Opinião
- 08 de agosto de 2024
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Para que sejam um: breve panorama do movimento ecumênico
Foi no seu seio do protestantismo que surgiram as primeiras manifestações do moderno ecumenismo, a saber, o esforço construtivo em prol da aproximação e união dos cristãos
Por Alderi Souza de Matos
Desde o início do cristianismo, a preocupação com a unidade tem sido constante. O Antigo Testamento já apresenta essa ênfase (e.g., Sl 133.1), mas é o Novo Testamento que dá amplo testemunho desse interesse, a começar da oração de Jesus pelos seus discípulos (Jo 17.11, 20-23). O apóstolo Paulo também aponta para a unidade cristã (1 Co 1.10; 12.12-27; Ef 2.14,16; 4.3-6; Fp 1.27; 2.2). Nos escritos apostólicos, o conjunto dos fiéis é identificado como “a igreja”. Essa comunidade é descrita como corpo, rebanho, edifício ou família, figuras que transmitem as ideias de união, comunhão, solidariedade.
Unidade e diversidade
Acontece que quase desde o início houve manifestações divergentes da fé cristã. O Novo Testamento já aponta para algumas delas, em especial os judaizantes e os docetistas. O número dessas variantes aumentou com o passar do tempo. Assim, no início do segundo século a preocupação com a unidade e a ortodoxia tornou-se intensa e esse fato conduziu à crescente institucionalização da igreja, com seus bispos, credo e cânon.
A complexidade das Escrituras, com a possibilidade de diferentes interpretações, e a variedade cultural, religiosa e filosófica do ambiente em que se inseriu o cristianismo, contribuíram para a crescente diversidade teológica. Surgiram grupos como gnósticos, marcionitas, montanistas e outros, todos tachados de heréticos e rejeitados pela igreja majoritária. Nos séculos quarto e quinto houve o cisma donatista e ocorreram novas dissidências duradouras, como nestorianos e monofisitas.
A experiência medieval
Na Idade Média, surgiu em sua plenitude a Igreja Católica, fortemente institucionalizada, centralizada, aliada do Estado. Ocorreu aquilo que os historiadores denominam “cristandade”, uma situação de completa uniformidade religiosa em que a igreja exercia forte influência sobre todos os setores da sociedade. A unidade se tornou um dos valores supremos, sendo a igreja entendida como “una, santa, católica e apostólica”.
Em decorrência disso, intensificou-se uma tendência preocupante — a manutenção da unidade a todo custo, mesmo que com o emprego da força. Isso já havia ocorrido com os donatistas no quinto século e agora também se aplicou a outros grupos heréticos, como os cátaros ou albigenses, suprimidos mediante uma série de cruzadas. No entanto, não foi possível evitar duas grandes cisões da cristandade, uma no meio e outra no final desse período: a separação definitiva entre as igrejas latina e grega e o surgimento da Reforma Protestante.
Primórdios do movimento ecumênico
Sendo o protestantismo o mais fracionado dos grandes grupos cristãos, foi no seu seio que surgiram as primeiras manifestações do moderno ecumenismo (do grego oikoumene, que significa “o mundo habitado”; ver Mt 24.14; Lc 2.1; At 17.6), a saber, o esforço construtivo em prol da aproximação e união dos cristãos. Os reformadores estavam conscientes dessa necessidade e tomaram algumas iniciativas nessa direção, como o Colóquio de Marburg (1529), entre luteranos e reformados. Houve também algumas tentativas de entendimento entre católicos e protestantes, como os Colóquios de Ratisbona (1541) e de Poissy (1561). Todavia, a Contrarreforma e as contínuas cisões protestantes tornaram a unidade cristã um ideal cada vez mais distante.
O esforço missionário protestante do século 19 deu origem ao movimento ecumênico. As missões denominacionais que atuavam no terceiro mundo perceberam a dificuldade de anunciar o evangelho e ao mesmo tempo justificar uma igreja dividida. Com isso surgiram as primeiras conferências missionárias, realizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir de meados daquele século. Da aproximação entre as missões nos campos estrangeiros surgiu a ideia do diálogo, colaboração e possível união das próprias igrejas nos países de origem.
A Conferência de Edimburgo
No século 19 foram criadas várias organizações cooperativas interdenominacionais, tais como a Associação Cristã de Moços (1844), a Aliança Evangélica (1846) e a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (1895). Todavia, o evento que contribuiu de modo mais direto para o surgimento do movimento ecumênico foi a Conferência Missionária Mundial, realizada em Edimburgo, na Escócia, em 1910. Essa conferência levou em 1921 à criação do Concílio Missionário Internacional.
Uma das primeiras iniciativas ecumênicas foi o movimento de “vida e obra”, que buscou promover a cooperação das igrejas na área social. Sua primeira conferência, realizada em Estocolmo em 1925, foi convocada pelo arcebispo Nathan Söderblom. A Conferência de Edimburgo evitou discutir as diferenças teológicas entre as igrejas. Sob a liderança do bispo episcopal Charles H. Brent, surgiu o movimento de “fé e ordem”, voltado para a união orgânica das igrejas e a busca de posições teológicas comuns. A primeira conferência desse movimento realizou-se em Lausanne, em 1927. Após a Segunda Guerra Mundial, esses dois movimentos se fundiram no Conselho Mundial de Igrejas (CMI), instalado em 1948 em Amsterdã.
O Conselho Mundial de Igrejas
A reunião de instalação do CMI contou com a presença de 351 delegados procedentes de 147 denominações em 44 países. Foi a mais abrangente assembleia cristã reunida até então. A base confessional afirma que o CMI “é uma fraternidade de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador de acordo com as Escrituras e que, portanto, buscam cumprir em conjunto a sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo”.
A sua principal autoridade reside nas assembleias de representantes oficiais nomeados pelas igrejas filiadas. Até o momento realizaram-se as seguintes: Amsterdã (1948), Evanston (1954), Nova Delhi (1961), Uppsala (1968), Nairobi (1975), Vancouver (1983), Canberra (1991), Harare (1998) e Porto Alegre (2006). Desde a sua fundação, o CMI teve os seguintes secretários-gerais: Visser‘t Hooft, Eugene C. Blake, Philip A. Potter, Emílio Castro, Konrad Raiser e Samuel Kobia. Sua atual estrutura é composta de três unidades: Fé e Testemunho, Justiça e Serviço, Educação e Renovação.
O CMI representa a maior parte das igrejas protestantes históricas e das igrejas ortodoxas orientais. Hoje são 348 igrejas em mais de 120 países. Não participam a maior parte dos evangélicos e dos pentecostais. A Igreja Católica Romana também não está filiada, embora venha participando do movimento mais amplo desde o pontificado de João XXIII, que criou o Secretariado para a Promoção da Unidade Cristã (1960) e convocou o Concílio Vaticano II (1962-65), no qual se aprovou um importante documento sobre o tema. Além do CMI, muitos outros organismos mundiais, nacionais e regionais têm se voltado para a promoção do ideal ecumênico.
Conclusão
O movimento ecumênico está deixando um legado contraditório. Por um lado, representa um esforço sério na busca de diálogo e cooperação entre grupos cristãos muito diversos; tem dado testemunho da fé cristã num mundo dilacerado por divisões e conflitos; tem buscado soluções para alguns dos problemas mais prementes e angustiosos da atualidade. Por outro lado, sua agenda inclusivista o tem impelido para o relativismo teológico, para crescentes concessões a certos valores da sociedade secular, para posicionamentos missiológicos dúbios, para a erosão da identidade cristã frente a outros sistemas religiosos. Para ser legítimo, o ecumenismo precisa observar fielmente o lema paulino: “Seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.
Artigo publicado originalmente na edição 300 de Ultimato (maio/junho de 2006).
REVISTA ULTIMATO | PARA QUE SERVE A TEOLOGIA?
A resposta à pergunta “Para que serve a teologia?” revela que ela serve a Deus, exaltando-o como Senhor. Serve a igreja, ajudando-a a conhecer e a adorar seu Deus. Serve o mundo, revelando a verdadeira fonte de sabedoria, beleza, sentido e salvação.
A teologia é resultado de esforço acadêmico e também do convívio singular entre cristãos; envolve profundo estudo, mas também ocorre na singela e comprometida leitura das Escrituras. Depende do Espírito, por isso implica humildade. Ajuda a conhecer a Deus e a amá-lo.
É disso que trata a matéria de capa da edição 408 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» A Vida em Cristo, John Stott
» A Grande História – Um Convite para Professores Cristãos, Rick Hove, Heather Holleman
Por Alderi Souza de Matos
Desde o início do cristianismo, a preocupação com a unidade tem sido constante. O Antigo Testamento já apresenta essa ênfase (e.g., Sl 133.1), mas é o Novo Testamento que dá amplo testemunho desse interesse, a começar da oração de Jesus pelos seus discípulos (Jo 17.11, 20-23). O apóstolo Paulo também aponta para a unidade cristã (1 Co 1.10; 12.12-27; Ef 2.14,16; 4.3-6; Fp 1.27; 2.2). Nos escritos apostólicos, o conjunto dos fiéis é identificado como “a igreja”. Essa comunidade é descrita como corpo, rebanho, edifício ou família, figuras que transmitem as ideias de união, comunhão, solidariedade.
Unidade e diversidade
Acontece que quase desde o início houve manifestações divergentes da fé cristã. O Novo Testamento já aponta para algumas delas, em especial os judaizantes e os docetistas. O número dessas variantes aumentou com o passar do tempo. Assim, no início do segundo século a preocupação com a unidade e a ortodoxia tornou-se intensa e esse fato conduziu à crescente institucionalização da igreja, com seus bispos, credo e cânon.
A complexidade das Escrituras, com a possibilidade de diferentes interpretações, e a variedade cultural, religiosa e filosófica do ambiente em que se inseriu o cristianismo, contribuíram para a crescente diversidade teológica. Surgiram grupos como gnósticos, marcionitas, montanistas e outros, todos tachados de heréticos e rejeitados pela igreja majoritária. Nos séculos quarto e quinto houve o cisma donatista e ocorreram novas dissidências duradouras, como nestorianos e monofisitas.
A experiência medieval
Na Idade Média, surgiu em sua plenitude a Igreja Católica, fortemente institucionalizada, centralizada, aliada do Estado. Ocorreu aquilo que os historiadores denominam “cristandade”, uma situação de completa uniformidade religiosa em que a igreja exercia forte influência sobre todos os setores da sociedade. A unidade se tornou um dos valores supremos, sendo a igreja entendida como “una, santa, católica e apostólica”.
Em decorrência disso, intensificou-se uma tendência preocupante — a manutenção da unidade a todo custo, mesmo que com o emprego da força. Isso já havia ocorrido com os donatistas no quinto século e agora também se aplicou a outros grupos heréticos, como os cátaros ou albigenses, suprimidos mediante uma série de cruzadas. No entanto, não foi possível evitar duas grandes cisões da cristandade, uma no meio e outra no final desse período: a separação definitiva entre as igrejas latina e grega e o surgimento da Reforma Protestante.
Primórdios do movimento ecumênico
Sendo o protestantismo o mais fracionado dos grandes grupos cristãos, foi no seu seio que surgiram as primeiras manifestações do moderno ecumenismo (do grego oikoumene, que significa “o mundo habitado”; ver Mt 24.14; Lc 2.1; At 17.6), a saber, o esforço construtivo em prol da aproximação e união dos cristãos. Os reformadores estavam conscientes dessa necessidade e tomaram algumas iniciativas nessa direção, como o Colóquio de Marburg (1529), entre luteranos e reformados. Houve também algumas tentativas de entendimento entre católicos e protestantes, como os Colóquios de Ratisbona (1541) e de Poissy (1561). Todavia, a Contrarreforma e as contínuas cisões protestantes tornaram a unidade cristã um ideal cada vez mais distante.
O esforço missionário protestante do século 19 deu origem ao movimento ecumênico. As missões denominacionais que atuavam no terceiro mundo perceberam a dificuldade de anunciar o evangelho e ao mesmo tempo justificar uma igreja dividida. Com isso surgiram as primeiras conferências missionárias, realizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir de meados daquele século. Da aproximação entre as missões nos campos estrangeiros surgiu a ideia do diálogo, colaboração e possível união das próprias igrejas nos países de origem.
A Conferência de Edimburgo
No século 19 foram criadas várias organizações cooperativas interdenominacionais, tais como a Associação Cristã de Moços (1844), a Aliança Evangélica (1846) e a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (1895). Todavia, o evento que contribuiu de modo mais direto para o surgimento do movimento ecumênico foi a Conferência Missionária Mundial, realizada em Edimburgo, na Escócia, em 1910. Essa conferência levou em 1921 à criação do Concílio Missionário Internacional.
Uma das primeiras iniciativas ecumênicas foi o movimento de “vida e obra”, que buscou promover a cooperação das igrejas na área social. Sua primeira conferência, realizada em Estocolmo em 1925, foi convocada pelo arcebispo Nathan Söderblom. A Conferência de Edimburgo evitou discutir as diferenças teológicas entre as igrejas. Sob a liderança do bispo episcopal Charles H. Brent, surgiu o movimento de “fé e ordem”, voltado para a união orgânica das igrejas e a busca de posições teológicas comuns. A primeira conferência desse movimento realizou-se em Lausanne, em 1927. Após a Segunda Guerra Mundial, esses dois movimentos se fundiram no Conselho Mundial de Igrejas (CMI), instalado em 1948 em Amsterdã.
O Conselho Mundial de Igrejas
A reunião de instalação do CMI contou com a presença de 351 delegados procedentes de 147 denominações em 44 países. Foi a mais abrangente assembleia cristã reunida até então. A base confessional afirma que o CMI “é uma fraternidade de igrejas que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador de acordo com as Escrituras e que, portanto, buscam cumprir em conjunto a sua vocação comum para a glória do único Deus, Pai, Filho e Espírito Santo”.
A sua principal autoridade reside nas assembleias de representantes oficiais nomeados pelas igrejas filiadas. Até o momento realizaram-se as seguintes: Amsterdã (1948), Evanston (1954), Nova Delhi (1961), Uppsala (1968), Nairobi (1975), Vancouver (1983), Canberra (1991), Harare (1998) e Porto Alegre (2006). Desde a sua fundação, o CMI teve os seguintes secretários-gerais: Visser‘t Hooft, Eugene C. Blake, Philip A. Potter, Emílio Castro, Konrad Raiser e Samuel Kobia. Sua atual estrutura é composta de três unidades: Fé e Testemunho, Justiça e Serviço, Educação e Renovação.
O CMI representa a maior parte das igrejas protestantes históricas e das igrejas ortodoxas orientais. Hoje são 348 igrejas em mais de 120 países. Não participam a maior parte dos evangélicos e dos pentecostais. A Igreja Católica Romana também não está filiada, embora venha participando do movimento mais amplo desde o pontificado de João XXIII, que criou o Secretariado para a Promoção da Unidade Cristã (1960) e convocou o Concílio Vaticano II (1962-65), no qual se aprovou um importante documento sobre o tema. Além do CMI, muitos outros organismos mundiais, nacionais e regionais têm se voltado para a promoção do ideal ecumênico.
Conclusão
O movimento ecumênico está deixando um legado contraditório. Por um lado, representa um esforço sério na busca de diálogo e cooperação entre grupos cristãos muito diversos; tem dado testemunho da fé cristã num mundo dilacerado por divisões e conflitos; tem buscado soluções para alguns dos problemas mais prementes e angustiosos da atualidade. Por outro lado, sua agenda inclusivista o tem impelido para o relativismo teológico, para crescentes concessões a certos valores da sociedade secular, para posicionamentos missiológicos dúbios, para a erosão da identidade cristã frente a outros sistemas religiosos. Para ser legítimo, o ecumenismo precisa observar fielmente o lema paulino: “Seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.
- Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira; A Caminhada Cristã na História; Fundamentos da Teologia Histórica e Às Ciências Divinas e Humanas (150 anos do Instituto Presbiteriano Mackenzie). É colaborador da Igreja Presbiteriana de Vila Mariana, em São Paulo.
Artigo publicado originalmente na edição 300 de Ultimato (maio/junho de 2006).
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A resposta à pergunta “Para que serve a teologia?” revela que ela serve a Deus, exaltando-o como Senhor. Serve a igreja, ajudando-a a conhecer e a adorar seu Deus. Serve o mundo, revelando a verdadeira fonte de sabedoria, beleza, sentido e salvação.
A teologia é resultado de esforço acadêmico e também do convívio singular entre cristãos; envolve profundo estudo, mas também ocorre na singela e comprometida leitura das Escrituras. Depende do Espírito, por isso implica humildade. Ajuda a conhecer a Deus e a amá-lo.
É disso que trata a matéria de capa da edição 408 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
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» A Vida em Cristo, John Stott
» A Grande História – Um Convite para Professores Cristãos, Rick Hove, Heather Holleman
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