Opinião
- 18 de fevereiro de 2019
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Pouco ou muito: o que te faz contente?
Por Vilson Scholz
Se alguém disser, “estou contente”, o que isto sugere a você? Provavelmente a ideia de que a pessoa está feliz ou alegre. No entanto, quando Paulo diz, em Filipenses 4.11, que aprendeu a “viver contente em toda e qualquer situação”, não está falando sobre alegria, mas sobre satisfação, sobre contentamento.
Será que podemos dizer, assim sem mais nem menos, que estamos contentes, no sentido de nos contentarmos com o que temos? Percebe-se contentamento no Brasil? E o povo cristão é um povo que é marcado pelo contentamento? Li um dado que parece bastante realista, embora seja fruto de uma pesquisa feita no hemisfério norte: a metade dos cristãos não se sente segura em termos financeiros e, de cada 100 crentes, 85 dizem que não têm recursos suficientes para ajudar outras pessoas, de forma generosa. Portanto, trata-se de um assunto que merece reflexão.
Quero fazer uma rápida pesquisa bíblica, começando com o livro de Provérbios e concluindo com o Novo Testamento. Cabe o registro de que, embora não sejam muitos os textos que tratam do assunto de forma específica, será impossível esgotar o tema.
Começo com o sábio, no livro de Provérbios. Contrariando o que muitos consideram senso comum, especialmente em contextos onde reina o que se chama de corrupção sistêmica, ele afirma que “melhor é o pouco, havendo justiça, do que grandes rendimentos com injustiça” (Pv 16.8). No capítulo anterior (Pv 15.16), ele já havia se expressado em termos semelhantes, apenas mais teológicos: “Melhor é o pouco, havendo o temor do SENHOR, do que um grande tesouro onde há inquietação”. O contentamento brota do temor do Senhor.
Agora, o quanto é “o pouco”? O sábio não responde. Apenas contrasta isso com grandes rendimentos e com um grande tesouro. Um quadro mais completo talvez se possa obter em Provérbios 30.7-9. É um texto conhecido, mas que vale a pena conhecer cada vez mais. São palavras de Agur, que se constituem na única oração que aparece no livro de Provérbios. Diz assim: “Duas coisas te peço, ó Deus; não recuse o meu pedido, antes que eu morra: afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem a pobreza nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário, para não acontecer que, estando eu farto, te negue e diga: ‘Quem é o SENHOR?’ Ou que, empobrecido, venha a furtar e profane o nome de Deus”. Nem pobreza nem riqueza. Parece, assim, um padrão classe média, mas é, no fundo, um modelo ideal que aparece ao longo de toda a Bíblia. Afinal, a Bíblia jamais idealiza a pobreza e não se cansa de advertir contra os perigos da riqueza. Mas, no caso de Agur, não se trata de um contentamento acomodatício, pois ele não está dizendo: “Qualquer coisa serve, se esta é a vontade de Deus”. Ele tem uma ambição: nem isto nem aquilo, mas o que me for necessário. Contentamento não é sinônimo de acomodação; é o oposto da ganância. E Agur coloca tudo numa perspectiva teológica, na medida em que essa sua “ambição” é expressa em oração a Deus.
Passando ao Novo Testamento, bem no portal encontramos a figura de João Batista. Segundo o relato que é peculiar a Lucas, no capítulo 3 (versículos 10 a 14), as multidões e algumas classes específicas quiseram saber o que era, na prática, produzir “frutos dignos de arrependimento” (Lc 3.8). A pergunta que se repete é: O que é que devemos fazer? Aos soldados, que eram também polícia, João responde: “Contentem-se com o salário que vocês recebem” (Lc 3.14). Será que João era contra a ideia de pedir aumento salarial? Se é que era possível fazer algo assim naquele tempo, talvez seja uma conclusão rápida demais. À luz da primeira parte do versículo (“não sejam prepotentes, não façam denúncias falsas”), a ênfase reside nisto: contentem-se com o salário. Em outras palavras, não tirem proveito da farda, para, por meio de violência, conseguir uma renda extra.
Falar sobre o ensino de Jesus – “a vida de uma pessoa não consiste na abundância dos bens que ela tem” (Lc 12.15) e “a vida é mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as roupas” (Lc 12.23) – tornaria este estudo longo demais. Passo diretamente ao apóstolo Paulo, que é, com certeza, o teólogo do contentamento. (Além de textos em Paulo, o tema aparece também, com ênfase, em Hb 13.5.).
Nos textos de Filipenses 4.11 e 1Timóteo 6.6, Paulo faz uso de palavras que, em nossas traduções, ficam como que ofuscadas, mas que, no contexto daquele tempo, devem ter causado maior impacto. Em Filipenses 4.11, Paulo afirma que aprendeu a ser “autárquico” (no grego, autárkes). Em 1Timóteo 6.6, ele faz uso do substantivo que vem da mesma raiz (no grego, autárkeia). Autárquico é aquilo que preserva a sua autonomia. Ser “autárquico” era a grande ambição do filósofo grego, em especial do impassível estoico. O grande ideal era ter tudo, sem precisar de nada nem depender de ninguém. Epicteto, da escola estoica, se expressou assim: “Se você está à procura de algum bem, trate de encontrá-lo em você mesmo”. Um cristão dificilmente diria algo assim.
Se Paulo faz uso de linguagem que era corrente entre os estoicos, será que ele aderiu à filosofia deles? Certamente que não. O que confirma essa negativa é o contexto em que aparecem os termos que Paulo emprega.
Em 1Timóteo 6, Paulo escreve um parágrafo (6.6-10) a propósito de falsos mestres que imaginavam que a religião (“piedade”) era fonte de lucro. Paulo ensina que a religião é, de fato, grande fonte de lucro “com o contentamento”. A continuação do texto explica o que é esse contentamento (autárkeia): “tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes”. Na verdade, ao inserir o contentamento, Paulo como que “coloca o pé na porta” dos que querem transformar a religião em fonte de lucro. O grande lucro é, a rigor, o contentamento que a religião cristã traz.
Em Filipenses 4, Paulo agradece aos irmãos de Filipos a ajuda recebida, chegando inclusive a “passar um recibo” (v. 18). O texto como um todo é um magnífico exemplo de como agradecer sem ser grosseiro, mas também sem passar a noção de ser “dinheirista”. Paulo diz: Na verdade, não era preciso; mas, por outro lado, vocês fizeram bem em me ajudar. E nesse contexto ele se declara “contente” (autárkes). Ele não depende de muito e não depende de pouco. No entanto, ele não se basta: pode enfrentar qualquer situação (“tudo posso”) naquele que o fortalece, Cristo. Ao mesmo tempo, reconhece a ajuda dos filipenses, que eram participantes na proclamação do evangelho desde o início (Fp 1.5). Paulo tem contentamento, mas fica alegre ao receber ajuda. E, acima de tudo, reconhece a presença daquele que o fortalece. Um estoico jamais se expressaria assim.
Há mais um texto que merece um rápido registro: 2Coríntios 9.8. Aqui, Paulo se dirige a cristãos temerosos, que pensavam que, caso fossem abrir o coração e a mão para os irmãos pobres da Judeia, entrariam também eles na lista dos necessitados. Paulo assegura a esses coríntios (criando inclusive uma bela aliteração, para facilitar a memorização) que Deus lhes daria “em tudo sempre toda suficiência (en pantí pántote pásan autárkeia)”. O uso do termo autárkeia deve ter chamado a atenção dos cristãos de Corinto. No entanto, Paulo deixa claro que suficiência não é ter todos os recursos em si e de si mesmo, mas resulta de um receber da parte de Deus e se completa num dar, ou seja, em abundância de boas obras.
Acho que isto ajuda a responder à pergunta: O quanto é “suficiente”? O bilionário John Rockefeller teria respondido que, em termos de dinheiro, suficiente é “sempre um pouquinho mais”. Paulo responderia: suficiente é quando você começa a compartilhar, pouco importando quanto você tem. O autor da pesquisa que citei no início deste texto chegou à conclusão de que acumular bens não traz a mesma paz e liberdade sentida por aqueles que decidiram que têm o suficiente para poderem compartilhar, mesmo que esse ter o suficiente não inclua tudo aquilo que se poderia imaginar como parte de uma “vida boa”. Muitos talvez não concordassem que aquilo que essas pessoas têm é suficiente, mas pessoas que puseram na cabeça que têm mais do que precisam, e passam a compartilhar, desfrutam de um impressionante contentamento. No fundo, contentamento tem aquele que compartilha, sabendo que tudo recebe – de Deus.
• Vilson Scholz é pastor e professor de Teologia Exegética, tem mestrado e doutorado na área do Novo Testamento. Consultor de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, Scholz é professor da Universidade Luterana do Brasil, em Canoas (RS), tradutor do Novo Testamento Interlinear Grego-Português (SBB) e autor de Princípios de Interpretação Bíblica (Editora da Ulbra).
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