Opinião
- 29 de janeiro de 2010
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Política pública indígena -- um testemunho
Leonízia Firmo
A política pública indígena nada mais é do que um reflexo da política pública nacional, com projetos que deram certo, outros que deram errado, e outros ainda em avaliação. Quero comentar sobre a situação nas áreas de educação e saúde na região em que vivo: São Gabriel da Cachoeira, noroeste do Amazonas -- o município mais indígena do Brasil, e que aglomera cerca de vinte etnias.
Por muito tempo, nós, indígenas, sofremos com o desprezo das autoridades, e aos poucos ganhamos voz e lutamos para que nos enxergassem como pessoas. A mesma necessidade que um não-indígena tem, nós também experimentamos. Temos o mesmo direito como pessoa, como ser humano.
Há alguns anos, era vergonhoso para nós falar a nossa língua nas escolas. Éramos discriminados porque tínhamos outra língua e não dominávamos bem o português. O indígena que vinha estudar na cidade (porque em sua aldeia não havia escola), era discriminado por falar de forma diferente e com um forte sotaque. Depois de muitos anos, a cidade tem como línguas oficiais, além do português, três línguas indígenas: Nheengatu, Tukano e Baniwa, que foram aprovadas pela lei municipal 145/2002, de 22 de novembro de 2002. São línguas tradicionais faladas pela maioria dos habitantes, dos quais 95% são indígenas. São Gabriel da Cachoeira se tornou o único município do Brasil que tem três línguas oficiais indígenas, sendo obrigatório o estudo de pelo menos uma delas nas escolas da cidade.
Ao participar das conferências que são realizadas na cidade, quem não fala pelo menos uma das línguas indígenas não entende muita coisa, porque agora fazemos questão de usar nossa língua para discutirmos as necessidades na área da educação. As principais reivindicações têm sido por uma educação diferenciada para os povos indígenas. Lutamos por um currículo que seja contextualizado às nossas necessidades e não queremos seguir o mesmo currículo do “branco”. Já temos tido grandes vitórias, como um curso superior para professores indígenas. Hoje, grande parte deles possui o curso superior. Alguns já possuem mestrado e alguns até doutorado. Com isso queremos mostrar que temos a mesma capacidade e inteligência do homem branco. Porém, infelizmente, isso é apenas uma pequena parte de uma sociedade que tem crescido, mas que não tem tido muito espaço.
Os indígenas são professores em suas próprias aldeias e ensinam na língua materna, bem mais compreensível para os alunos. As conquistas estão vindo aos poucos; sou consciente de que na maioria das tribos indígenas brasileiras essa realidade ainda é bem distante.
Hoje temos enfrentado os mesmos problemas que a sociedade brasileira em geral enfrenta, como a falta de merenda e material escolar, a dificuldade de acesso às escolas ou mesmo a corrupção dos governantes.
Apoio o ProUni, a bolsa do Governo Federal que tem dado aos indígenas a oportunidade de ingressarem na faculdade por meio das cotas, mas é louvável quando alguém consegue entrar na faculdade por sua própria capacidade. Em minha família, tenho exemplos dos dois casos: uma sobrinha cursou a faculdade de nutrição graças ao ProUni, e outra conseguiu entrar na Universidade Estadual do Amazonas, no curso de medicina, sem precisar da ajuda do ProUni, mas com muito estudo e dedicação, competindo no mesmo nível que pessoas não-indígenas. Não temos de esperar que o governo faça tudo por nós; se dependermos dele para tudo, nunca conseguiremos “andar com as próprias pernas”.
Nesse mesmo patamar de discussão, a área da saúde indígena pode ser comentada. A saúde indígena enfrenta as mesmas deficiências que a saúde pública no Brasil e a falta de profissionais da medicina tem sido algo mais gritante em nossa região -- por ser uma área distante e isolada, são poucos os profissionais que querem vir para cá.
A cidade tem apenas um hospital, que é militar, e todos os profissionais são militares. Não posso deixar de elogiar o esforço do governo, que tem buscado parceria com esses profissionais militares para ter postos de saúde em todos os bairros da cidade. Há um bom acompanhamento de agentes de saúde e técnicos em enfermagem, e foi criada a Casa do Índio (CASAI), um alojamento para indígenas das aldeias distantes que necessitam de atendimento médico, recebendo também alimentação adequada.
Os órgãos responsáveis pela saúde têm um ótimo projeto de levar atendimento ao indígena em sua própria aldeia. Porém, esse projeto tem encontrado dificuldade com a burocracia, a falta de profissionais e de recursos para as viagens. Na cidade, em frente ao órgão de saúde, vemos botes amontoados sem utilização por falta de recursos, enquanto índios estão morrendo sem atendimento.
Apesar das deficiências nessa área, seria injusto não elogiar o esforço das organizações que trabalham em favor do índio.
Como povo minoritário, às vezes somos tratados como crianças que não pensam e não conseguem caminhar sozinhas. Precisamos mostrar a todos que somos gente e que temos o direito de receber os mesmos benefícios do homem branco, porém, de maneira diferenciada, pois temos costumes e culturas diferentes.
Esse é o novo desafio das nossas comunidades indígenas -- queremos ser protagonistas do nosso próprio futuro. Ao reconhecermos as diferenças e ao lutarmos por nossos direitos, nós, os índios, fortaleceremos a noção de um Brasil como nação democrática, que respeita as diferenças, sem privilégios. A política do protagonismo tira os índios da invisibilidade diante do restante da sociedade brasileira, para que eles sejam os donos de seus próprios destinos.
• Leonízia Firmo, 30 anos, é missionária do Projeto Amanajé, na Amazônia.
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• Sem anos de indigenismo
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A política pública indígena nada mais é do que um reflexo da política pública nacional, com projetos que deram certo, outros que deram errado, e outros ainda em avaliação. Quero comentar sobre a situação nas áreas de educação e saúde na região em que vivo: São Gabriel da Cachoeira, noroeste do Amazonas -- o município mais indígena do Brasil, e que aglomera cerca de vinte etnias.
Por muito tempo, nós, indígenas, sofremos com o desprezo das autoridades, e aos poucos ganhamos voz e lutamos para que nos enxergassem como pessoas. A mesma necessidade que um não-indígena tem, nós também experimentamos. Temos o mesmo direito como pessoa, como ser humano.
Há alguns anos, era vergonhoso para nós falar a nossa língua nas escolas. Éramos discriminados porque tínhamos outra língua e não dominávamos bem o português. O indígena que vinha estudar na cidade (porque em sua aldeia não havia escola), era discriminado por falar de forma diferente e com um forte sotaque. Depois de muitos anos, a cidade tem como línguas oficiais, além do português, três línguas indígenas: Nheengatu, Tukano e Baniwa, que foram aprovadas pela lei municipal 145/2002, de 22 de novembro de 2002. São línguas tradicionais faladas pela maioria dos habitantes, dos quais 95% são indígenas. São Gabriel da Cachoeira se tornou o único município do Brasil que tem três línguas oficiais indígenas, sendo obrigatório o estudo de pelo menos uma delas nas escolas da cidade.
Ao participar das conferências que são realizadas na cidade, quem não fala pelo menos uma das línguas indígenas não entende muita coisa, porque agora fazemos questão de usar nossa língua para discutirmos as necessidades na área da educação. As principais reivindicações têm sido por uma educação diferenciada para os povos indígenas. Lutamos por um currículo que seja contextualizado às nossas necessidades e não queremos seguir o mesmo currículo do “branco”. Já temos tido grandes vitórias, como um curso superior para professores indígenas. Hoje, grande parte deles possui o curso superior. Alguns já possuem mestrado e alguns até doutorado. Com isso queremos mostrar que temos a mesma capacidade e inteligência do homem branco. Porém, infelizmente, isso é apenas uma pequena parte de uma sociedade que tem crescido, mas que não tem tido muito espaço.
Os indígenas são professores em suas próprias aldeias e ensinam na língua materna, bem mais compreensível para os alunos. As conquistas estão vindo aos poucos; sou consciente de que na maioria das tribos indígenas brasileiras essa realidade ainda é bem distante.
Hoje temos enfrentado os mesmos problemas que a sociedade brasileira em geral enfrenta, como a falta de merenda e material escolar, a dificuldade de acesso às escolas ou mesmo a corrupção dos governantes.
Apoio o ProUni, a bolsa do Governo Federal que tem dado aos indígenas a oportunidade de ingressarem na faculdade por meio das cotas, mas é louvável quando alguém consegue entrar na faculdade por sua própria capacidade. Em minha família, tenho exemplos dos dois casos: uma sobrinha cursou a faculdade de nutrição graças ao ProUni, e outra conseguiu entrar na Universidade Estadual do Amazonas, no curso de medicina, sem precisar da ajuda do ProUni, mas com muito estudo e dedicação, competindo no mesmo nível que pessoas não-indígenas. Não temos de esperar que o governo faça tudo por nós; se dependermos dele para tudo, nunca conseguiremos “andar com as próprias pernas”.
Nesse mesmo patamar de discussão, a área da saúde indígena pode ser comentada. A saúde indígena enfrenta as mesmas deficiências que a saúde pública no Brasil e a falta de profissionais da medicina tem sido algo mais gritante em nossa região -- por ser uma área distante e isolada, são poucos os profissionais que querem vir para cá.
A cidade tem apenas um hospital, que é militar, e todos os profissionais são militares. Não posso deixar de elogiar o esforço do governo, que tem buscado parceria com esses profissionais militares para ter postos de saúde em todos os bairros da cidade. Há um bom acompanhamento de agentes de saúde e técnicos em enfermagem, e foi criada a Casa do Índio (CASAI), um alojamento para indígenas das aldeias distantes que necessitam de atendimento médico, recebendo também alimentação adequada.
Os órgãos responsáveis pela saúde têm um ótimo projeto de levar atendimento ao indígena em sua própria aldeia. Porém, esse projeto tem encontrado dificuldade com a burocracia, a falta de profissionais e de recursos para as viagens. Na cidade, em frente ao órgão de saúde, vemos botes amontoados sem utilização por falta de recursos, enquanto índios estão morrendo sem atendimento.
Apesar das deficiências nessa área, seria injusto não elogiar o esforço das organizações que trabalham em favor do índio.
Como povo minoritário, às vezes somos tratados como crianças que não pensam e não conseguem caminhar sozinhas. Precisamos mostrar a todos que somos gente e que temos o direito de receber os mesmos benefícios do homem branco, porém, de maneira diferenciada, pois temos costumes e culturas diferentes.
Esse é o novo desafio das nossas comunidades indígenas -- queremos ser protagonistas do nosso próprio futuro. Ao reconhecermos as diferenças e ao lutarmos por nossos direitos, nós, os índios, fortaleceremos a noção de um Brasil como nação democrática, que respeita as diferenças, sem privilégios. A política do protagonismo tira os índios da invisibilidade diante do restante da sociedade brasileira, para que eles sejam os donos de seus próprios destinos.
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