Opinião
- 11 de setembro de 2020
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O que a Bíblia tem a nos ensinar sobre o racismo?
Por Quéfren de Moura
Os princípios contidos no seio da sociedade na Bíblia, sobretudo a solidariedade e o amparo aos estrangeiros, oprimidos e desprovidos, não deixam dúvida quanto à atrocidade, à violência e à desumanização perpetradas por qualquer prática ou ideal racista.
Muitos textos da Bíblia atestam a criatividade divina. Eles celebram a inventividade de um Deus que formou o ser humano, com contornos e características únicas, e insuflou nele o seu nishmat hayim, o sopro de vida que permite a existência (Gn 2.7). Esse mesmo Deus abençoou as pessoas que criou e lhes disse que se multiplicassem e enchessem a terra (Gn 1.28; 9.1).
Dentro desse pensamento, cada nascimento compõe, inaugura e cumpre o propósito divino. E nós, todos e cada um de nós, que nascemos e respiramos, só o fazemos por causa do dom concedido por Deus, a fim de que desfrutemos da vida digna que nos foi planejada.
No entanto, em meio à pandemia, talvez a situação mais atípica e desesperadora que essa geração já conheceu — paradoxalmente, tão propícia à solidariedade —, o que temos visto é uma banalização da morte e um desprezo pela existência humana, algo que contradiz e afronta os propósitos de Deus, expressos na sua Palavra. Não se trata apenas do descaso diante de um vírus que mata — e muito —, mas também do recrudescimento da opressão e do desamparo social e econômico aos mais necessitados. Isso tudo acentua um cenário que já nos soa absolutamente distópico.
Nesses “ásperos tempos”, como chamaria Jorge Amado, de dor, luto e sofrimento do povo, ainda assistimos, não sem indignação, a outro trágico espetáculo. Vários episódios de racismo e violência vêm sendo filmados, registrados, transmitidos, expostos e escancarados. Num contexto tão duro como esse, as desigualdades e opressões se acirram. E é urgente e necessário confrontar essa realidade.
Não que ela seja nova — pelo contrário! —, mas vem à tona num tempo de abertura para a discussão e a exposição de questões antes omitidas, negligenciadas ou pouco debatidas. Diante de tudo isso, muitos se perguntam o que a Bíblia diz a respeito do racismo, sobretudo porque, historicamente, ela foi usada para justificar a escravidão e a discriminação étnico-racial. Talvez, cristãos e não cristãos se questionem: como a Bíblia, uma coletânea de livros antigos, compostos em contextos tão distintos desse atual, pode orientar a vida, os discursos, as práticas, os valores e as concepções de hoje? O que ela ensina sobre racismo, discriminação, preconceito, violência e opressão? Será que as pessoas podem encontrar na Bíblia subsídios para se posicionar diante dessas pautas sociais tão urgentes e necessárias?
É preciso que levemos em consideração algo importante: assim como outros escritos da Antiguidade, a Bíblia hebraica, ou “Antigo Testamento”, é, em muitos sentidos, etnocêntrica. Por conta disso, ela não se esmera em exaltar outros grupos humanos fora de Israel. Não nos iludamos a esse respeito. No entanto, há valores contidos no seio da sociedade na Bíblia, sobretudo a solidariedade e o amparo aos estrangeiros, oprimidos e desprovidos, que são essenciais — e inegociáveis — para o ser humano bíblico, e que, se tomados como exemplo e inspiração, uma vez que refletem a ética de Deus, não deixam dúvida quanto à atrocidade, à violência e à desumanização perpetradas por qualquer prática ou pensamento racista — em qualquer época da história da humanidade. E isso precisa ocupar o nosso pensamento a respeito desse tema.
Na mentalidade bíblica, a responsabilidade sobre os mais vulneráveis (pobres, órfãos e viúvas) e os gerím, os “estrangeiros”, era um tema extremamente importante, porque caracterizava Israel como povo de Deus. Na Bíblia, esse povo é constantemente instado a se lembrar de quando ele mesmo foi oprimido e estrangeiro — portanto, a colocar-se no lugar do outro, a sentir como o outro e a ser solidário. Esses são requisitos de Israel. Inclusive, muitas acusações divinas contra o povo na literatura profética se deram, sobretudo, pelo abandono dos vulneráveis, pela ganância, pela concentração de renda e pela negligência com os oprimidos.
Isso, minimamente, nos ensina algo sobre a Bíblia. Apesar de ter sido utilizada, ao longo da História, como instrumento de dominação e como fonte ideológica para a justificação da opressão — sobretudo no que diz respeito à escravidão —, uma leitura contextual revela a existência de princípios fundamentais de amparo social e de fomento da dignidade humana, os quais devem nos inspirar, sobretudo nesses dias de escancaramento da violência contra os negros e outras minorias étnicas. Para isso, porém, é preciso ler os textos em seu contexto — e não com fins de dominar e violentar quem quer que seja.
>> Leia a continuação do artigo em A Bíblia e as raízes míticas do racismo e A Bíblia e a luta contra o racismo hoje.
>> Leia a continuação do artigo em A Bíblia e as raízes míticas do racismo e A Bíblia e a luta contra o racismo hoje.
• Quéfren de Moura é doutoranda em Letras (Estudos Críticos da Bíblia Hebraica) na Universidade de São Paulo (USP). É mestre em Letras (Estudos da Tradução) e graduada em História e Comunicação Social pela USP. Desde 2011, colabora com a Sociedade Bíblica do Brasil nas áreas de tradução e publicações, atuando como revisora de textos e consultora de traduções em preparação. Atualmente, também apoia projetos de tradução para línguas indígenas e de sinais.
>> Confira a nova edição da revista Ultimato: Racismo – A Bíblia, a igreja e uma conversa que nasce da dor
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