Opinião
- 20 de setembro de 2018
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Preconceituoso, xenofóbico e nada politicamente correto: "O Orgulho"
Por Carlos Caldas
O filme O orgulho (Le Brio) é uma produção francesa de 2018, do diretor franco-israelense Yvan Attal. Na Paris dos nossos dias, Neila Salah (Camelia Jordana), uma jovem francesa, mas de origem argelina, presumivelmente muçulmana, estuda Direito na prestigiosa Sorbonne. Já no primeiro dia de aula, tem um problema com o Professor Pierre Mazard (Daniel Auteil), representante de uma “velha guarda” cultural: ele é branco, preconceituoso, xenofóbico, e não tem a menor preocupação em ser politicamente correto, pois não se incomoda em falar o que pensa, não se importando em ferir sensibilidades de quem quer seja com sua sinceridade “exagerada”, digamos assim. Como nos nossos dias tudo (ou quase tudo) que acontece cai nas redes sociais quase que instantaneamente, as ofensas do Professor Mazard são filmadas e postadas. Diante de uma chuva de pedidos pela cabeça de Mazard, o diretor da faculdade lhe dá uma chance de se redimir: ele teria que preparar a jovem Neila para um concurso de retórica entre estudantes de direito de várias faculdades de toda a França. A partir daí se iniciará um relacionamento entre mestre e discípula, marcado por desconfiança no princípio, mas aos pouco as dificuldades são superadas. Mazard recorre a Schopenhauer (“Como vencer um debate sem precisar ter razão”) como o guia das lições que passa a Neila. Algumas das aulas são realizadas de uma maneira nem um pouco ortodoxa, como por exemplo, quando ele a manda declamar em um vagão do metrô.
O filme pode ser classificado pelo neologismo “dramédia”, isto é, mistura de drama com comédia. Questões atuais, candentes e polêmicas são trabalhadas no filme, sendo a principal a questão da adaptação social e cultural de cidadãos que tecnicamente são tão franceses quanto os franceses “legítimos” (entre muitas aspas), mas que na prática, são cidadãos de segunda categoria. Emblemático desta situação é Mounir, o namorado de Neila, que fala francês, mas comete erros gramaticais básicos, não tem instrução universitária e ganha a vida como motorista de Uber, ocupação que o orgulhoso Mazard deplora. O filme mostra como os franco-argelinos vivem não exatamente em um gueto, mas vivem entre eles, e os contatos que têm com os franceses caucasianos, de classe média-alta e alta – como o sofisticado intelectualmente Professor Mazard – se dá apenas no nível profissional (como prestadores de serviços), nunca no pessoal.
Há várias camadas de interpretação em O orgulho. A mais superficial é a que vê o filme como uma narrativa de superação, pois a jovem Neila vence etapa após etapa do concurso e, no fim, é mostrada com indisfarçável e compreensível orgulho trabalhando como advogada. Neste nível de interpretação, Neila é uma vencedora, que supera obstáculos e barreiras, e vence em uma sociedade na qual ela é minoria.
Todavia, é possível ver, em um nível um pouco mais profundo, outra possibilidade de leitura do filme. Nesta outra camada, a vitória de Neila não foi outra coisa a não ser sua submissão ao sistema sociocultural dominante: no início do filme, ela se veste de maneira despojada, usando tênis, jeans e moletom, e seu cabelo ondulado “ao natural”. No fim do filme, veste-se com formalidade, e seu cabelo não está mais “selvagem”, mas “domesticado”, graças a escovas e alisamentos. Talvez o cabelo de Neila seja uma metáfora, ou uma ilustração, do que acontece com ela: para vencer, teve que se submeter ao sistema.
Pensando nesta segunda possibilidade de interpretação do filme: o diretor Yvan Attal não apresenta a situação de Neila se adaptar ao sistema em perspectiva piegas, como se isto fosse em si algo errado. Não há no filme uma crítica social barata e rasa. A meu ver, este é um dos grandes pontos do filme. A narrativa de Attal também não é maniqueísta, do tipo, franceses brancos ricos e instruídos são malvados e franco-argelinos morenos sem instrução e pobres são bonzinhos. Há nos dois grupos atitudes e motivações boas e erradas. Neila fica muito revoltada quando descobre que Mazard a preparou para o concurso apenas para salvar seu emprego. Mas é exatamente Mounir, que não tem instrução superior formal, que mostrará que ela também aprendeu muito com Mazard, e que isto foi importante para ela. Mazard por sua vez, ainda que forçado, porque não fez nada voluntariamente, na convivência com Neila aprenderá a ser menos intolerante e menos impaciente com o diferente.
As atuações de Auteil e Jordana são simplesmente magníficas. Os alívios cômicos são usados no filme na medida certa, com algumas falas muito engraçadas, mas distantes, muito distantes, de um humor esculhambado tipo “comédia pastelão”. Estamos vivendo uma época em que acontece cada vez mais um fenômeno curioso: o mundo encolheu. Por isso, não será difícil que surjam situações que nos façam conviver com pessoas de outra língua, outra tradição cultural e outro estrato socioeconômico. O “outro”, diferente de nós, é (ou pode vir a ser) nosso vizinho, nosso colega de trabalho. O orgulho é um convite e um desafio a pensar em como vamos nos relacionar com este “outro”.
Leia mais
» Cinema e Fé Cristã – Vendo filmes com sabedoria e discernimento
» Engolidos Pela Cultura Pop – Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã
» Sobre os que pretendem mudar o mundo, mas não sabem cuidar da própria vida
O filme O orgulho (Le Brio) é uma produção francesa de 2018, do diretor franco-israelense Yvan Attal. Na Paris dos nossos dias, Neila Salah (Camelia Jordana), uma jovem francesa, mas de origem argelina, presumivelmente muçulmana, estuda Direito na prestigiosa Sorbonne. Já no primeiro dia de aula, tem um problema com o Professor Pierre Mazard (Daniel Auteil), representante de uma “velha guarda” cultural: ele é branco, preconceituoso, xenofóbico, e não tem a menor preocupação em ser politicamente correto, pois não se incomoda em falar o que pensa, não se importando em ferir sensibilidades de quem quer seja com sua sinceridade “exagerada”, digamos assim. Como nos nossos dias tudo (ou quase tudo) que acontece cai nas redes sociais quase que instantaneamente, as ofensas do Professor Mazard são filmadas e postadas. Diante de uma chuva de pedidos pela cabeça de Mazard, o diretor da faculdade lhe dá uma chance de se redimir: ele teria que preparar a jovem Neila para um concurso de retórica entre estudantes de direito de várias faculdades de toda a França. A partir daí se iniciará um relacionamento entre mestre e discípula, marcado por desconfiança no princípio, mas aos pouco as dificuldades são superadas. Mazard recorre a Schopenhauer (“Como vencer um debate sem precisar ter razão”) como o guia das lições que passa a Neila. Algumas das aulas são realizadas de uma maneira nem um pouco ortodoxa, como por exemplo, quando ele a manda declamar em um vagão do metrô.
O filme pode ser classificado pelo neologismo “dramédia”, isto é, mistura de drama com comédia. Questões atuais, candentes e polêmicas são trabalhadas no filme, sendo a principal a questão da adaptação social e cultural de cidadãos que tecnicamente são tão franceses quanto os franceses “legítimos” (entre muitas aspas), mas que na prática, são cidadãos de segunda categoria. Emblemático desta situação é Mounir, o namorado de Neila, que fala francês, mas comete erros gramaticais básicos, não tem instrução universitária e ganha a vida como motorista de Uber, ocupação que o orgulhoso Mazard deplora. O filme mostra como os franco-argelinos vivem não exatamente em um gueto, mas vivem entre eles, e os contatos que têm com os franceses caucasianos, de classe média-alta e alta – como o sofisticado intelectualmente Professor Mazard – se dá apenas no nível profissional (como prestadores de serviços), nunca no pessoal.
Há várias camadas de interpretação em O orgulho. A mais superficial é a que vê o filme como uma narrativa de superação, pois a jovem Neila vence etapa após etapa do concurso e, no fim, é mostrada com indisfarçável e compreensível orgulho trabalhando como advogada. Neste nível de interpretação, Neila é uma vencedora, que supera obstáculos e barreiras, e vence em uma sociedade na qual ela é minoria.
Todavia, é possível ver, em um nível um pouco mais profundo, outra possibilidade de leitura do filme. Nesta outra camada, a vitória de Neila não foi outra coisa a não ser sua submissão ao sistema sociocultural dominante: no início do filme, ela se veste de maneira despojada, usando tênis, jeans e moletom, e seu cabelo ondulado “ao natural”. No fim do filme, veste-se com formalidade, e seu cabelo não está mais “selvagem”, mas “domesticado”, graças a escovas e alisamentos. Talvez o cabelo de Neila seja uma metáfora, ou uma ilustração, do que acontece com ela: para vencer, teve que se submeter ao sistema.
Pensando nesta segunda possibilidade de interpretação do filme: o diretor Yvan Attal não apresenta a situação de Neila se adaptar ao sistema em perspectiva piegas, como se isto fosse em si algo errado. Não há no filme uma crítica social barata e rasa. A meu ver, este é um dos grandes pontos do filme. A narrativa de Attal também não é maniqueísta, do tipo, franceses brancos ricos e instruídos são malvados e franco-argelinos morenos sem instrução e pobres são bonzinhos. Há nos dois grupos atitudes e motivações boas e erradas. Neila fica muito revoltada quando descobre que Mazard a preparou para o concurso apenas para salvar seu emprego. Mas é exatamente Mounir, que não tem instrução superior formal, que mostrará que ela também aprendeu muito com Mazard, e que isto foi importante para ela. Mazard por sua vez, ainda que forçado, porque não fez nada voluntariamente, na convivência com Neila aprenderá a ser menos intolerante e menos impaciente com o diferente.
As atuações de Auteil e Jordana são simplesmente magníficas. Os alívios cômicos são usados no filme na medida certa, com algumas falas muito engraçadas, mas distantes, muito distantes, de um humor esculhambado tipo “comédia pastelão”. Estamos vivendo uma época em que acontece cada vez mais um fenômeno curioso: o mundo encolheu. Por isso, não será difícil que surjam situações que nos façam conviver com pessoas de outra língua, outra tradição cultural e outro estrato socioeconômico. O “outro”, diferente de nós, é (ou pode vir a ser) nosso vizinho, nosso colega de trabalho. O orgulho é um convite e um desafio a pensar em como vamos nos relacionar com este “outro”.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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