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Opinião

Oppenheimer - Há limites que não devem ser ultrapassados

Por Carlos Caldas
 
Oppenheimer, do diretor inglês Christopher Nolan, é um dos grandes lançamentos do cinema mundial neste ano de 2023. O filme de Nolan é baseado no livro Oppenheimer: o triunfo e a tragédia do Prometeu americano, de Kai Bird e Martin J. Sherwin (como não li o livro, não sei se o filme é ou não fiel ao texto que o inspirou). Com três horas de duração, um elenco estelar (atores e atrizes do mais alto escalão de Hollywood, com interpretações primorosas), muitos diálogos (alguns bem complexos, especialmente aqueles em que há explicações de questões da física que envolve a explosão de uma bomba atômica), flashbacks, poucos efeitos especiais (há alguns, mas apenas os absolutamente necessários para a narrativa, especialmente o que recria o teste da explosão da bomba atômica no deserto do Novo México1), o filme é bastante diferente do padrão blockbuster que domina o mercado cinematográfico mundial. Quem assina a trilha sonora é o produtor musical sueco Ludwig Göransson, muito competente no que faz. A narrativa poderá parecer lenta e arrastada em alguns momentos, mas é muito bem conduzida por Nolan. O filme mostra a trajetória de J. Robert Oppenheimer, físico estadunidense que liderou a equipe de cientistas responsável pelo Projeto Manhattan na região de Los Alamos, no estado do Novo México, nos Estados Unidos. O objetivo do Projeto Manhattan era construir a bomba atômica, a arma de destruição em massa mais letal da história da nossa espécie humana. 
 
Questões políticas e psicológicas são apresentadas no filme de maneira muito habilidosa. O aspecto político é chocante, quando mostra líderes militares discutindo estimativas de quantas mil pessoas morreriam em Hiroshima e Nagasaki depois do lançamento das bombas. Eles o fazem com uma frieza polar, que chega a assustar, como se estivessem discutindo o resultado de uma partida esportiva. E o aspecto psicológico mostra a ambiguidade de Oppenheimer, que, por um lado, queria levar adiante o projeto, com medo que os alemães consigam fazer primeiro, mas depois se tortura com peso na consciência por ter feito o que fez. Mas ele sabia das consequências que adviriam da explosão de uma bomba atômica. Mesmo assim seguiu adiante. Mas quantas vezes nós todos agimos da mesma maneira? Sabemos que isso, aquilo ou aquilo outro poderá ter consequências que não são boas, e mesmo assim fazemos, mas depois nos arrependemos. Outro aspecto político de destaque no filme é a paranoia que grassava nos Estados Unidos no período pós-guerra, quando muitos tinham um medo patológico de uma conspiração comunista. Oppenheimer foi vítima dessa paranoia, acusado de ser um traidor da pátria. Uma acusação sem base, mas que o levou a enfrentar processos e a sofrer desgastes emocionais intensos. 
 
Um destaque quanto ao elenco: as atuações são todas muito boas, o que não é surpresa, considerando o time altamente talentoso reunido por Nolan, com nomes de peso como Cillian Murphy (que interpreta Oppenheimer), Emily Blunt (no papel de Kitty, a esposa de Oppenheimer, que foi extremamente importante na vida do marido, em todos os sentidos), e ainda, entre outros, Florence Pugh, Matt Damon, Kenneth Branagh, Robert Downey Junior, Jack Quaid, Rami Malek e Gary Oldman (este último interpretando Harry Truman, que à época era o Presidente dos EUA – em uma cena rápida, que considerei a mais pesada de todo o filme, ele recebe Oppenheimer em uma audiência, e não apenas demonstra não ter a menor preocupação com o fato de ter ordenado o lançamento das bombas atômicas no Japão, como também repreende o cientista por se sentir culpado pelo que fez). 
Nós somos homo sapiens, mas também somos homo ferox2 e homo destrutor. Em uma das primeiras narrativas da Bíblia lemos um relato terrível, um fratricídio, isto é, um irmão – Caim – que mata o outro – Abel (Gn 4.1-16). Na sequência, encontramos um comentário do narrador que com poucas palavras define não apenas a Terra no princípio, mas até hoje: “a terra estava corrompida à vista de Deus e cheia de violência” (Gn 6.11). A bomba atômica é o símbolo maior da violência destrutiva que nós humanos somos capazes de cometer. Contra quem? Contra o “outro”, que consideramos um inimigo, uma ameaça. Mas não nos damos conta que a violência é como um bumerangue. A maldade que praticamos cedo ou tarde voltará e nos atingirá. “Todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão”, disse Jesus (Mt 26.52). 

 
Outro aspecto que o filme Oppenheimer nos faz pensar é o da tecnologia: há limites para o desenvolvimento científico e tecnológico? Toda tecnologia é boa? Estas questões me fizeram mais uma vez me lembrar dos primeiros capítulos do Gênesis. A tradição alemã de erudição especializada nos estudos bíblicos denomina o bloco constituído pelos primeiros 11 capítulos do Gênesis de Urgeschichte, a história primeva, a história antes da história. Dois episódios na Urgeschichte bíblica falam da ambiguidade da tecnologia. O primeiro, nos capítulos 6-9, a narrativa do dilúvio (é impressionante que esta narrativa ocupe quatro capítulos inteiros, pois no geral as narrativas da Bíblia Hebraica são muito lacônicas, extremamente econômicas em detalhes): a construção da arca demandou tecnologia, no caso, para salvação de vidas, humanas e animais. Já no capítulo 11, o relato da Torre de Babel, ao falar da construção de “uma cidade e uma torre que chegue ao céu. Vamos nos tornar famosos!” (Gn 11.4, A Mensagem)3. Alguns exegetas defendem que a Torre de Babel era um projeto absolutista de poder político-militar, designado a submeter povos conquistados a um regime de escravidão4. Neste caso, tecnologia usada com finalidades egoístas e perversas. O que nos leva a concluir que nem toda tecnologia é boa de per si. Algumas tecnologias defenderão e promoverão a vida e o bem-estar. Outras, produzirão morte e destruição. 
 
Resumindo: o filme Oppenheimer (talvez a melhor obra da carreira de Nolan até o momento) nos mostra que há limites que não devem ser ultrapassados. Algumas coisas depois de feitas, não podem ser desfeitas. Melhor pensar duas vezes antes de fazer qualquer coisa.

Notas:
1. Li alhures, há muitos anos (será impossível lembrar onde foi que li isso) que camponeses mexicanos que moravam na região rural nas proximidades do local do teste da bomba atômica quando viram de longe o brilho da explosão, sem saber do que se tratava, deram ao “fenômeno” o nome de la jornada del muerto – “a viagem do morto”. 
2. Homo ferox é o título do livro do jornalista científico Reinaldo José Lopes publicado em 2021 pela HarperCollins Brasil que apresenta a jornada de violência humana no decorrer da história, além de apresentar medidas para combatê-la. 
3. A narrativa da construção da Torre de Babel é (re)contada literariamente por Ted Chiang, escritor sino-americano, no conto A Torre da Babilônia, que faz parte de seu livro História da sua vida e outros contos. São Paulo: Intrínseca, 2016. O conto de Chiang é o roteiro perfeito para um filme, especialmente com seu final enigmático e absolutamente surpreendente. 
4. Por exemplo, Milton Schwantes. Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Paulus, 2002, p. 92. 


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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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