Opinião
- 21 de janeiro de 2013
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O reino de ponta-cabeça
Ainda bem que Lucas não foi um historiador “oficial”. Depois de uma acurada investigação em fontes escritas e orais, o médico historiador fez a sua própria narrativa visando a instrução na fé do “excelentíssimo” Teófilo (Lc 1.1-4). Sua escrita apropriou-se da transmissão oral das testemunhas oculares e dos “ministros da palavra”, desde o princípio, ou seja, da encarnação de Jesus.
Um trabalho metodologicamente criterioso de pesquisa e análise que resultou numa das mais preciosas narrativas históricas das origens do “movimento de Jesus”, nas palavras de Eduardo Hoornaert. As tramas tecidas por Lucas revelam uma singular maneira de interpretar a história e a vida invadidas pelo Reino de Deus. O Reino trazido e demonstrado pelo Senhor Jesus Cristo por meio da pregação, do ensino, das curas, das libertações e do serviço.
Embora utilize a forma da datação da época que tinha como referência os governantes (Lc 1.5; 2.1; 3.1), Lucas escreveu uma história desde os “de baixo”. Os sujeitos sociais mais importantes foram as mulheres (como Isabel, Maria, Ana, Maria Madalena), os pastores, os pescadores, os leprosos, os coxos, os cegos, os possessos, os publicanos, os pecadores e as prostitutas. O protagonista é o Filho do Homem, o próprio Deus em sua humanidade plena encarnada, tido como subversivo e herege pelo “establishment” da época, que o crucificou.
Sua abordagem vai além de uma escrita que legitima as instituições, os dogmas e a ordem imposta pelos grupos dominantes. Seu ponto de partida é a manjedoura e não o palácio de Herodes. Nada escreveu a partir de Roma, mas da Galileia. Se Lucas escrevesse naquela perspectiva, privilegiaria Herodes, Pilatos, César, os saduceus, os fariseus e outros agentes sociais que integravam a ordem hegemônica. Ele privilegiaria os cânones da ortodoxia judaica como discurso final e absoluto, racionalista e intolerante para com as diferenças. Em 4.18, definiu o roteiro e o foco da missão do Filho do Homem, justamente os oprimidos pela aliança da religião com o poder político.
Lucas não escreveu uma “história sagrada”. Ele escreveu o sagrado na história. Pois, sagrado é o corpo curado pelo poder de Deus, sagradas são as pessoas que creem e são visitadas pelo Espírito Santo como Maria e Isabel. Sagrada é a vida comum de pescadores e publicanos alterada em seus cotidianos por causa do chamado radical do Reino de Deus. O sagrado é o Espírito guiando Jesus para o deserto ser tentado e dando-lhe poder para testemunhar na Galileia (Lc 4.1,14; At 1.8). Sagrado é o Reino que inverte as posições e coloca de ponta-cabeça o mundo organizado pela violência e pela opressão (15.1,2).
Eusébio de Cesareia (sécs. III-IV), em sua “História Eclesiástica”, desenvolveu uma escrita da história racionalista, cronológica, centrada nas figuras dos bispos e na aliança da Igreja com o Estado. Esta escrita passou a ser padrão no ocidente de alguma forma. O medievo reformulou o ideal do “corpus christianum” agostiniano centrado na supremacia da Igreja na sociedade. A Reforma rompeu com esta leitura, mas os reformadores justificaram o Reino de Deus bipartido entre Igreja e Estado, legitimando as monarquias nacionais com suas religiões oficiais. A ética calvinista serviu como força cultural e religiosa para o advento do capitalismo (Max Weber).
A historiografia positivista do século 19 colocou os reis, os heróis, os generais, os políticos, as instituições e os documentos oficiais como estatuto da verdade histórica. Foi esta história oficial que, no Brasil, justificou o regime da escravidão, o racismo, a opressão sobre as mulheres e a violência do estado contra Canudos, por exemplo. O discurso oficial tende a ser ideologicamente comprometido com o status da verdade estabelecida pelos que dominam e controlam o poder, em diferentes instâncias, inclusive a religiosa. É este discurso que estabelece o que é e o que não é “heresia”, e isto por meio da força, do prestígio, da influência, dos acordos.
Se Deus é o Deus da “ordem” da coisa pública (Rm 13), Ele não é da ordem injusta (Ap 18). A escrita da história não deve oficializar o que o Reino de Deus coloca de ponta-cabeça. Lucas nos ensina a ter que sempre reescrever a história.
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Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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