Opinião
- 31 de agosto de 2022
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O testemunho cristão no espaço público
Por Davi Lago
“Não importa o que aconteça, exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo, para que assim, quer eu vá e os veja, quer apenas ouça a seu respeito em minha ausência, fique eu sabendo que vocês permanecem firmes num só espírito, lutando unânimes pela fé evangélica” (Filipenses 1.27)
O evangelho é um chamado à uma vida com valores, convicções, posturas, palavras e ações conforme vivenciadas, ensinadas e ordenadas por Jesus Cristo. No Novo Testamento, os cristãos são convocados a viverem em coerência com este padrão de vida: “vivam de maneira digna da vocação que receberam” (Ef 4.1); “vivam de maneira digna do Senhor” (Cl 1.10); “vivam de maneira digna de Deus, que os chamou para o seu Reino e glória” (1Ts 2.12); “corram com perseverança a corrida que nos é proposta” (Hb 12.1); “vivam de maneira santa e piedosa” (2Pe 3.11). Em Filipenses 1.27, o modo como a convocação é feita de um modo peculiar, com aspectos únicos, pois relaciona a vida cristã diretamente com a participação na cidade, na pólis. O texto diz: “exerçam sua cidadania de modo digno do evangelho de Cristo”. Paulo utiliza uma palavra muito específica do vocabulário cívico-político grego: politeuesthe [πολιτεύεσθε]. Este termo só aparece duas vezes nas Escrituras, em Filipenses e em Atos 23.1, e tem um significado único, difícil de traduzir para outros idiomas, pois está vinculado com o conceito grego clássico de “pólis”. A pólis era a totalidade da comunidade política, que formava um todo orgânico. Assim, “politeusthe” é uma expressão que não tem tradução exata para o português, seria algo como “participar da pólis ativamente”, ou conforme a tradução NVI: “exerçam a sua cidadania”. A expressão carrega a ideia de realizar a cidadania plenamente em direitos e deveres. Esta exortação com certeza tocou no coração dos filipenses, afinal, os filipenses eram extremamente orgulhosos de sua cidadania romana e tradição política.
Vale a pena destacar: as estruturas urbanas da cidade de Filipos existem até hoje, de tão bem construídas que foram, ao lado da moderna cidade de Kavala na Grécia. Filipos foi fundada por volta do ano 356 antes de Cristo, por Felipe II, o pai de Alexandre, o Grande. O nome “Filipos”, vem justamente de “Filipe”. Já no período romano, em 42 a.C., a cidade foi palco da célebre Batalha dos Filipenses, conflito no qual Otaviano e Marco Antônio venceram os assassinos de Júlio César, Brutus e Cassius. Deste modo, os filipenses eram muito conscientes de suas tradições políticas. A cidade, na época de Paulo, era ligada ao Império Romano pela estrada conhecida como Via Egnatia, que também tem suas ruínas preservadas até hoje. Para os filipenses, era uma honra viver conforme as leis de Roma. De fato, a cidadania romana conferia inúmeros privilégios. O próprio apóstolo Paulo também possuía a cidadania romana (At 16.37). Assim, neste contexto de orgulho cívico e político, Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, exorta os cristãos filipenses: “participem da pólis de modo digno do evangelho de Cristo”.
Ou seja, os filipenses deveriam exercer sua cidadania de maneira compatível com a grandeza do evangelho de Cristo. O termo utilizado é axiōs [ἀξίως], que significa “mesmo peso”, “mesmo valor”, “congruente”. O cristão precisa viver de modo conveniente, correspondente, coerente com o evangelho de Cristo. É preciso muita atenção neste ponto: a coerência em questão é com o evangelho de Cristo, o conteúdo do evangelho é Cristo! O mesmo Cristo Jesus de quem Paulo e Timóteo são “escravos” (1.1); em quem os filipenses “estão” (1.1); que é “Senhor” (1.2); que concede “graça e paz” junto com “Deus nosso Pai” (1.2); que começa e termina a “boa obra” (1.6); que manifestará o seu “dia” (1.6); em quem Paulo tem “afeição” pelos filipenses (1.8); que manifesta o “dia de Cristo” que exige pureza (1.10); que gera fruto da justiça nos filipenses (1.11); por quem Paulo está preso (1.13); que motiva os irmãos na tribulação (1.14); que é “Senhor” (1.14); que é pregado por inveja e rivalidade por alguns (1.15); que é pregado de boa vontade por outros (1.15); que é pregado por ambição egoísta, sem sinceridade e para fazer mal ao apóstolo (1.17); que é pregado por motivos falsos e verdadeiros (1.18); que auxilia pelo seu Espírito (1.19); que é engrandecido no corpo quer pela vida quer pela morte (1.20); que é o viver de Paulo (1.21); que está presente além da morte (1.23); em quem os filipenses podem exultar (1.26). Como se afirmará no capítulo 2 de Filipenses, diante do nome de Jesus todo joelho se dobrará, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai (2.10-11).
Paulo estabelece, então, três deveres aos filipenses, que são três deveres para a igreja em seu testemunho público ainda hoje. Estes três deveres são ilustrados por três imagens: (1) a imagem do cidadão (v.27a); (2) a imagem do soldado (v.27b); (3) a imagem do atleta (v.27c).
1º dever: honrar o evangelho de Cristo no comportamento público. A mensagem de Jesus faz surgir um novo tipo de ser humano. Em Cristo recebemos um novo coração, novos interesses, novos padrões, um novo senso de segurança, uma nova força para enfrentar os problemas. A fé no evangelho molda nosso caráter e comportamento público. Testemunhar não é algo que fazemos, é algo que somos. Não é mera “isenção do inferno”, é uma nova postura ativa e propositiva. Isso significa que devemos ser literalmente bons cidadãos. Ser um bom cidadão implica a civilidade básica, ou seja, o cristão deve se comportar adequadamente em público, ter bom senso elementar da etiqueta que demonstra respeito mútuo entre as pessoas. Como a igreja quer influenciar a sociedade de modo decente, se os cristãos não têm o menor respeito por protocolos sociais básicos. É impressionante a incongruência de gente da igreja que afirmar querer transformar o mundo, mas é extremamente mal-educada, estúpida, sem consideração pelos outros, sem amor. Pessoas que não conseguem cumprimentar a outra, que maltratam os colegas de trabalho, da faculdade, da vizinhança. Mas ser um bom cidadão, implica mais que a civilidade básica, implica a virtude cívica, ou seja, o interesse real e ativo no bem comum. Os cristãos são chamados a se importar com o próximo, com entorno, com a comunidade inteira. Devem estar em dia com os tributos e as responsabilidades cidadãs. É importante serem bons eleitores, bons motoristas, bons pedestres, bons usuários dos serviços públicos. A ética cristã é incompatível tanto com divinização como com a demonização da polis. Devemos exercer nossa cidadania de modo digno de Cristo, sem anarquismo cínico, sem qualquer espécie de fanatismo político totalitário, sem ansiedade apocalíptica. Contudo, o texto de Filipenses 1.27 significa ainda mais: significa que devemos honrar acima de tudo nossa cidadania espiritual. Paulo afirmará que “a nossa cidadania, porém, está nos céus” (Fp 3.20). Ou seja, devemos olhar para Cristo, não para César como modelo de comportamento. Não basta ser bom cidadão romano. O cristão tem uma cidadania primária celeste e todas as outras cidadanias secundárias são terrenas. É a cidadania espiritual que regula a cidadania terrena, não o contrário. Paulo afirma que todos os seus títulos e conquistas são esterco perto de Cristo (Fp 3.8). Somente se a pólis ordenar o pecado, o cristão deve praticar a contracidadania, a desobediência civil. Quando o Sinédrio ordenou que Pedro e João não anunciassem a Jesus Cristo, eles desobedeceram ao Sinédrio e continuaram a pregar Jesus. Por que? Porque Jesus deu uma ordem: “Vão pelo mundo e preguem o evangelho a toda a criatura” (Mc 16.15). Assim eram dois comandos contrários: “preguem!” (Jesus) x “não preguem!” (Sinédrio). Diante deste impasse, Pedro e João não tiveram dúvidas: “Importa obedecer a Deus e não a homens” (At 5.29). Há um comportamento público que dignifica o evangelho e outro que o desonra, devemos viver de modo a honrar o Senhor.
2º dever: permanecer firmes em um só espírito e uma só mente. O testemunho cristão é comunitário. É uma luta pessoal e comunitária. A igreja não é um exército de um homem só. O cristão é necessariamente solidário, responsivo, comunitário. Somos membros de um corpo, e a cabeça é Cristo. Paulo utiliza uma metáfora militar: assim como os soldados precisam ficar firmes na posição, os cristãos precisam permanecer firmes e unidos no testemunho público. Não podem ceder aos pensamentos contrários ao evangelho, não podem ser seduzidos por vãs filosofias. A unidade é no espírito e na mente. Existe uma mentira que diz: “Deus por todos e cada um por si”. A Bíblia ensina diferente: devemos estar unidos. Em João 17, quando Jesus orou pela igreja, ele não pediu templos ou dinheiro, ele pediu unidade. Em Atos 4.32 aprendemos que a igreja primitiva era uma multidão unida em um só coração. Assim, o cristão é resolvido consigo e com o irmão. Os cristãos não lutam um contra o outro. No lugar da acusação mútua, existe a intercessão mútua. Devemos, portanto, viver em humildade. O orgulho alimenta a lembrança da ofensa, a humildade esquece e perdoa.
3º dever: lutar unânimes pela fé evangélica. A última metáfora é esportiva. Paulo utiliza o termo sunathlountes [συναθλοῦντες], o mesmo termo que origina “atleta” e “atletismo”. Ou seja, a igreja deve atuar no espaço público de modo inteligente, assim como atletas atacam dentro de um jogo a outra equipe. A igreja não é um amontoado aleatório de gente. Há uma coordenação tática. Assim, a igreja se defende como exército e ataca como equipe esportiva bem treinada. Cada um exerce uma função na equipe cristã. A equipe é unida pela “fé evangélica”, não por contratos, não por modismos, não por picuinhas. Em Filipenses 1.27, Paulo sumariza e aplica tudo o que já apontou sobre o evangelho na abertura da carta. A vida da igreja se dá com: cooperação no evangelho (1.5); confirmação do evangelho (1.7); progresso do evangelho (1.12); defesa do evangelho (1.16); portanto, devemos exercer a cidadania digna do evangelho (1.27) e lutar unânimes pela fé evangélica (1.27). A genuína fé evangélica denuncia o pecado e anuncia a condenação do mundo. O ser humano não é vítima, é pecador, ele se rebelou contra o Criador amoroso. O evangelho denuncia o pecado, o evangelho é “poder de Deus” (Rm 1.16) que liberta o ser humano do pecado. O evangelho de Jesus é “salvação ao que crê” (Ef 1.13).
O mundo sem Cristo se ofende com o evangelho e tenta intimidar a igreja. O lema da humanidade sem Deus é: “deixe-me fazer o que quero e, ao mesmo tempo, dê-me a sua aprovação”. Paulo fala sobre os “inimigos da cruz” (Fp 3.18), aquelas pessoas nervosinhas que procuram maltratar os cristãos com ofensas, torturas, discriminações, preconceitos. Mas a igreja não deve se intimidar. Por isso, o texto encerra afirmando que não devemos ser intimidados (Fp 1.28-30). O cristão não deve se intimidar diante de quem quer que seja, as ameaças do mundo não funcionam mais. Nada poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus. O Senhor Jesus disse: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10.28). Que a igreja brasileira exerça sua cidadania de modo digno do evangelho de Cristo, unida na fé evangélica.
- Davi Lago é Pastor da Igreja Batista, mestre em Teoria do Direito (2013) e graduado em Direito (2009) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisa sobre Teoria da Democracia na interface com Ciência da Religião e Filosofia do Direito. Estudos em Teoria do Estado, Protestantismo e Política, Teoria da Argumentação Jurídica, Direito e Literatura. Autor de “Brasil polifônico: os evangélicos e as estruturas do poder” (2018, MC). Professor e Co-coordenador do grupo “Hiper-religiosidade: A prisão da fé na era das liberdades” no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundasp/PUC-SP. Membro do Grupo Linguagens da Religião vinculado ao CNPq.
Originalmente publicado por Aliança Evangélica Brasileira. Reproduzido com autorização.
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