Opinião
- 24 de julho de 2015
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Para que se esconder de si mesmo?
“Ida” é um filme polonês que ganhou o Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro esse ano. Apesar de ter ganhado a honraria, os filmes indicados foram recebidos com honras pela crítica e há rumores que talvez “Ida” não tenha sido a melhor escolha para o prêmio. Fora a constatação de que os filmes que concorrem a tal categoria são, por natureza, muitíssimo diferentes dos filmes das principais competições, angariando muitos outros prêmios ao redor do mundo, muito mais significativos que o Oscar, em escala global. Contudo, “Ida” é um filme muito interessante e imensamente tocante.
Silencioso, a película começa com Anna, uma órfã que foi criada em convento, a poucos dias de fazer seus votos a fim de tornar-se freira. Tomada pelas ocupações do convento, uma das freiras a chama noticiando que sua tia, única parente viva, respondeu a uma das cartas enviadas pelo convento, dizendo que não poderia comparecer aos votos da sobrinha. Anna deve passar alguns dias com a tia, Wanda, antes dos votos. Sem nunca tê-la conhecido, Anna resiste à ideia de sair do convento para tal visita, mas cede ante a insistência da superior.
A jovem é surpreendida por alguns fatos quando encontra a tia. Descobre que seu nome é Ida, que é judia e que seus pais foram mortos por causa de sua nacionalidade. O que se segue ao primeiro dia, difícil e conflituoso, entre sobrinha e tia é uma jornada em busca do túmulo dos pais da órfã. Wanda, uma juíza que teve seus dias de glória no partido comunista, vive a decadência do alcoolismo, a vaidade das relações, a dor do desencanto e esquecimento. É uma figura oposta à de Anna, ou Ida, que regra-se com o rigor do convento. Limitadoras como são as aparências e as descrições, o que se passa entre tia e sobrinha é uma relação intensa de descobertas e emoções, como as relações costumam promover.
A descoberta do paradeiro dos pais é também a descoberta do paradeiro de Ida e Wanda. Já não é mais possível chamar a protagonista de Anna, mas talvez ela ainda não seja Ida. Descobrir-se é um processo doloroso, um desnudar do passado e das aparências diante de si e dos outros. A tia não é o que os olhos revelam e Anna se depara com um mundo, interior e exterior, maior que as paredes do convento e as paredes de sua religiosidade em seu corpo coberto pelos hábitos de freira.
Em uma cena belíssima, a jovem tira o hábito da cabeça ante o espelho, revelando seus longos cabelos ruivos, que só vemos em cenas em que ela deita na cama, quando silencia ante o sono que não vem, talvez levada pelos pensamentos que os hábitos de freira não permitem. Anna começa a ver Ida, ou o que pode ser Ida, pois Ida pode ser o que quiser. Cabe à Anna mediar quem se descobriu ser e quem se é, a freira e a judia, a santa por trás das paredes e a pecadora que expõe seu corpo às mazelas. Isso fica evidente em um embate entre as personagens quando Wanda diz: “Então você é a santa e eu sou a vagabunda? Seu Jesus adorava gente como eu...”.
Esconder-se já não é mais uma opção para Anna... Nem para Wanda. Agora existe um laço de afeto entre as duas, laço que transcende suas opções na vida e que desrespeita concepções reducionistas do outro. Wanda não é a vagabunda e Anna não é a santa. Esse afeto obriga ambas a se exporem diante de si mesmas e do outro: a tia sente falta da sobrinha e a influência que esse encontro causou sob o modo que vive a vida; já a sobrinha não consegue fazer seus votos, agora em dúvida acerca de seu futuro e vocação. A relação entre as duas, ou o efeito dessa relação, é mais poderoso que o dogma religioso e o desencanto niilista.
Já não há mais volta: é preciso mudar, é preciso decidir ante o corpo nu no espelho. É preciso uma ação ante o desespero de estar livre, sem o amparo da instituição religiosa ou da desilusão. Anna coloca-se no lugar da tia e no caminho de volta já não encontra Anna, encontra Ida – essa que irrompe em seus poros. Anna, antes sempre mal enquadrada, sempre a margem, no canto, agora está no centro da tela, esbaforida caminhando por uma estrada de terra.
E aqui ficamos. O que fazer com Anna que cremos ser? O que fazer com nossos esquemas de nos manter em caminhos de previsibilidade e falsa segurança? Deus, esse rebelde, não é um leão domado, como disse C. S. Lewis.
É tempo de abandonarmos Anna e encarar Ida nos olhos. Pois é só através de Ida que existe a possibilidade de vermos Deus. Ele, que não se interessa em seguranças e dogmas, sejam eles religiosos ou não. Sejamos nós os maiores na Terra ou o mais vil dos pecadores, é necessário o abandono de nossas ilusões. Retirarmos o hábito de nossos cabelos e encarar a beleza e fragilidade de nossos cabelos ruivos, todo dia. Ele habita nas fraquezas que insistimos em esconder. Ele nos quer desarmados de nossa própria enganação.
• Gabriel Brisola tem 24 anos, é jornalista e fotógrafo.
Foto: Freeimages
Silencioso, a película começa com Anna, uma órfã que foi criada em convento, a poucos dias de fazer seus votos a fim de tornar-se freira. Tomada pelas ocupações do convento, uma das freiras a chama noticiando que sua tia, única parente viva, respondeu a uma das cartas enviadas pelo convento, dizendo que não poderia comparecer aos votos da sobrinha. Anna deve passar alguns dias com a tia, Wanda, antes dos votos. Sem nunca tê-la conhecido, Anna resiste à ideia de sair do convento para tal visita, mas cede ante a insistência da superior.
A jovem é surpreendida por alguns fatos quando encontra a tia. Descobre que seu nome é Ida, que é judia e que seus pais foram mortos por causa de sua nacionalidade. O que se segue ao primeiro dia, difícil e conflituoso, entre sobrinha e tia é uma jornada em busca do túmulo dos pais da órfã. Wanda, uma juíza que teve seus dias de glória no partido comunista, vive a decadência do alcoolismo, a vaidade das relações, a dor do desencanto e esquecimento. É uma figura oposta à de Anna, ou Ida, que regra-se com o rigor do convento. Limitadoras como são as aparências e as descrições, o que se passa entre tia e sobrinha é uma relação intensa de descobertas e emoções, como as relações costumam promover.
A descoberta do paradeiro dos pais é também a descoberta do paradeiro de Ida e Wanda. Já não é mais possível chamar a protagonista de Anna, mas talvez ela ainda não seja Ida. Descobrir-se é um processo doloroso, um desnudar do passado e das aparências diante de si e dos outros. A tia não é o que os olhos revelam e Anna se depara com um mundo, interior e exterior, maior que as paredes do convento e as paredes de sua religiosidade em seu corpo coberto pelos hábitos de freira.
Em uma cena belíssima, a jovem tira o hábito da cabeça ante o espelho, revelando seus longos cabelos ruivos, que só vemos em cenas em que ela deita na cama, quando silencia ante o sono que não vem, talvez levada pelos pensamentos que os hábitos de freira não permitem. Anna começa a ver Ida, ou o que pode ser Ida, pois Ida pode ser o que quiser. Cabe à Anna mediar quem se descobriu ser e quem se é, a freira e a judia, a santa por trás das paredes e a pecadora que expõe seu corpo às mazelas. Isso fica evidente em um embate entre as personagens quando Wanda diz: “Então você é a santa e eu sou a vagabunda? Seu Jesus adorava gente como eu...”.
Esconder-se já não é mais uma opção para Anna... Nem para Wanda. Agora existe um laço de afeto entre as duas, laço que transcende suas opções na vida e que desrespeita concepções reducionistas do outro. Wanda não é a vagabunda e Anna não é a santa. Esse afeto obriga ambas a se exporem diante de si mesmas e do outro: a tia sente falta da sobrinha e a influência que esse encontro causou sob o modo que vive a vida; já a sobrinha não consegue fazer seus votos, agora em dúvida acerca de seu futuro e vocação. A relação entre as duas, ou o efeito dessa relação, é mais poderoso que o dogma religioso e o desencanto niilista.
Já não há mais volta: é preciso mudar, é preciso decidir ante o corpo nu no espelho. É preciso uma ação ante o desespero de estar livre, sem o amparo da instituição religiosa ou da desilusão. Anna coloca-se no lugar da tia e no caminho de volta já não encontra Anna, encontra Ida – essa que irrompe em seus poros. Anna, antes sempre mal enquadrada, sempre a margem, no canto, agora está no centro da tela, esbaforida caminhando por uma estrada de terra.
E aqui ficamos. O que fazer com Anna que cremos ser? O que fazer com nossos esquemas de nos manter em caminhos de previsibilidade e falsa segurança? Deus, esse rebelde, não é um leão domado, como disse C. S. Lewis.
É tempo de abandonarmos Anna e encarar Ida nos olhos. Pois é só através de Ida que existe a possibilidade de vermos Deus. Ele, que não se interessa em seguranças e dogmas, sejam eles religiosos ou não. Sejamos nós os maiores na Terra ou o mais vil dos pecadores, é necessário o abandono de nossas ilusões. Retirarmos o hábito de nossos cabelos e encarar a beleza e fragilidade de nossos cabelos ruivos, todo dia. Ele habita nas fraquezas que insistimos em esconder. Ele nos quer desarmados de nossa própria enganação.
• Gabriel Brisola tem 24 anos, é jornalista e fotógrafo.
Foto: Freeimages
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