Opinião
- 28 de outubro de 2021
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O sertão é dentro da gente... O sertão é sem lugar
65 anos de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa
Por Carlos Caldas
2021 marca o sexagésimo-quinto aniversário do lançamento de Grande Sertão: Veredas1, de João Guimarães Rosa (1908-1967). A obra, seu único romance, é, sem dúvida, a produção mais conhecida e famosa do corpus roseano. Mineiro de Cordisburgo, Guimarães Rosa era médico de formação (foi contemporâneo de Juscelino Kubitschek e de Pedro Nava), além de ter sido diplomata, tendo trabalhado no Consulado do Brasil em Hamburgo de 1938 a 1942, período conturbado, em plena época da Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, Aracy de Carvalho, sua segunda esposa, facilitou para que muitos judeus alemães conseguissem entrar no Brasil, fugindo da perseguição nazista, a despeito das simpatias que Getúlio Vargas, então presidente do país, tinha pelo regime de Adolf Hitler. Por conta de sua atuação a favor dos judeus, Aracy de Carvalho ficou conhecida como “O Anjo de Hamburgo”. Guimarães Rosa era poliglota: certa feita, em uma entrevista, declarou falar seis línguas, ler outras quatro e ter estudado a gramática de outras onze.
Mas foi como escritor, especificamente, como contista e romancista, que Guimarães se notabilizou, a ponto de ter sido indicado para o Nobel de Literatura em 1967, ano em que veio a falecer, vitimado por um ataque cardíaco. Toda a narrativa roseana se passa em um ambiente rural, os “sertões das Gerais”, território que compreende o sertão do centro-norte mineiro, do centro-sul da Bahia e do nordeste de Goiás. Com uma criatividade raras vezes encontrada, ao mesmo tempo que usou um cenário real, criou um mundo todo seu: o sertão de Guimarães existe e não existe ao mesmo tempo: “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o lugar”, diz o jagunço-filósofo Riobaldo Tatarana, o narrador da obra. Guimarães também criou uma linguagem: seu estilo é uma mescla de português arcaico, português sertanejo e um tanto que é exclusivamente seu, um trabalho impressionante de experimentação e criação linguística. Um exemplo: lá pelas tantas em sua obra-prima, a respeito da qual comentamos neste texto, posto que brevemente, Riobaldo menciona uma “neblina noruega”. É altissimamente improvável (para não dizer impossível) que um roceiro do sertão mineiro, como é o caso de Riobaldo, tivesse conhecimento de um país no norte da Europa chamado Noruega, em que há neblinas densas. Eis aí apenas uma mostra “homeopática” da genialidade e liberdade poética com que Guimarães escreveu. O poeta e ensaísta brasileiro Alexei Bueno declarou que Grande Sertão: Veredas é uma das três epopeias da língua portuguesa, ao lado de Os Lusíadas, de Camões, e de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Este é apenas um dos muitos encômios que a obra recebeu, tem recebido, e certamente receberá. De fato, a obra é simplesmente única, sem igual. Não será exagero afirmar que Grande Sertão: Veredas é uma das melhores obras já escritas em toda a história da literatura mundial. Há na obra especulações metafísicas e antropológicas traduzidas na linguagem absolutamente única de Guimarães. Um exemplo: a respeito do humano, Riobaldo diz: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.
A obra é um monólogo de 400 páginas. Riobaldo, o jagunço que narra a estória – palavra que não é reconhecida pela Academia Brasileira de Letras, mas que era uma das preferidas de Guimarães – a um ouvinte paciente, a quem Riobaldo se dirige com vocativos como “senhor”, “doutor” ou simplesmente “moço”, que em nenhum momento o interrompe: “O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro”. Riobaldo, já velho, lembra as aventuras e as guerras que testemunhou e viveu: “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”. Dizem que quem nunca leu a obra se conseguir ler as primeiras cinquentas páginas, irá até o fim... A narrativa, fascinante, não linear extremamente sofisticada e complexa, variando entre o exterior (o cenário físico, as guerras entre bandos de jagunços) e o interior (as especulações metafísicas de Riobaldo, alter ego de Guimarães), circula ao redor de dois eixos principais: um, a amizade entre o narrador e Reinaldo, chamado de Diadorim, também jagunço, por quem Riobaldo sente algo que teme ser mais que mera amizade (nas palavras de Riobaldo, “Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Digo o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego”). O outro, a questão de um suposto pacto que o narrador teria feito com o diabo, em um lugar chamado Veredas Mortas. Riobaldo quer se assegurar que conseguirá derrotar o Hermógenes, “homem sem anjo da guarda”, pois este e Ricardão assassinaram o Chefe Joca Ramiro, pai de Diadorim. A respeito de Hermógenes Riobaldo dirá: ““Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas profundas. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhos-de-deus – felão de mau”. O tema do pacto com o diabo já fora explorado por Wolfgang von Goethe e por Thomas Mann. Riobaldo fica o tempo todo em dúvida sobre se o tal pacto teria ou não acontecido. Em dado momento, afirma: “O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo”. E em outra parte, “o diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias”.
Na narrativa de Riobaldo desfilam lugares que são verdadeiramente personagens, como o Liso do Sussuarão e a Fazenda Santa Catarina, “perto do céu”. E muitos, muitos personagens, fascinantes e enigmáticos, como Rosa’uarda, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Jõe Bixiguento, Maria Mutema (assassina que vira santa), a prostituta Nhorinhá, seô Habão, Otacília (futura noiva de Riobaldo, “fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença”), Hermógenes (o vilão da narrativa), Ricardão, Só Candelário, e muitos outros. Alguns são apenas mencionados, como o “cumpadre meu Quelemém”, descrito como espírita kardecista e “um Matias”, crente metodista, que mora no “Mindubim”.
E como não poderia deixar de ser, o elemento religioso é quase onipresente no monólogo de Riobaldo. E também como não poderia deixar de ser, há estudiosos que têm investigado a obra tentando decifrar este elemento. Entre tantas, duas obras se destacam: JGR: metafísica do grande sertão, do francês Francis Utéza2, e O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa, da brasileira Heloisa Vilhena de Araújo3. Utéza defende que Guimarães apresenta elementos do hermetismo, do taoísmo e do budismo zen no Grande Sertão. Heloisa Vilhena de Araújo por sua vez advoga a tese que Guimarães em sua obra demonstra ter sido influenciado pela mística cristã renano-flamenga do século 15. Observe-se que são duas teses antagônicas, em extremos opostos. Particularmente entendo que as duas estão corretas.
De fato, Riobaldo/Guimarães fala de religião muitas e muitas vezes. Logo no início de seu longo relato, afirma:
O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo-é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião, para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso vou no Mindubim, onde um Matias, é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.
Riobaldo fala muito de Deus: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza”. Em outro momento: “A força dele (i. é, de Deus), quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”.
Ouso afirmar que a obra é diferente de qualquer outra que você, leitor/a já tenha lido. Se nunca a leu, que tal aceitar o desafio de se embrenhar pelo sertão? Para Riobaldo, a vida é uma aventura vivida no sertão, o interior, existencial, presente no coração de cada de um nós, com nossas complexidades e contradições, e o exterior, o mundo em que vivemos. E tendo adiante de nós o sertão, temos que enfrentar a última palavra, que literalmente encerra o monólogo gigantesco de Riobaldo: Travessia.
Notas
1. Háte, como seria de se esperar, muitas edições de Grande Sertão: Veredas. A mais recen, a 22ª, é de 2019, pela Companhia das Letras. Há inclusive uma versão quadrinizada da obra, publicada em 2014 pela Editora Globo, feita pelos quadrinistas brasileiros Eloar Guazelli (roteiro) e Rodrigo Rosa (arte).
2. JGR: metafísica do grande sertão. Francis Utéza. São Paulo: EDUSP, 1994 (uma segunda edição foi publicada em 2016).
3. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. Heloisa Vilhena de Araújo. São Paulo: Mandarim, 1996
Leia mais:
» A propósito dos 700 anos da morte de Dante Alighieri: você já leu "A Divina Comédia"?
Por Carlos Caldas
2021 marca o sexagésimo-quinto aniversário do lançamento de Grande Sertão: Veredas1, de João Guimarães Rosa (1908-1967). A obra, seu único romance, é, sem dúvida, a produção mais conhecida e famosa do corpus roseano. Mineiro de Cordisburgo, Guimarães Rosa era médico de formação (foi contemporâneo de Juscelino Kubitschek e de Pedro Nava), além de ter sido diplomata, tendo trabalhado no Consulado do Brasil em Hamburgo de 1938 a 1942, período conturbado, em plena época da Segunda Guerra Mundial. Na ocasião, Aracy de Carvalho, sua segunda esposa, facilitou para que muitos judeus alemães conseguissem entrar no Brasil, fugindo da perseguição nazista, a despeito das simpatias que Getúlio Vargas, então presidente do país, tinha pelo regime de Adolf Hitler. Por conta de sua atuação a favor dos judeus, Aracy de Carvalho ficou conhecida como “O Anjo de Hamburgo”. Guimarães Rosa era poliglota: certa feita, em uma entrevista, declarou falar seis línguas, ler outras quatro e ter estudado a gramática de outras onze.
Mas foi como escritor, especificamente, como contista e romancista, que Guimarães se notabilizou, a ponto de ter sido indicado para o Nobel de Literatura em 1967, ano em que veio a falecer, vitimado por um ataque cardíaco. Toda a narrativa roseana se passa em um ambiente rural, os “sertões das Gerais”, território que compreende o sertão do centro-norte mineiro, do centro-sul da Bahia e do nordeste de Goiás. Com uma criatividade raras vezes encontrada, ao mesmo tempo que usou um cenário real, criou um mundo todo seu: o sertão de Guimarães existe e não existe ao mesmo tempo: “sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o lugar”, diz o jagunço-filósofo Riobaldo Tatarana, o narrador da obra. Guimarães também criou uma linguagem: seu estilo é uma mescla de português arcaico, português sertanejo e um tanto que é exclusivamente seu, um trabalho impressionante de experimentação e criação linguística. Um exemplo: lá pelas tantas em sua obra-prima, a respeito da qual comentamos neste texto, posto que brevemente, Riobaldo menciona uma “neblina noruega”. É altissimamente improvável (para não dizer impossível) que um roceiro do sertão mineiro, como é o caso de Riobaldo, tivesse conhecimento de um país no norte da Europa chamado Noruega, em que há neblinas densas. Eis aí apenas uma mostra “homeopática” da genialidade e liberdade poética com que Guimarães escreveu. O poeta e ensaísta brasileiro Alexei Bueno declarou que Grande Sertão: Veredas é uma das três epopeias da língua portuguesa, ao lado de Os Lusíadas, de Camões, e de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Este é apenas um dos muitos encômios que a obra recebeu, tem recebido, e certamente receberá. De fato, a obra é simplesmente única, sem igual. Não será exagero afirmar que Grande Sertão: Veredas é uma das melhores obras já escritas em toda a história da literatura mundial. Há na obra especulações metafísicas e antropológicas traduzidas na linguagem absolutamente única de Guimarães. Um exemplo: a respeito do humano, Riobaldo diz: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.
A obra é um monólogo de 400 páginas. Riobaldo, o jagunço que narra a estória – palavra que não é reconhecida pela Academia Brasileira de Letras, mas que era uma das preferidas de Guimarães – a um ouvinte paciente, a quem Riobaldo se dirige com vocativos como “senhor”, “doutor” ou simplesmente “moço”, que em nenhum momento o interrompe: “O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro”. Riobaldo, já velho, lembra as aventuras e as guerras que testemunhou e viveu: “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”. Dizem que quem nunca leu a obra se conseguir ler as primeiras cinquentas páginas, irá até o fim... A narrativa, fascinante, não linear extremamente sofisticada e complexa, variando entre o exterior (o cenário físico, as guerras entre bandos de jagunços) e o interior (as especulações metafísicas de Riobaldo, alter ego de Guimarães), circula ao redor de dois eixos principais: um, a amizade entre o narrador e Reinaldo, chamado de Diadorim, também jagunço, por quem Riobaldo sente algo que teme ser mais que mera amizade (nas palavras de Riobaldo, “Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Digo o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa-feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego”). O outro, a questão de um suposto pacto que o narrador teria feito com o diabo, em um lugar chamado Veredas Mortas. Riobaldo quer se assegurar que conseguirá derrotar o Hermógenes, “homem sem anjo da guarda”, pois este e Ricardão assassinaram o Chefe Joca Ramiro, pai de Diadorim. A respeito de Hermógenes Riobaldo dirá: ““Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que revém de locas profundas. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de criaturas filhos-de-deus – felão de mau”. O tema do pacto com o diabo já fora explorado por Wolfgang von Goethe e por Thomas Mann. Riobaldo fica o tempo todo em dúvida sobre se o tal pacto teria ou não acontecido. Em dado momento, afirma: “O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo”. E em outra parte, “o diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias”.
Na narrativa de Riobaldo desfilam lugares que são verdadeiramente personagens, como o Liso do Sussuarão e a Fazenda Santa Catarina, “perto do céu”. E muitos, muitos personagens, fascinantes e enigmáticos, como Rosa’uarda, Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Jõe Bixiguento, Maria Mutema (assassina que vira santa), a prostituta Nhorinhá, seô Habão, Otacília (futura noiva de Riobaldo, “fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença”), Hermógenes (o vilão da narrativa), Ricardão, Só Candelário, e muitos outros. Alguns são apenas mencionados, como o “cumpadre meu Quelemém”, descrito como espírita kardecista e “um Matias”, crente metodista, que mora no “Mindubim”.
E como não poderia deixar de ser, o elemento religioso é quase onipresente no monólogo de Riobaldo. E também como não poderia deixar de ser, há estudiosos que têm investigado a obra tentando decifrar este elemento. Entre tantas, duas obras se destacam: JGR: metafísica do grande sertão, do francês Francis Utéza2, e O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa, da brasileira Heloisa Vilhena de Araújo3. Utéza defende que Guimarães apresenta elementos do hermetismo, do taoísmo e do budismo zen no Grande Sertão. Heloisa Vilhena de Araújo por sua vez advoga a tese que Guimarães em sua obra demonstra ter sido influenciado pela mística cristã renano-flamenga do século 15. Observe-se que são duas teses antagônicas, em extremos opostos. Particularmente entendo que as duas estão corretas.
De fato, Riobaldo/Guimarães fala de religião muitas e muitas vezes. Logo no início de seu longo relato, afirma:
O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo-é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião, para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelém, doutrina dele, de Cardéque. Mas quando posso vou no Mindubim, onde um Matias, é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.
Riobaldo fala muito de Deus: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza”. Em outro momento: “A força dele (i. é, de Deus), quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”.
Ouso afirmar que a obra é diferente de qualquer outra que você, leitor/a já tenha lido. Se nunca a leu, que tal aceitar o desafio de se embrenhar pelo sertão? Para Riobaldo, a vida é uma aventura vivida no sertão, o interior, existencial, presente no coração de cada de um nós, com nossas complexidades e contradições, e o exterior, o mundo em que vivemos. E tendo adiante de nós o sertão, temos que enfrentar a última palavra, que literalmente encerra o monólogo gigantesco de Riobaldo: Travessia.
Notas
1. Háte, como seria de se esperar, muitas edições de Grande Sertão: Veredas. A mais recen, a 22ª, é de 2019, pela Companhia das Letras. Há inclusive uma versão quadrinizada da obra, publicada em 2014 pela Editora Globo, feita pelos quadrinistas brasileiros Eloar Guazelli (roteiro) e Rodrigo Rosa (arte).
2. JGR: metafísica do grande sertão. Francis Utéza. São Paulo: EDUSP, 1994 (uma segunda edição foi publicada em 2016).
3. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. Heloisa Vilhena de Araújo. São Paulo: Mandarim, 1996
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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