Opinião
- 13 de dezembro de 2011
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Ortodoxia e Narcisismo (Parte 1)
Talvez em virtude de nossa formação racional leiamos as cartas de Paulo como tratados sistemáticos de teologia. O tema principal da carta aos Romanos é a “justificação pela fé”. O da carta aos Gálatas e a “graça de Deus”, e por aí vai. No entanto, sou muitas vezes levado a reconhecer que, embora os tratados teológicos sejam fundamentais em suas cartas, Paulo está profundamente preocupado com um outro assunto: a formação do povo de Deus. Este é o grande tema das cartas de Paulo.
Como que judeus com sua longa tradição religiosa e romanos com sua bagagem pagã e sincrética, iriam se encontrar, na grande capital do Império Romano, e ter uma identidade comum como povo de Deus? Como que numa cidade como Corinto, com sua população híbrida formada de ex-soldados romanos, escravos, escravos livres, gregos, judeus, comerciantes, marinheiros, prostitutas cultuais, todos com suas tradições, moral, hábitos, que agora se encontram num mesmo lugar para cultuar o mesmo Deus e afirmar que Jesus Cristo é seu Senhor? A formação da identidade cristã sempre foi uma grande preocupação dos autores do Novo Testamento.
A argumentação teológica de Paulo é a forma como ele estabelece os alicerces desta nova identidade. Sua intenção é a formação da identidade do povo da nova aliança. Para os cristãos de Roma ele diz: “não vos conformeis com este século…”. Para os de Éfeso: “não andem como andam os gentios…”. Para os de Colossos: “dispam-se do velho homem…”. O povo de Deus é o povo da nova aliança, a nova humanidade inaugurada em Cristo, a nova criação. Este povo é chamado para um novo modo de ser, um novo jeito de viver. A teologia e a doutrina dão o fundamento para isto.
Por outro lado, a igreja encontra-se constantemente sob o olhar e o juízo do mundo. Paulo afirma que ela é o corpo de Cristo, a representação visível do Senhor não visível. Suas obras e palavras devem refletir e revelar ao mundo algo do caráter e da natureza divina, algo do amor e santidade. É por esta razão que Paulo se preocupa com o comportamento dos cristãos. O conhecimento de Deus era, muitas vezes, negado pelo comportamento dos cristãos. A forma como viviam negava aquilo que criam e afirmavam sobre Deus. A fórmula de Tiago era muito simples: A fé sem as obras decorrentes dela é morta. Não se demonstra a fé sem um comportamento adequado a ela. O apelo que Paulo faz aos crentes de Creta é para que “embelezem a doutrina de Deus com um comportamento apropriado (Tt 2.10).
Jesus afirma que o mundo nos reconhecerá como seus discípulos pelo amor que demonstramos para com o próximo (Jo 13.34,35). Afirma também, em sua oração de despedida, que o mundo haveria de crer que ele é o Salvador pela comunhão e unidade que os discípulos dele haveriam de demonstrar (Jo 17.21). Jesus oferece ao mundo o direito de julgar a identidade do seu povo pela forma como amam e respondem à missão do Filho.
O chamado de Deus envolve a doutrina e o comportamento ou, nas palavras de Francis Schaeffer, a ortodoxia da doutrina e a ortodoxia da comunidade. Só podemos compreender a importância e a influência da igreja nos primeiros séculos por estas duas realidades combinadas.
As igrejas sempre enfrentaram dificuldades, ora com a doutrina, ora com o comportamento. Na maioria das vezes, com ambos. Líderes gananciosos e enganadores, cristãos insolentes e desobedientes comprometem a integridade e a identidade da igreja de Cristo. Ser povo de Deus, reconhecer que temos um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai, que fazemos parte de um mesmo corpo onde, embora sendo distintos, formamos uma só realidade, nunca foi tarefa fácil.
Exatamente por ser uma tarefa difícil é que Paulo exorta os cristãos a serem diligentes e a se esforçarem para preservar sua identidade comum. É uma tarefa que requer humildade, mansidão, compaixão, submissão, e muitas outras virtudes que são rejeitadas pela cultura moderna. No passado, um grande obstáculo à unidade da igreja eram as barreiras denominais e institucionais. Hoje, as muralhas que foram construídas ao redor das denominações vem sendo ruídas, mas enfrentamos uma outra muralha, talvez ainda maior. Nós mesmos.
Nota
Primeira parte do artigo baseado na preleção do autor feita no 1º Fórum da Aliança Evangélica no dia 24 de novembro de 2011, em Brasília (DF).
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Pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília (DF). É colunista da revista Ultimato e autor de A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja, Pensamentos Transformados, Emoções Redimidas e O Caminho do Coração.
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