor é também juiz das consciências, do mesmo modo que é juiz dos algozes e dos que torturam e matam os que amam a causa de Deus. O Cristo intencionalmente violentado, torturado, crucificado por amor, nos lembra, como se fazia há pouco, e nos apoia a história do Brasil imperial: Calabar garroteado, Tiradentes esquartejado, divulgação exaustiva do assassinato de Che Guevara. Demonstrações públicas dos cadáveres dos mártires com intenção intimidadora a qualquer movimento rebelde ao totalitarismo.
A questão dos mártires está sob o juízo de Deus (Moltmann). Estêvão, Tiago, Pedro e Paulo sofreram o martírio por causa do amor. A ressurreição, como nos lembramos também em todas as Páscoas, é parte significativa do amor que julga e faz ressuscitar os mortos, que voltam à vida na primavera como as flores ressurgem depois do inverno. A justiça de Deus vinga os torturados, os violentados, trazendo à tona o testemunho dos que foram mortos por causa da justiça. Amor como semente de um mundo transformado. O amor solidário de Deus está no Cristo morto, crucificado e trazido à ressurreição para toda a eternidade, para que todos possam ressuscitar com ele e gozar da sua justiça amorosa.
• Derval Dasilio é pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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