Opinião
- 13 de fevereiro de 2020
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Parasita: quem pecou?
Por Carlos Caldas
[CONTÉM SPOILER]
Parasita, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho é a grande surpresa do momento no mundo do cinema. O filme faturou uma quantidade respeitável de prêmios: só de Oscar foram quatro, a saber, Melhor Roteiro Original, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor e, surpresa das surpresas, Melhor Filme, além de antes ter sido o vitorioso na categoria “Melhor Filme Estrangeiro” no respeitado Festival de Cannes, e o prêmio na categoria “Melhor Elenco” do Screen Actors Guild. Não é pouca coisa.
Poderíamos pensar que a escolha de um filme coreano para a categoria mais cobiçada do Oscar foi por questões de natureza política, atendendo a interesses de uma agenda “globalista” de inclusão. Ledo engano. Não é o caso. O filme tem méritos, que não são poucos. Creditar a grande vitória de Parasita a questões políticas é teoria da conspiração, que não tem razão de ser.
Trata-se, sem dúvida, de um filme complexo e denso, com muitas camadas, o que impede qualquer simplificação. A começar pelo fato de que não dá para dizer qual é o seu gênero: em alguns momentos, é uma autêntica comédia pastelão; em outros, drama; em outros, suspense de terror. É impressionante como o filme costura muito bem estes gêneros tão diferentes entre si na mesma narrativa, de maneira coesa, que não força a barra nem uma vez. Muito difícil conseguir isso. O enredo, apesar de inverossímil em muitos momentos, não é demais repetir, é muito bem tecido. Caberá a quem assistir ao filme ter a “suspensão da descrença”, conceito popularizado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge no século 19. Mas o aspecto da inverosimilhança do filme não é de modo algum um elemento negativo da narrativa. É preciso destacar que o enredo não é, de modo algum, previsível. Muito pelo contrário: especialmente na última terça parte do filme é uma surpresa atrás da outra.
Não foram poucos que disseram que o filme trata de questões sociais. De fato, estas aparecem na narrativa, mas o filme definitivamente não é sobre questões sociais, mas sobre a condição humana. A “estória” – com perdão dos puristas da Academia Brasileira de Letras, que não reconhecem a palavra – é sobre duas famílias na Coreia do Sul: os Park e os Kim (dois sobrenomes tão comuns na Coreia quanto “Oliveira” e “Silva” no Brasil). As duas são formadas pelo casal e um casal de filhos, sendo a filha a mais velha. Enquanto os Park são absurdamente ricos, os Kim são absurdamente pobres. A narrativa fílmica do diretor Bong Joon-ho é riquíssima em detalhes: a família Kim mora em um lugar apertado, infecto, cujo pé direito está bem abaixo do nível da rua (o que é extremamente sugestivo quanto à condição socioeconômica deles), e a família Park mora em uma mansão exageradamente grande. Os Kim são desempregados vivendo “de bico” (como milhares e milhares de brasileiros hoje): todos montam caixas de pizza para uma pizzaria, para ganhar uns míseros trocados. Por sugestão de um amigo de Ki-taek, da família Kim, ele consegue dar aulas particulares de inglês para uma garota rica – a filha da família Park. Mas para tanto, a irmã de Ki-taek tem que falsificar documentos para assim poder passar para os Park a impressão que o irmão é qualificado para a tarefa. Ki-taek consegue que sua irmã seja contratada para ser a arte terapeuta do filho caçula da família Park, um menino hiperativo que parece ter um déficit de atenção. A garota engana perfeitamente bem a família Park, de um modo que faz lembrar o delicioso conto O homem que sabia javanês, de Lima Barreto. De mentira em mentira, de engano em engano, de trapaça em trapaça, os Kim conseguem que o motorista e a governanta da casa sejam demitidos e que seus pais sejam contratados no lugar. Logo, os quatro estão empregados e ganhando bem. Eis aí a relação de parasitismo apontada pelo título do filme.
Mas o filme de Bong Joon-ho não cai em simplificações fáceis ou estereótipos “manjados” do tipo “pobre oprimido x rico opressor” ou “pobre bonzinho” e “rico malvado”. Nada disso. Enquanto os Park são de uma ingenuidade inacreditável, os Kim são de uma capacidade impressionante de dissimulação, frieza e fingimento. Os Kim estão perfeitamente à vontade na situação de empregados dos Park. É aí que, a partir de situações totalmente imprevistas e inesperadas que se sucedem, todos os planos deles desandam e tudo sai do controle. A antiga governanta volta à mansão, e descobre-se que o marido dela vivia há quatro anos escondido no porão secreto, um bunker que, conforme o filme, algumas casas da Coreia do Sul têm, por medo de uma eventual invasão ou ataque nuclear da vizinha Coreia do Norte. Segue-se uma sucessão de horrores, que vai variar da comédia ao bizarro e violência explícita. Pobres miseráveis oprimindo e tratando mal pobres miseráveis. Nesta hora, Parasita faz lembrar Fargo, dos Irmãos Coen. Este é um mérito do filme: não há clichês. Os Park milionários pagam bem e têm carinho pelos Kim, mas também os exploram: o Sr. Kim, contratado como motorista, é submetido a situações vexatórias e humilhantes várias vezes. Os Kim, malandros e golpistas, sem escrúpulo, não têm o menor peso na consciência em enganar os patrões e em cometer violência contra a antiga governanta e o marido dela. Ki-taek, o jovem da família Kim, é o único que tem um mínimo de senso moral, e sonha em um dia ser rico e poder comprar aquela mansão magnífica. Mas o filme mostra como tudo isso não passa de ilusão. Seria simplesmente impossível conseguir uma ascensão tão grande apenas trabalhando.
Por estas e outras, penso ser possível afirmar que Parasita não é um filme sobre conflito de classes sociais, mas sobre a condição humana. “Todos pecaram, e carecem da glória de Deus”. Todos pecaram. Todos. Sem exceção.
A obra de Bong Joon-ho é difícil e diferente das que geralmente estamos acostumados a assistir. É o tipo de filme que deve ser visto mais de uma vez, para se prestar atenção nos detalhes, que são muitos, o tempo todo. O filme denuncia, sim, a diferença brutal e iníqua entre classes sociais. Mas denuncia também a maldade que se aninha no coração humano. Falta à “estória” um elemento de redenção. Neste sentido, o filme de Bong Joon-ho é ácido demais, de uma acidez corrosiva, cáustica de tudo. Pois o filme critica o capitalismo, que cria situações inacreditáveis de injustiça social; e o socialismo, com sua antropologia ingênua com sua versão própria da tese rousseauniana – ao invés do “bom selvagem”, o “bom pobre”. Ambas as perspectivas são muito criticadas de maneira inteligente por Bong Joon-ho. Por estas e outras, Parasita é um filme que vale a pena ser visto, pois incomoda, perturba e faz pensar.
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[CONTÉM SPOILER]
Parasita, do diretor sul-coreano Bong Joon-ho é a grande surpresa do momento no mundo do cinema. O filme faturou uma quantidade respeitável de prêmios: só de Oscar foram quatro, a saber, Melhor Roteiro Original, Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor e, surpresa das surpresas, Melhor Filme, além de antes ter sido o vitorioso na categoria “Melhor Filme Estrangeiro” no respeitado Festival de Cannes, e o prêmio na categoria “Melhor Elenco” do Screen Actors Guild. Não é pouca coisa.
Poderíamos pensar que a escolha de um filme coreano para a categoria mais cobiçada do Oscar foi por questões de natureza política, atendendo a interesses de uma agenda “globalista” de inclusão. Ledo engano. Não é o caso. O filme tem méritos, que não são poucos. Creditar a grande vitória de Parasita a questões políticas é teoria da conspiração, que não tem razão de ser.
Trata-se, sem dúvida, de um filme complexo e denso, com muitas camadas, o que impede qualquer simplificação. A começar pelo fato de que não dá para dizer qual é o seu gênero: em alguns momentos, é uma autêntica comédia pastelão; em outros, drama; em outros, suspense de terror. É impressionante como o filme costura muito bem estes gêneros tão diferentes entre si na mesma narrativa, de maneira coesa, que não força a barra nem uma vez. Muito difícil conseguir isso. O enredo, apesar de inverossímil em muitos momentos, não é demais repetir, é muito bem tecido. Caberá a quem assistir ao filme ter a “suspensão da descrença”, conceito popularizado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge no século 19. Mas o aspecto da inverosimilhança do filme não é de modo algum um elemento negativo da narrativa. É preciso destacar que o enredo não é, de modo algum, previsível. Muito pelo contrário: especialmente na última terça parte do filme é uma surpresa atrás da outra.
Não foram poucos que disseram que o filme trata de questões sociais. De fato, estas aparecem na narrativa, mas o filme definitivamente não é sobre questões sociais, mas sobre a condição humana. A “estória” – com perdão dos puristas da Academia Brasileira de Letras, que não reconhecem a palavra – é sobre duas famílias na Coreia do Sul: os Park e os Kim (dois sobrenomes tão comuns na Coreia quanto “Oliveira” e “Silva” no Brasil). As duas são formadas pelo casal e um casal de filhos, sendo a filha a mais velha. Enquanto os Park são absurdamente ricos, os Kim são absurdamente pobres. A narrativa fílmica do diretor Bong Joon-ho é riquíssima em detalhes: a família Kim mora em um lugar apertado, infecto, cujo pé direito está bem abaixo do nível da rua (o que é extremamente sugestivo quanto à condição socioeconômica deles), e a família Park mora em uma mansão exageradamente grande. Os Kim são desempregados vivendo “de bico” (como milhares e milhares de brasileiros hoje): todos montam caixas de pizza para uma pizzaria, para ganhar uns míseros trocados. Por sugestão de um amigo de Ki-taek, da família Kim, ele consegue dar aulas particulares de inglês para uma garota rica – a filha da família Park. Mas para tanto, a irmã de Ki-taek tem que falsificar documentos para assim poder passar para os Park a impressão que o irmão é qualificado para a tarefa. Ki-taek consegue que sua irmã seja contratada para ser a arte terapeuta do filho caçula da família Park, um menino hiperativo que parece ter um déficit de atenção. A garota engana perfeitamente bem a família Park, de um modo que faz lembrar o delicioso conto O homem que sabia javanês, de Lima Barreto. De mentira em mentira, de engano em engano, de trapaça em trapaça, os Kim conseguem que o motorista e a governanta da casa sejam demitidos e que seus pais sejam contratados no lugar. Logo, os quatro estão empregados e ganhando bem. Eis aí a relação de parasitismo apontada pelo título do filme.
Mas o filme de Bong Joon-ho não cai em simplificações fáceis ou estereótipos “manjados” do tipo “pobre oprimido x rico opressor” ou “pobre bonzinho” e “rico malvado”. Nada disso. Enquanto os Park são de uma ingenuidade inacreditável, os Kim são de uma capacidade impressionante de dissimulação, frieza e fingimento. Os Kim estão perfeitamente à vontade na situação de empregados dos Park. É aí que, a partir de situações totalmente imprevistas e inesperadas que se sucedem, todos os planos deles desandam e tudo sai do controle. A antiga governanta volta à mansão, e descobre-se que o marido dela vivia há quatro anos escondido no porão secreto, um bunker que, conforme o filme, algumas casas da Coreia do Sul têm, por medo de uma eventual invasão ou ataque nuclear da vizinha Coreia do Norte. Segue-se uma sucessão de horrores, que vai variar da comédia ao bizarro e violência explícita. Pobres miseráveis oprimindo e tratando mal pobres miseráveis. Nesta hora, Parasita faz lembrar Fargo, dos Irmãos Coen. Este é um mérito do filme: não há clichês. Os Park milionários pagam bem e têm carinho pelos Kim, mas também os exploram: o Sr. Kim, contratado como motorista, é submetido a situações vexatórias e humilhantes várias vezes. Os Kim, malandros e golpistas, sem escrúpulo, não têm o menor peso na consciência em enganar os patrões e em cometer violência contra a antiga governanta e o marido dela. Ki-taek, o jovem da família Kim, é o único que tem um mínimo de senso moral, e sonha em um dia ser rico e poder comprar aquela mansão magnífica. Mas o filme mostra como tudo isso não passa de ilusão. Seria simplesmente impossível conseguir uma ascensão tão grande apenas trabalhando.
Por estas e outras, penso ser possível afirmar que Parasita não é um filme sobre conflito de classes sociais, mas sobre a condição humana. “Todos pecaram, e carecem da glória de Deus”. Todos pecaram. Todos. Sem exceção.
A obra de Bong Joon-ho é difícil e diferente das que geralmente estamos acostumados a assistir. É o tipo de filme que deve ser visto mais de uma vez, para se prestar atenção nos detalhes, que são muitos, o tempo todo. O filme denuncia, sim, a diferença brutal e iníqua entre classes sociais. Mas denuncia também a maldade que se aninha no coração humano. Falta à “estória” um elemento de redenção. Neste sentido, o filme de Bong Joon-ho é ácido demais, de uma acidez corrosiva, cáustica de tudo. Pois o filme critica o capitalismo, que cria situações inacreditáveis de injustiça social; e o socialismo, com sua antropologia ingênua com sua versão própria da tese rousseauniana – ao invés do “bom selvagem”, o “bom pobre”. Ambas as perspectivas são muito criticadas de maneira inteligente por Bong Joon-ho. Por estas e outras, Parasita é um filme que vale a pena ser visto, pois incomoda, perturba e faz pensar.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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