Opinião
- 29 de fevereiro de 2016
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O Regresso: o filme que deu o Oscar a DiCaprio
O Regresso (“The Revenant”) foi o filme que finalmente deu o Oscar ao ator Leonardo DiCaprio. A película também ganhou o prêmio de melhor diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu) e melhor fotografia. Este diretor mexicano é um fenômeno, pois é um estrangeiro vencedor no mercado altissimamente competitivo de Hollywood. Já faturou o Oscar de Melhor Filme ano passado, com o estranho e bizarro Birdman.
O filme é baseado em fatos reais. A palavra inglesa “revenant”, do título original em inglês, não tem correspondente direto em português. A ideia de “revenant” é a de alguém que volta depois de uma longa ausência, ou de quem volta do mundo dos mortos. Nos dois casos, a ideia é a do retorno de alguém que não se esperava que voltasse. A palavra é muito adequada para a história, baseada em fatos reais: no início da década de 1820 um homem da fronteira por nome Hugh Glass (o personagem de Leonardo DiCaprio) guia um grupo de caçadores de peles em um território inexplorado do que atualmente é o estado de Dakota do Sul. Glass integrou-se bem com a tribo dos Pawnees, pois fala a língua deles, casou-se com uma Pawnee, e com ela teve um filho, Hawk (“falcão”).
Os caçadores de peles foram emboscados por índios da tribo Ree (que na legendagem brasileira são chamados de Arikaras), mas conseguem escapar, contudo com muitas perdas dos membros do grupo. Depois disto, Glass é atacado por uma ursa imensa, que quase o estraçalha por completo. Um dos integrantes do grupo, Fitzgerald (personagem de Tom Hardy, o novo Mad Max – Estrada da Fúria) não tem motivo nenhum para não gostar de Glass, mas não gosta assim mesmo. O líder do grupo, o Capitão Henry, decide que alguém deve ficar para trás tomando conta do literalmente destroçado Glass, enquanto os demais seguirão em frente. Hawk fica com o pai, e também Bridger (Will Poulter, o Eustace de A viagem do Peregrino da Alvorada, da franquia “As Crônicas de Nárnia da Disney”), um dos mais jovens membros do grupo. Só que para surpresa de todos, Fitzgerald se oferece para ficar. Ele depois tentará matar Glass, pois considera um estorvo carregar um homem ferido, e o enterra vivo, mas antes disso mata Hawk, que sem sucesso tentara defender seu pai. Fitzgerald é um canalha completo, um cafajeste da pior espécie. Tom Hardy está irreconhecível, totalmente diferente de seu personagem em Guerreiro e do herói por acidente Max Rockatanski de “Estrada da Fúria”. Ele tem o tempo todo um olhar perdido, como se estivesse para o nada, enquanto maquina suas vilanias. Mas acontece que Glass miraculosamente escapa, e sai sozinho em um deserto de gelo e neve, à procura de vingança.
Antes de prosseguir, faço um comentário sobre a fotografia do filme, indescritivelmente bela. Paisagens de tirar o fôlego. Vários sites divulgaram que o filme foi rodado em locações remotas na Província de Alberta, no Canadá e na Patagônia da Argentina, ou seja, no norte da América do Norte e no sul da América do Sul. DiCaprio saiu-se muito bem no papel. Uma atuação digna do Oscar de Melhor Ator. Suas expressões faciais expressam a angústia e o desespero de quem vê o filho ser covardemente assassinado e de quem quase é morto sem ter a menor condição de ajudar o filho ou se defender.
Várias sinopses do filme apresentaram-no como sendo a história de um homem ferido abandonado que volta para se vingar. Com esta expectativa fui ao cinema. O elemento da vingança está, sim, presente no filme. Jorge Luis Borges em um de seus textos afirmou que só há quatro temas para qualquer história: amizade, amor, viagem e vingança. Algumas histórias poderão ser combinações destes temas. Neste caso, “O Regresso” seria uma incrível narrativa de viagem em busca de vingança. Só que o filme é muito mais que isso. Não se limita a contar o drama de um homem que quer se vingar de injustiças terríveis.
Talvez “O Regresso” possa ser entendido como uma grande narrativa do ser humano como “chiaroscuro”. Esta palavra italiana, que não tem correspondente direto em português, mas que significa literalmente “claro e escuro”, é um termo técnico em história da arte para expressar uma estratégia de pintura da Renascença, que evidentemente contrasta a luz e a sombra. Caravaggio foi mestre no uso desta técnica. O ser humano é “chiaroscuro”, capaz de ações impressionantes, de bondade e de perversidade. Todos – todos – os grupos apresentados no filme são perversos. Não há bonzinhos. Franceses e anglo-americanos roubam, oprimem, humilham e matam os índios, ou “os primeiros americanos”. Mas o filme não cai na pieguice melosa do mito do bom selvagem: Sioux, Rees (Arikaras) e Pawnees guerreiam uns contra os outros e cometem barbaridades uns contra os outros. Mas há também atos de justiça e bondade: o Capitão Henry é extremamente justo e imparcial. O jovem Bridger é bondoso, mas fraco, pois não tem coragem de se posicionar diante de injustiças. Glass em sua viagem de volta encontra um índio Pawnee que o ajuda e o salva da morte. É este índio que vai dar a grande lição teológica do filme. Ao comentar com Glass que ele também teve sua família dizimada pelos Sioux, diz: “Mas a vingança está nas mãos do Criador”. Ele não é cristão, mas repete um dos mais difíceis pontos da ética da tradição judaico-cristã: a vingança está nas mãos do Criador (Dt 32.35; Pv 20.22; Rm 12.19; Hb 10.30). O desejo de vingança é natural e instintivo no ser humano. Daí o grande desafio para quem quer viver a vida em aliança com Javé: abrir mão da vingança. C. S. Lewis em “Cristianismo puro e simples” judiciosamente (como sempre!) observou que, ao contrário do que a opinião popular pensa, o mandamento cristão mais difícil não está na área da moral sexual. Está na área dos relacionamentos – perdoar os ofensores e abrir mão da vingança.
É curioso que na Bíblia Javé é apresentado como o senhor da vingança: “Ó Senhor! Deus vingador! Deus vingador, intervém” (Sl 94.1, NVI). Este é um dos temas frequentes nos Salmos (a propósito, as observações do já citado Lewis em Lendo os Salmos, recentemente publicado pela Editora Ultimato, são de imensa valia). Em Isaías anuncia-se a vinda do Messias, que ungido pelo Espírito do Senhor, trará “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 61.2). Mais tarde Jesus cita esta passagem de Isaías no famoso relato do sermão inaugural de seu ministério na sinagoga de Nazaré. Mas Jesus faz um corte na leitura do texto, e omite a expressão “o dia da vingança” (Lc 4.16-22). David Bosch em seu excelente livro “Missão transformadora” comenta como em Lucas há uma teologia de ausência da vingança.
Vivemos em um mundo caído. Por isso, sofremos maldades da parte de homens depravados. Mas cremos no Deus da justiça. E vivemos o desafio de perdoar quem não merece ser perdoado. Afinal, foi o que Deus fez conosco. Ao comentar sobre o mistério da salvação o teólogo Paul Tillich afirma que esta é “um ato de Deus que não é dependente do homem, um ato pelo qual ele aceita aquele que é inaceitável”1. E diante das injustiças sofridas devemos aprender a orar como os antigos hebreus oravam, pedindo ao Deus das vinganças que intervenha e faça justiça.
Nota:
1. Tillich, Paul. Teologia Sistemática. Três volumes em um. São Leopoldo: Sinodal. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 381.
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O filme é baseado em fatos reais. A palavra inglesa “revenant”, do título original em inglês, não tem correspondente direto em português. A ideia de “revenant” é a de alguém que volta depois de uma longa ausência, ou de quem volta do mundo dos mortos. Nos dois casos, a ideia é a do retorno de alguém que não se esperava que voltasse. A palavra é muito adequada para a história, baseada em fatos reais: no início da década de 1820 um homem da fronteira por nome Hugh Glass (o personagem de Leonardo DiCaprio) guia um grupo de caçadores de peles em um território inexplorado do que atualmente é o estado de Dakota do Sul. Glass integrou-se bem com a tribo dos Pawnees, pois fala a língua deles, casou-se com uma Pawnee, e com ela teve um filho, Hawk (“falcão”).
Os caçadores de peles foram emboscados por índios da tribo Ree (que na legendagem brasileira são chamados de Arikaras), mas conseguem escapar, contudo com muitas perdas dos membros do grupo. Depois disto, Glass é atacado por uma ursa imensa, que quase o estraçalha por completo. Um dos integrantes do grupo, Fitzgerald (personagem de Tom Hardy, o novo Mad Max – Estrada da Fúria) não tem motivo nenhum para não gostar de Glass, mas não gosta assim mesmo. O líder do grupo, o Capitão Henry, decide que alguém deve ficar para trás tomando conta do literalmente destroçado Glass, enquanto os demais seguirão em frente. Hawk fica com o pai, e também Bridger (Will Poulter, o Eustace de A viagem do Peregrino da Alvorada, da franquia “As Crônicas de Nárnia da Disney”), um dos mais jovens membros do grupo. Só que para surpresa de todos, Fitzgerald se oferece para ficar. Ele depois tentará matar Glass, pois considera um estorvo carregar um homem ferido, e o enterra vivo, mas antes disso mata Hawk, que sem sucesso tentara defender seu pai. Fitzgerald é um canalha completo, um cafajeste da pior espécie. Tom Hardy está irreconhecível, totalmente diferente de seu personagem em Guerreiro e do herói por acidente Max Rockatanski de “Estrada da Fúria”. Ele tem o tempo todo um olhar perdido, como se estivesse para o nada, enquanto maquina suas vilanias. Mas acontece que Glass miraculosamente escapa, e sai sozinho em um deserto de gelo e neve, à procura de vingança.
Antes de prosseguir, faço um comentário sobre a fotografia do filme, indescritivelmente bela. Paisagens de tirar o fôlego. Vários sites divulgaram que o filme foi rodado em locações remotas na Província de Alberta, no Canadá e na Patagônia da Argentina, ou seja, no norte da América do Norte e no sul da América do Sul. DiCaprio saiu-se muito bem no papel. Uma atuação digna do Oscar de Melhor Ator. Suas expressões faciais expressam a angústia e o desespero de quem vê o filho ser covardemente assassinado e de quem quase é morto sem ter a menor condição de ajudar o filho ou se defender.
Várias sinopses do filme apresentaram-no como sendo a história de um homem ferido abandonado que volta para se vingar. Com esta expectativa fui ao cinema. O elemento da vingança está, sim, presente no filme. Jorge Luis Borges em um de seus textos afirmou que só há quatro temas para qualquer história: amizade, amor, viagem e vingança. Algumas histórias poderão ser combinações destes temas. Neste caso, “O Regresso” seria uma incrível narrativa de viagem em busca de vingança. Só que o filme é muito mais que isso. Não se limita a contar o drama de um homem que quer se vingar de injustiças terríveis.
Talvez “O Regresso” possa ser entendido como uma grande narrativa do ser humano como “chiaroscuro”. Esta palavra italiana, que não tem correspondente direto em português, mas que significa literalmente “claro e escuro”, é um termo técnico em história da arte para expressar uma estratégia de pintura da Renascença, que evidentemente contrasta a luz e a sombra. Caravaggio foi mestre no uso desta técnica. O ser humano é “chiaroscuro”, capaz de ações impressionantes, de bondade e de perversidade. Todos – todos – os grupos apresentados no filme são perversos. Não há bonzinhos. Franceses e anglo-americanos roubam, oprimem, humilham e matam os índios, ou “os primeiros americanos”. Mas o filme não cai na pieguice melosa do mito do bom selvagem: Sioux, Rees (Arikaras) e Pawnees guerreiam uns contra os outros e cometem barbaridades uns contra os outros. Mas há também atos de justiça e bondade: o Capitão Henry é extremamente justo e imparcial. O jovem Bridger é bondoso, mas fraco, pois não tem coragem de se posicionar diante de injustiças. Glass em sua viagem de volta encontra um índio Pawnee que o ajuda e o salva da morte. É este índio que vai dar a grande lição teológica do filme. Ao comentar com Glass que ele também teve sua família dizimada pelos Sioux, diz: “Mas a vingança está nas mãos do Criador”. Ele não é cristão, mas repete um dos mais difíceis pontos da ética da tradição judaico-cristã: a vingança está nas mãos do Criador (Dt 32.35; Pv 20.22; Rm 12.19; Hb 10.30). O desejo de vingança é natural e instintivo no ser humano. Daí o grande desafio para quem quer viver a vida em aliança com Javé: abrir mão da vingança. C. S. Lewis em “Cristianismo puro e simples” judiciosamente (como sempre!) observou que, ao contrário do que a opinião popular pensa, o mandamento cristão mais difícil não está na área da moral sexual. Está na área dos relacionamentos – perdoar os ofensores e abrir mão da vingança.
É curioso que na Bíblia Javé é apresentado como o senhor da vingança: “Ó Senhor! Deus vingador! Deus vingador, intervém” (Sl 94.1, NVI). Este é um dos temas frequentes nos Salmos (a propósito, as observações do já citado Lewis em Lendo os Salmos, recentemente publicado pela Editora Ultimato, são de imensa valia). Em Isaías anuncia-se a vinda do Messias, que ungido pelo Espírito do Senhor, trará “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 61.2). Mais tarde Jesus cita esta passagem de Isaías no famoso relato do sermão inaugural de seu ministério na sinagoga de Nazaré. Mas Jesus faz um corte na leitura do texto, e omite a expressão “o dia da vingança” (Lc 4.16-22). David Bosch em seu excelente livro “Missão transformadora” comenta como em Lucas há uma teologia de ausência da vingança.
Vivemos em um mundo caído. Por isso, sofremos maldades da parte de homens depravados. Mas cremos no Deus da justiça. E vivemos o desafio de perdoar quem não merece ser perdoado. Afinal, foi o que Deus fez conosco. Ao comentar sobre o mistério da salvação o teólogo Paul Tillich afirma que esta é “um ato de Deus que não é dependente do homem, um ato pelo qual ele aceita aquele que é inaceitável”1. E diante das injustiças sofridas devemos aprender a orar como os antigos hebreus oravam, pedindo ao Deus das vinganças que intervenha e faça justiça.
Nota:
1. Tillich, Paul. Teologia Sistemática. Três volumes em um. São Leopoldo: Sinodal. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 381.
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O Mal e a Justiça de Deus
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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Ricardo Barbosa