Opinião
- 22 de março de 2013
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Os cristãos e a reforma psiquiátrica
As pessoas que apresentam transtornos mentais situam-se entre aquelas que mais necessitam da solidariedade cristã. A sociedade, de modo geral, tem sido hostil, reservando a elas o espaço da exclusão. Ficam segregadas em clínicas e asilos, por trás de muros e portas trancadas. Os recursos terapêuticos ainda chegam muito lentamente a esses locais isolados. Ali se perpetuam comunidades fechadas, com seus problemas crônicos e estruturais de autoritarismo e violência, como já foi bem demonstrado.1
No Brasil o problema é agravado pela marcada desigualdade social, pois a fome se junta à vontade de excluir. E assim, muitos se submetem ao sistema de internações psiquiátricas como meio de garantir cama e comida, acrescidas do dinheirinho que recebem da Previdência. Forma-se, então, uma engrenagem sustentada por preconceitos, comodidades e interesses, que mantém a forma arcaica de assistência e consome a maior parte dos recursos. Apresentam-se poucas opções para aqueles que querem uma atuação diferente.
Nesse contexto, porém, tem crescido o movimento pela reforma da assistência em saúde mental. A linha mestra é o resgate da dignidade dos usuários dos serviços, oferecendo-lhes melhores oportunidades. Mais do que cidadãos, são pessoas, criadas à imagem e semelhança do Deus de amor, carentes das manifestações da sua graça.
Como deve ser a assistência moderna em saúde mental? Alguns pontos são preconizados pela Organização Mundial da Saúde2, a saber:
1) A assistência deve ser oferecida em ambulatórios e consultórios, junto às comunidades, mantendo-se os vínculos familiares e sociais.
2) Sempre que possível, deve-se ter a participação de equipes multiprofissionais, compostas por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, conselheiros, entre outros. Isto permite o emprego de todos os recursos disponíveis.
3) Utilização das chamadas "unidades intermediárias" para as situações mais complexas. Trata-se dos hospitais-dia, dos centros de atenção psicossocial, onde passa-se algumas horas, sendo oferecidas várias formas de ajuda terapêutica.
4) Atendimento de crises em Pronto Socorro e hospitais gerais. Nestes locais o atendimento é mais amplo, com maiores recursos e não é discriminatório.
Muito há que ser feito para que todas as comunidades do país tenham acesso a esses procedimentos. Nesse sentido, existe um Projeto de Lei tramitando no Senado, já aprovado na Câmara Federal, que procura redirecionar a política de assistência e os gastos públicos no setor. Alguns Estados já têm leis recentes que reordenam o atendimento à população. Mas a mudança principal deve-se dar em nível do entendimento de cada um, conscientizando-se diante da questão.
Há várias maneiras pelas quais os cristãos e as igrejas podem participar na promoção das mudanças que são tão necessárias. Deixo aqui algumas sugestões:
- Revisando preconceitos que excluem os enfermos e seus familiares, abrindo espaço para acolhê-los e ajudá-los na convivência pessoal e grupal. É preciso cuidado com alguns argumentos ainda usados para reforçar estigmas sociais.
- Oferecendo serviços de "acompanhamento terapêutico", isto é, passando algum período com o(s) enfermo(s) em atividades de lazer, cultura, devoção, etc.
- Incentivando a criação e ampliação dos serviços extra-hospitalares. O espaço ocioso das igrejas e instituições religiosas pode ser muito bem usado para tal. A participação de conselheiros cristãos beneficiará aos usuários dos serviços, bem como aos próprios profissionais da saúde.
- Abrindo as clínicas e hospitais gerais para o atendimento em saúde mental. O Hospital Evangélico de Anápolis, em Goiás, por exemplo, é pioneiro no Brasil no oferecimento de internações psiquiátricas junto aos demais pacientes.3
- Estimulando famílias para que "adotem" pessoas que, após anos de reclusão, podem ser reintegradas à vida na comunidade, mesmo que com alguma restrição. Há um plano do Ministério da Saúde para remunerar quem a isso se dispuser.
- Criando lares ou pensões "protegidas", que ofereçam acolhimento temporário durante viagem ou alguma crise familiar, com a retaguarda de um ou mais profissionais de saúde mental.
- Participando dos Conselhos de Saúde, em nível municipal e estadual. São eles que definem os planos de ação e o uso dos recursos no setor. Por isso mesmo, recebem pressões muito grandes de interesses e grupos. Torna-se necessária, portanto, uma ação ordenada e coesa na direção do que interessa à população.
- Apoiando a elaboração e aprovação de leis que reordenem a assistência nesta área. No momento, é importante o trabalho junto aos senadores para a aprovação do Projeto de Lei n. 3.657/89.4
Para ilustrar as inúmeras oportunidades que a ministração cristã encontra nessa área, relato aqui uma experiência na qual a igreja está sendo, realmente, uma comunidade terapêutica:
“D. Maria foi acometida de um transtorno mental severo, com crises intensas. Foi internada em uma instituição convencional e lá permanecia por 9 anos. No correr desse tempo, foi considerada inválida e perdeu os direitos civis, o esposo faleceu e os três filhos foram dispersos. Num domingo, ela conheceu uma pessoa que cultiva o ministério de visitação aos enfermos. Ao ler o folheto recebido, deparou-se com o endereço da Igreja e não teve dúvidas: na primeira oportunidade iria até lá. Conseguiu, então, uma licença e no fim de semana seguinte ela, de fato, o fez. Estava tão confiante e entusiasmada com as novas descobertas que decidiu, sem qualquer anúncio, não voltar ao hospital. Passados alguns dias, quando o fato foi conhecido, todos se assustaram; e providenciou-se que tivesse uma consulta psiquiátrica. Foi logo admitida num programa terapêutico específico, demonstrando estabilidade satisfatória. Um advogado providenciou, então, que recuperasse seus direitos e a guarda dos filhos. Uma família da Igreja admitiu-a como empregada e supervisiona para que não falte o medicamento. Os parentes reaproximaram-se, o lar refeito esforça-se para superar as marcas da separação prolongada... e já se vão 5 anos”.
Lembro-me das palavras do Senhor Jesus: "Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes".5
Referências bibliográficas
1) GOFFMAN, E. - Manicômios, Prisões e Conventos. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974.
2) OMS/OPAS - Reestructuracion de la Atencion Psiquiatrica. Washington, D.C., 1991.
3) LIMA, E. E. de - Situação Atual da Interconsulta e Psiquiatria em Hospital Geral no Brasil. Trabalho apresentado ao XIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, 1994.
4) DELGADO, P. G. - As Razões da Tutela. Te Corá Ed., Rio de Janeiro, 1992, Anexo 6.
5) Bíblia, Mateus 25:40.
_________
Uriel Heckert é médico psiquiatra, mestre em filosofia pela UFJF, doutor em psiquiatria pela USP, membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e da 4ª Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora, MG.
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Dona Aparecida, 22 anos depois da decisão “Eu vou frequentar esta igreja!”
Igrejas: comunidades terapêuticas
No Brasil o problema é agravado pela marcada desigualdade social, pois a fome se junta à vontade de excluir. E assim, muitos se submetem ao sistema de internações psiquiátricas como meio de garantir cama e comida, acrescidas do dinheirinho que recebem da Previdência. Forma-se, então, uma engrenagem sustentada por preconceitos, comodidades e interesses, que mantém a forma arcaica de assistência e consome a maior parte dos recursos. Apresentam-se poucas opções para aqueles que querem uma atuação diferente.
Nesse contexto, porém, tem crescido o movimento pela reforma da assistência em saúde mental. A linha mestra é o resgate da dignidade dos usuários dos serviços, oferecendo-lhes melhores oportunidades. Mais do que cidadãos, são pessoas, criadas à imagem e semelhança do Deus de amor, carentes das manifestações da sua graça.
Como deve ser a assistência moderna em saúde mental? Alguns pontos são preconizados pela Organização Mundial da Saúde2, a saber:
1) A assistência deve ser oferecida em ambulatórios e consultórios, junto às comunidades, mantendo-se os vínculos familiares e sociais.
2) Sempre que possível, deve-se ter a participação de equipes multiprofissionais, compostas por médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, conselheiros, entre outros. Isto permite o emprego de todos os recursos disponíveis.
3) Utilização das chamadas "unidades intermediárias" para as situações mais complexas. Trata-se dos hospitais-dia, dos centros de atenção psicossocial, onde passa-se algumas horas, sendo oferecidas várias formas de ajuda terapêutica.
4) Atendimento de crises em Pronto Socorro e hospitais gerais. Nestes locais o atendimento é mais amplo, com maiores recursos e não é discriminatório.
Muito há que ser feito para que todas as comunidades do país tenham acesso a esses procedimentos. Nesse sentido, existe um Projeto de Lei tramitando no Senado, já aprovado na Câmara Federal, que procura redirecionar a política de assistência e os gastos públicos no setor. Alguns Estados já têm leis recentes que reordenam o atendimento à população. Mas a mudança principal deve-se dar em nível do entendimento de cada um, conscientizando-se diante da questão.
Há várias maneiras pelas quais os cristãos e as igrejas podem participar na promoção das mudanças que são tão necessárias. Deixo aqui algumas sugestões:
- Revisando preconceitos que excluem os enfermos e seus familiares, abrindo espaço para acolhê-los e ajudá-los na convivência pessoal e grupal. É preciso cuidado com alguns argumentos ainda usados para reforçar estigmas sociais.
- Oferecendo serviços de "acompanhamento terapêutico", isto é, passando algum período com o(s) enfermo(s) em atividades de lazer, cultura, devoção, etc.
- Incentivando a criação e ampliação dos serviços extra-hospitalares. O espaço ocioso das igrejas e instituições religiosas pode ser muito bem usado para tal. A participação de conselheiros cristãos beneficiará aos usuários dos serviços, bem como aos próprios profissionais da saúde.
- Abrindo as clínicas e hospitais gerais para o atendimento em saúde mental. O Hospital Evangélico de Anápolis, em Goiás, por exemplo, é pioneiro no Brasil no oferecimento de internações psiquiátricas junto aos demais pacientes.3
- Estimulando famílias para que "adotem" pessoas que, após anos de reclusão, podem ser reintegradas à vida na comunidade, mesmo que com alguma restrição. Há um plano do Ministério da Saúde para remunerar quem a isso se dispuser.
- Criando lares ou pensões "protegidas", que ofereçam acolhimento temporário durante viagem ou alguma crise familiar, com a retaguarda de um ou mais profissionais de saúde mental.
- Participando dos Conselhos de Saúde, em nível municipal e estadual. São eles que definem os planos de ação e o uso dos recursos no setor. Por isso mesmo, recebem pressões muito grandes de interesses e grupos. Torna-se necessária, portanto, uma ação ordenada e coesa na direção do que interessa à população.
- Apoiando a elaboração e aprovação de leis que reordenem a assistência nesta área. No momento, é importante o trabalho junto aos senadores para a aprovação do Projeto de Lei n. 3.657/89.4
Para ilustrar as inúmeras oportunidades que a ministração cristã encontra nessa área, relato aqui uma experiência na qual a igreja está sendo, realmente, uma comunidade terapêutica:
“D. Maria foi acometida de um transtorno mental severo, com crises intensas. Foi internada em uma instituição convencional e lá permanecia por 9 anos. No correr desse tempo, foi considerada inválida e perdeu os direitos civis, o esposo faleceu e os três filhos foram dispersos. Num domingo, ela conheceu uma pessoa que cultiva o ministério de visitação aos enfermos. Ao ler o folheto recebido, deparou-se com o endereço da Igreja e não teve dúvidas: na primeira oportunidade iria até lá. Conseguiu, então, uma licença e no fim de semana seguinte ela, de fato, o fez. Estava tão confiante e entusiasmada com as novas descobertas que decidiu, sem qualquer anúncio, não voltar ao hospital. Passados alguns dias, quando o fato foi conhecido, todos se assustaram; e providenciou-se que tivesse uma consulta psiquiátrica. Foi logo admitida num programa terapêutico específico, demonstrando estabilidade satisfatória. Um advogado providenciou, então, que recuperasse seus direitos e a guarda dos filhos. Uma família da Igreja admitiu-a como empregada e supervisiona para que não falte o medicamento. Os parentes reaproximaram-se, o lar refeito esforça-se para superar as marcas da separação prolongada... e já se vão 5 anos”.
Lembro-me das palavras do Senhor Jesus: "Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes".5
Referências bibliográficas
1) GOFFMAN, E. - Manicômios, Prisões e Conventos. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1974.
2) OMS/OPAS - Reestructuracion de la Atencion Psiquiatrica. Washington, D.C., 1991.
3) LIMA, E. E. de - Situação Atual da Interconsulta e Psiquiatria em Hospital Geral no Brasil. Trabalho apresentado ao XIII Congresso Brasileiro de Psiquiatria, 1994.
4) DELGADO, P. G. - As Razões da Tutela. Te Corá Ed., Rio de Janeiro, 1992, Anexo 6.
5) Bíblia, Mateus 25:40.
_________
Uriel Heckert é médico psiquiatra, mestre em filosofia pela UFJF, doutor em psiquiatria pela USP, membro do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e da 4ª Igreja Presbiteriana de Juiz de Fora, MG.
Leia mais
Dona Aparecida, 22 anos depois da decisão “Eu vou frequentar esta igreja!”
Igrejas: comunidades terapêuticas
Uriel Heckert, doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo, professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos fundadores do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos.
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