Opinião
- 13 de setembro de 2022
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Quando a dor se torna insuportável
Por Kitty Kurzawa e Carlos "Catito" Grzybowski
Os significados do desejo de morte (ideação suicida) ou do processo que levou a pessoa a um estado de desânimo nesta magnitude deve ser articulado/significado somente pela própria pessoa em sofrimento. O sentido em si pode parecer ‘sem sentido’, absurdo, confuso ou mesmo, incipiente, para o olhar de quem está de fora.
Neste sentido, é preciso um cuidado maior ao escutar e fazer interpretação em pessoas com probabilidade suicida, sendo que o acolhimento inicial é a melhor estratégia, permitindo que a pessoa não se sinta ainda mais acuada pelas interpretações do conselheiro. O que pode e deve ser acolhido é a pessoa fragilizada, com temores maiores, neste momento, que seu potencial de abstração.
Há um jogo psíquico em andamento entre a realidade insuportável e a fuga da dor, do qual está refém. A busca de saída para a dor pode ser potencializada pela percepção de que não há uma saída ao(s) problema(s) e que o enfrentamento é a realidade a ser encarada.
Como nós, psicólogos clínicos, pastores e terapeutas podemos ajudar e, acima de tudo, desenvolver uma escuta na busca de significados e nos distanciarmos das artimanhas dos próprios temores, bem como, afastarmos o profissional da manipulação secreta dos pacientes no enlace e jogo psicológico que por ora se desenrola?
Desde o primeiro momento até o final do acompanhamento (alta do paciente) não se deve perder o foco da necessidade de acolhimento desta pessoa. Algo muito dolorido dentro dela, que é insuportável, irrompeu.
O direcionamento deve necessariamente passar por um processo bastante vigiado por familiares, amigos e profissionais multidisciplinares, o que demanda tempo e processo. Chamar a família para fazer parte deste cuidado deve ser também uma das estratégias, pois neste momento a autonomia e responsabilidade do paciente estão enfraquecidas.
Oferecer suporte em 4 a 5 encontros semanais também é uma boa estratégia, e isso deve ser negociado em um tempo mínimo possível, outorgando à pessoa a responsabilidade que lhe é pertinente.
O que realmente nos importa como conselheiros ou profissionais é a saída desta pessoa deste estado, ou seja, a saída da ‘caverna de desânimo no qual está enclausurada’.
Como possibilitar e promover esta reentrada à VIDA, já que, o desejo constante de solidão, afastamento social e outros sintomas imperam sobre a pessoa neste período?
O caso de Elias
Podemos encontrar algumas respostas de ‘técnicas’ que Deus utilizou com Elias, no Velho Testamento, como suporte nas investidas clínicas.
Elias foi chamado por Deus para o ministério profético em um dos piores períodos da história de Israel. Período marcado por crises sociais, secas, prevalecendo fome, miséria, corrupção e idolatria. Uma crise moral, social e espiritual constituía o ‘véu’ cultural do status quo neste período, sendo que Elias, com sua personalidade corajosa e destemida, se impunha com sua fé e profecias, diante de uma sociedade de hierarquia estabelecida.
No contexto adverso em que o profeta se encontrava, seus dons e habilidades lhe garantiam possivelmente uma boa e adequada autoimagem, pois condizia com o desenvolvimento assertivo de suas abordagens e atuação em sua comunidade.
Porque é necessário salientar isso? Pelo constante aspecto distorcido entre a dimensão da realidade e a auto-percepção que se instaura nas pessoas com sintomas de desânimo e potencialmente suicidas. Nesse estado de desânimo a estima da pessoa e o reconhecimento de suas habilidades não condiz com a realidade e, muitas vezes, a pessoa se enxerga de forma derrotista.
Elias passou por um período com sua autopercepção distorcida, como afirma o texto bíblico: “não sou melhor do que os meus antepassados" (I Reis 19:4). Elias se sentia impotente, desanimado e perdido em seus objetivos na vida.
Podemos nos perguntar: como pode um homem de Deus ficar tão abatido assim? A Bíblia menciona homens e mulheres fiéis que ficaram neste estado e que desejaram morrer: Rebeca (Gên. 25:22), Jacó (Gen. 37:35), Moisés (Núm. 11:13-15) e Jó (Jó 14:13).
Elias se sentia desamparado e sozinho, perdendo a noção da importância de sua liderança em sua comunidade, uma vez que esta não respondia mais aos seus apelos. Este é um ponto importante em que devemos prestar atenção, pois se trata de limitação e perdas, e também de solidão.
Se nos debruçarmos sobre a história de Elias, percebemos que ele previu o início e o fim de grandes períodos de seca; ressuscitou uma criança; desafiou e enfrentou os profetas de Baal, ou seja, a Bíblia relata que este homem desenvolveu um trabalho magnífico antes de seu desânimo e desejo de morte.
Elias também apresentava vigor físico, demonstrado no fato dele ter corrido à frente do carro do rei Acabe cerca de vinte e cinco quilômetros (I Reis 18:46). Elias também caminhou por quarenta dias e quarenta noites até o Monte Horebe (1 Reis 19:8). Podemos concluir que Elias não tinha qualquer problema físico ou enfermidade.
Elias entra na “caverna”
Em I Reis 19:1-2 há o relato que Jezabel tinha intenção de matá-lo. Porém, parece que queria intimidá-lo pois se quisesse realmente matá-lo, o próprio mensageiro que levou o recado a Elias poderia tê-lo feito. Tal atitude gera nele um medo que provocou a sua fuga à vida e à sua ‘entrada na caverna’. (I Reis 19: 3-9).
É incrível como um homem que tinha as experiências que Elias teve, viesse a se intimidar, a sucumbir por algo tão desproporcional aos desafios que já tinha vencido.
A terra árida e seca tornou-se seu refúgio, metáfora de seus sentimentos: “e entrou no deserto, caminhando um dia. Chegou a um pé de giesta, sentou-se debaixo dele e orou, pedindo a morte. ‘Já tive o bastante, Senhor. Tira a minha vida; não sou melhor do que os meus antepassados’”. (I Reis 19:4).
Elias passou a se preocupar excessivamente com sua sobrevivência e, contraditoriamente, perdeu o interesse pela vida.
Esta contextualização de perda de status com sua comunidade, distorção da percepção de sua imagem, solidão e ameaça real pela sua vida, parecem que foram, para Elias, os fatores que desencadearam nele uma sequência de pensamentos e atitudes negativas e a ideação suicida.
Um processo (I Reis 19:3-4) de preocupação com a vida (“Elias teve medo e fugiu para salvar a vida”); isolamento social (“deixou o seu servo”); que culminou com a desistência pela vida (“orou, pedindo a morte”).
A vida neste momento perdeu o sentido, perdeu sua função social. Ele se mostra totalmente desamparado de uma rede social que poderia lhe proteger.
Nos relatos que encontramos nos aconselhamentos há ameaças reais que se interpõem na vida cotidiana como, por exemplo: falências financeiras; término de relacionamentos amorosos; divórcios; perda de emprego; fracasso profissional; injustiças; abandono social; perda de uma pessoa amada; etc. Elas podem ser o ‘gatilho’ para desencadear a falta de desejo pela vida e a entrada em uma ‘caverna espiritual’. Quase todas estas limitações estão implicadas em perda de papéis e funções sociais.
Deus trata de Elias
A Bíblia nos mostra como Deus tratou Elias em seu desânimo, tristeza e desistência da vida. Num primeiro momento, Deus ‘apenas’ providenciou subsistência das necessidades básicas, a alimentação: “Eis que anjo tocou nele e disse: ‘Levante-se e coma’. Elias olhou ao redor e ali, junto à sua cabeça, havia um pão assado sobre brasas quentes e um jarro de água. Ele comeu, bebeu e deitou-se de novo”. (I Reis 19:5-6).
Notamos que Deus não o questionou, não o interpelou no início, apenas lhe ofertou suas necessidades básicas: pão, água e o descanso seguro. Deus inicia um processo de apoio, conforme o que Elias suportava naquele momento. Isso certamente foi entendido pelo profeta: ‘não estou sozinho’.
No segundo momento, além de lhe ofertar o alimento e água, surge uma diretiva - o anjo enviado por Deus diz: “Levante-se e coma, pois a sua viagem será muito longa.” (I Reis 19:7).
Deus tratou Elias em um processo com etapas bem definidas, com base naquilo que Elias poderia fazer em cada momento: primeiro, permite que Elias se debruce sobre sua dor e desespero e recite suas lamúrias. Depois, lhe proporciona pão e água – itens básicos – um kit de sobrevivência. Em seguida, Deus lhe dá uma ordem: se alimente e ande. Não lhe disse para onde deveria ir, somente lhe ordenou: ‘coma e ande’.
Quem conhece uma pessoa profundamente desanimada entende esta diretiva. Simples, sem argumentos, apenas: faça!!! Coma e exercite-se. Caminhe em direção daquilo que pode fazer. Elias então caminhou pelo deserto 40 dias e 40 noites, o que demonstra aceitação, submissão e determinação.
Os profissionais da saúde sabem da importância e dos benefícios das atividades físicas para a liberação de endorfinas, hormônios que têm como principal função proporcionar sensações de bem estar e de prazer.
Ao chegar ao local determinado, o sintoma de desânimo novamente se faz presente. Percebemos aqui o processo de retroceder ao estado anterior, o desejo de voltar para dentro de si mesmo. Então nesse momento Deus o questiona: O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?
Possivelmente esta frase curta, deve ter sido com um tom de voz mais eloquente. Deus falou meio enfurecido: Elias! O que você está fazendo com sua vida? Acorda!
Então acontece um vendaval, um terremoto, um fogo e por último uma brisa suave, e entendemos que são metáforas da voz de Deus chamando Elias, em diferentes tons e com diferentes mensagens, pois Elias continuava a discutir, teimar e permanecer neste estado e validar seus questionamentos diante da ‘sua realidade’. (I Reis 19:11-14).
E neste último movimento de suavidade surge o mesmo questionamento: O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? E Elias, ainda teimosamente, responde em sua autocomiseração que estava solitário e com medo!
Então vem a diretiva final, o aconselhamento diretivo, daquilo que realmente vai tirar Elias daquele estado: volte a fazer aquilo que sabe fazer. Volte a fazer aquilo que faz bem. Volte ao seu contexto social, às suas funções e ao exercício de seus dons.
Estes são os processos terapêuticos que podemos seguir quando nos deparamos com uma pessoa que está desanimada a ponto de desistir da vida:
1. aceitação das ideações suicidas
2. promover atendimento e acolhimento das primazias da vida (pão e água)
3. direcionamento para aquilo que a pessoa é chamada, através de seus dons, redirecionando a novamente desempenhar suas funções, em novas instâncias e novas vivências.
Falências, vivências como o divórcio, perdas de emprego, econômicas, ou seja, de que ordem forem, são aspectos relativamente cotidianos na vida e que exigem novas adaptações. Reaprender a viver de outra forma envolve processos de resiliência que devem ser relembrados ou aprendidos e que, no período de ideação suicida, estão adormecidos.
- Kitty Kurzawa. Crp 2537. Mestre pela UFSC. Pós graduada em TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA. Professora titular pelo Grupo Eirene do Brasil. Psicóloga Clínica. Palestrante. Orientadora e Supervisora. Escritora de um capitulo do livro "Quando a dor se torna insuportável: - reflexões sobre por que as pessoas se suicidam". (2019) e organizadora e escritora do livro "Verdade e Mentira: uma análise cristã do fenômeno das fake news" (2020)
- Carlos “Catito” Grzybowski é psicólogo e terapeuta familiar, coordenador de EIRENE do Brasil. É autor de Acontece nas Melhores Famílias, Como se Livrar de um Mau Casamento, Macho e Fêmea os Criou, Pais Santos, Filhos Nem Tanto, entre outros.
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