Opinião
- 03 de novembro de 2017
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Qual a melhor trilha sonora para o culto?
Por Marcell Steuernagel
Vários recursos estão disponíveis para o leitor que busca entender o pensamento de Lutero em relação à música de forma sistemática. A literatura que lida com as ideias do reformador a respeito do assunto, costumam focar especificamente nos comentários de Lutero a respeito da música em si. Mas é possível também olhar para a forma como Lutero pensa a respeito dela no contexto mais abrangente de sua teologia da criação.
Em “O Som da Reforma” (CRV, 2017), articulo de forma aprofundada, três elementos específicos do pensamento de Lutero: sua insistência no uso do vernáculo, a questão da liberdade cristã e a horizontalidade de sua visão teológica; aspectos que favorecem a criação de ambientes musicais específicos. Nesta curta contribuição para a série de reflexões a respeito dos 500 anos da Reforma Protestante, da Aliança Evangélica Brasileira, discorro sobre as contribuições de Lutero relacionadas à música e à arte, com o intuito de repensarmos a eclesiologia e a prática da igreja, a partir desta perspectiva mais ampla.
O primeiro ponto se refere à diferenciação entre música “para o culto” e o “conceito de música”, de forma mais abrangente. É comum em círculos religiosos a divisão entre música “sacra” e “secular.” Esta divisão, além de confusa, gera um novo tipo de legalismo, contribuindo para a criação de “listas” de repertórios autorizados e condenados. Mas uma das características do pensamento de Lutero a respeito da implementação das medidas da reforma demonstram sua preocupação constante com a ideia de adequação. Se para Lutero a música é um presente de Deus, algo a ser desfrutado dentro da criação de forma plena, dentro e fora do ambiente de culto, também é verdade que certas estruturas musicais irão cumprir mais facilmente as demandas funcionais do ambiente do culto. Estas demandas funcionais estão ligadas às expectativas temáticas da liturgia, tais como confissão e exaltação, e, também a questões logísticas. Não se pode, por exemplo, exigir de uma comunidade a mesma agilidade vocal de um solista. Neste sentido, se o culto é o lugar de encontro dos fiéis, e, se este ambiente se propõe a ser inclusivo e convidativo, a música do culto precisa refletir estas prioridades. Com isto não quero sugerir que a música da igreja precisa ser sempre simples ou básica. Ela pode ser elaborada e complexa, e, há lugar para sons dissonantes e consonantes no contexto do culto, assim como há lugar para sofrimento e dor, além de alegria e júbilo. De qualquer forma, a música precisa ser adequada, servindo para dar voz à comunidade que cultua.
Estas demandas funcionais irão limitar quais repertórios seriam “adequados” para o ambiente comunitário. É importante frisar que estas demandas não têm a ver com estilo ou sonoridade, e, irão variar de contexto para contexto. Em vários aspectos referentes à liturgia do culto cristão, Lutero demonstra grande flexibilidade – este princípio se aplica também à questão da música. Sua correspondência, por exemplo, demonstra sua flexibilidade em relação à questão do uso de vestes clericais. Assim como é preciso “ouvir” cada comunidade em relação a diferentes aspectos do culto, é preciso também discernir a música adequada para cada comunidade local. Em outras palavras, o desafio é encontrar a trilha sonora certa.
Em segundo lugar, quero focar na própria teologia da criação de Lutero. Ao longo de seu desenvolvimento teológico na Universidade de Wittenberg, ele foi se distanciando da tradição escolástica, cristalizando uma teologia da criação bastante distinta da herança intelectual medieval. É importante lembrar do caráter especulativo desta tradição escolástica, que conectava toda a criação através de proporções e ressonâncias de acordo com a tradição grega. Nesta tradição platônica, diferentes modos musicais afetam de diversas maneiras a formação do caráter do ser humano, de forma benéfica ou maléfica. Em outas palavras, o poder da música é reconhecido, mas também é encarado com suspeita.
Lutero, embora fruto desta tradição, vai se distanciando dela em direção a uma concepção de generosidade. Para ele, a criação reflete não apenas a ordem de Deus, mas também sua generosidade e criatividade. É esta perspectiva que abre espaço para que Lutero trate a música (entre outras coisas) com uma generosidade distinta dos outros reformadores, como Calvino e Zwínglio. Estes se colocaram dentro da tradição agostiniana (que surge justamente da herança grega). Agostinho também reconhece a beleza e o poder da música, mas desconfia do prazer que ela pode causar e trata com desconfiança a “mistura” de deleite e adoração que é característica do exercício musical.
A generosidade de Lutero em relação à criação aparece também em relação ao ambiente em que a música é criada, ou seja, se a música é para ser desfrutada como parte da criação, é possível espelhar a diversidade da criação, na variedade de vernáculos, estilos, gêneros musicais, ritmos, melodias e texturas. Há espaço para toda música! Assim, toda a música encontra seu lugar na criação, embora nem todas as músicas encontrem seu lugar no ambiente de culto. Este é o ponto crucial desta argumentação: o reconhecimento de que a generosidade de Deus, através da criação, não se reflete apenas na variedade de músicas do mundo, mas no reconhecimento de que esta variedade é boa e santa, pois vem do próprio Deus!
Os dois pontos abordados aqui estão ligados à teologia da Reforma. Seria importante interligá-los na eclesiologia e na prática da igreja da Reforma. Se, por vezes, este processo parece confuso, não há problema! É tarefa nossa, como igreja, lidar com a multiplicidade caleidoscópica da natureza criada e interagir com manifestações culturais, próximas e distantes da nossa realidade. Isto se dá não apenas por causa do chamado missionário da igreja, que a empurra para estas interações. Ocorre, também, por causa do nosso chamado para viver plenamente no mundo criado por Deus. A arte e a música nos ajudam a lembrar que, embora machucada pelo pecado, esta natureza ainda reflete a generosidade criativa de um Deus que se deleita na obra de suas mãos. E mãos à obra!
Nota: Este texto foi escrito a partir da participação do autor em “Diálogos na Web 500 Anos Reforma Protestante”, uma iniciativa da Aliança Evangélica. Publicado graças à parceria entre Aliança Evangélica, Ultimato e Basileia.
• Marcell Steuernagel é músico e acadêmico. Mora nos Estados Unidos, onde cursa doutorado em música e igreja.
Leia mais
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Culto transformado em show
Adoração na igreja evangélica contemporânea
Toda música sacra é religiosa, mas nem toda música religiosa é sacra
A música e os músicos na igreja
Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro [Gerson Borges]
Imagem: Photo by Casey Clingan on Unsplash.
Vários recursos estão disponíveis para o leitor que busca entender o pensamento de Lutero em relação à música de forma sistemática. A literatura que lida com as ideias do reformador a respeito do assunto, costumam focar especificamente nos comentários de Lutero a respeito da música em si. Mas é possível também olhar para a forma como Lutero pensa a respeito dela no contexto mais abrangente de sua teologia da criação.
Em “O Som da Reforma” (CRV, 2017), articulo de forma aprofundada, três elementos específicos do pensamento de Lutero: sua insistência no uso do vernáculo, a questão da liberdade cristã e a horizontalidade de sua visão teológica; aspectos que favorecem a criação de ambientes musicais específicos. Nesta curta contribuição para a série de reflexões a respeito dos 500 anos da Reforma Protestante, da Aliança Evangélica Brasileira, discorro sobre as contribuições de Lutero relacionadas à música e à arte, com o intuito de repensarmos a eclesiologia e a prática da igreja, a partir desta perspectiva mais ampla.
O primeiro ponto se refere à diferenciação entre música “para o culto” e o “conceito de música”, de forma mais abrangente. É comum em círculos religiosos a divisão entre música “sacra” e “secular.” Esta divisão, além de confusa, gera um novo tipo de legalismo, contribuindo para a criação de “listas” de repertórios autorizados e condenados. Mas uma das características do pensamento de Lutero a respeito da implementação das medidas da reforma demonstram sua preocupação constante com a ideia de adequação. Se para Lutero a música é um presente de Deus, algo a ser desfrutado dentro da criação de forma plena, dentro e fora do ambiente de culto, também é verdade que certas estruturas musicais irão cumprir mais facilmente as demandas funcionais do ambiente do culto. Estas demandas funcionais estão ligadas às expectativas temáticas da liturgia, tais como confissão e exaltação, e, também a questões logísticas. Não se pode, por exemplo, exigir de uma comunidade a mesma agilidade vocal de um solista. Neste sentido, se o culto é o lugar de encontro dos fiéis, e, se este ambiente se propõe a ser inclusivo e convidativo, a música do culto precisa refletir estas prioridades. Com isto não quero sugerir que a música da igreja precisa ser sempre simples ou básica. Ela pode ser elaborada e complexa, e, há lugar para sons dissonantes e consonantes no contexto do culto, assim como há lugar para sofrimento e dor, além de alegria e júbilo. De qualquer forma, a música precisa ser adequada, servindo para dar voz à comunidade que cultua.
Estas demandas funcionais irão limitar quais repertórios seriam “adequados” para o ambiente comunitário. É importante frisar que estas demandas não têm a ver com estilo ou sonoridade, e, irão variar de contexto para contexto. Em vários aspectos referentes à liturgia do culto cristão, Lutero demonstra grande flexibilidade – este princípio se aplica também à questão da música. Sua correspondência, por exemplo, demonstra sua flexibilidade em relação à questão do uso de vestes clericais. Assim como é preciso “ouvir” cada comunidade em relação a diferentes aspectos do culto, é preciso também discernir a música adequada para cada comunidade local. Em outras palavras, o desafio é encontrar a trilha sonora certa.
Em segundo lugar, quero focar na própria teologia da criação de Lutero. Ao longo de seu desenvolvimento teológico na Universidade de Wittenberg, ele foi se distanciando da tradição escolástica, cristalizando uma teologia da criação bastante distinta da herança intelectual medieval. É importante lembrar do caráter especulativo desta tradição escolástica, que conectava toda a criação através de proporções e ressonâncias de acordo com a tradição grega. Nesta tradição platônica, diferentes modos musicais afetam de diversas maneiras a formação do caráter do ser humano, de forma benéfica ou maléfica. Em outas palavras, o poder da música é reconhecido, mas também é encarado com suspeita.
Lutero, embora fruto desta tradição, vai se distanciando dela em direção a uma concepção de generosidade. Para ele, a criação reflete não apenas a ordem de Deus, mas também sua generosidade e criatividade. É esta perspectiva que abre espaço para que Lutero trate a música (entre outras coisas) com uma generosidade distinta dos outros reformadores, como Calvino e Zwínglio. Estes se colocaram dentro da tradição agostiniana (que surge justamente da herança grega). Agostinho também reconhece a beleza e o poder da música, mas desconfia do prazer que ela pode causar e trata com desconfiança a “mistura” de deleite e adoração que é característica do exercício musical.
A generosidade de Lutero em relação à criação aparece também em relação ao ambiente em que a música é criada, ou seja, se a música é para ser desfrutada como parte da criação, é possível espelhar a diversidade da criação, na variedade de vernáculos, estilos, gêneros musicais, ritmos, melodias e texturas. Há espaço para toda música! Assim, toda a música encontra seu lugar na criação, embora nem todas as músicas encontrem seu lugar no ambiente de culto. Este é o ponto crucial desta argumentação: o reconhecimento de que a generosidade de Deus, através da criação, não se reflete apenas na variedade de músicas do mundo, mas no reconhecimento de que esta variedade é boa e santa, pois vem do próprio Deus!
Os dois pontos abordados aqui estão ligados à teologia da Reforma. Seria importante interligá-los na eclesiologia e na prática da igreja da Reforma. Se, por vezes, este processo parece confuso, não há problema! É tarefa nossa, como igreja, lidar com a multiplicidade caleidoscópica da natureza criada e interagir com manifestações culturais, próximas e distantes da nossa realidade. Isto se dá não apenas por causa do chamado missionário da igreja, que a empurra para estas interações. Ocorre, também, por causa do nosso chamado para viver plenamente no mundo criado por Deus. A arte e a música nos ajudam a lembrar que, embora machucada pelo pecado, esta natureza ainda reflete a generosidade criativa de um Deus que se deleita na obra de suas mãos. E mãos à obra!
Nota: Este texto foi escrito a partir da participação do autor em “Diálogos na Web 500 Anos Reforma Protestante”, uma iniciativa da Aliança Evangélica. Publicado graças à parceria entre Aliança Evangélica, Ultimato e Basileia.
• Marcell Steuernagel é músico e acadêmico. Mora nos Estados Unidos, onde cursa doutorado em música e igreja.
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Se o Espírito Santo é livre para agir, para que serve a liturgia?
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Imagem: Photo by Casey Clingan on Unsplash.
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