Opinião
- 23 de maio de 2012
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O Pentecostes e a ganância urbana
“Todos se encheram do Espírito Santo e começaram a falar...” (Atos 2.1-11)
A pluralidade do mundo atual reflete-se nas cidades gigantescas de nossos dias. Complexidade é a palavra identificadora. Um grande problema urbano. Transporte, trabalho, saneamento, esgotos, hospitais, escolas, logradouros, lazer, etc.. Pluralidade de ideias, de estilos de vida, de culturas, de etnias e línguas. Incompreensão e intolerância marcam o comportamento urbano. A maioria apresenta um cenário desfocado, que nenhuma ditadura, subordinação, ordenação regulamentar, lei, consegue controlar. Construir uma nova ordem a partir da cidade, com políticas públicas razoáveis, igualitárias, é o sonho do administrador eleito. As responsabilidades sobre o governo, porém, estão com os habitantes, levando-se em conta as complexas relações sociais, uma rede desprotegida, desamparada, desarmada e exposta à violência em toda parte. Consagração completa da ruptura humana.
Instalam-se na periferia ou nos bairros mais pobres, as regras caóticas que dominam os centros urbanos. É impossível resistir à lógica da cidade, onde dominam critérios e racionalidades inspiradas em negócios, competição, disputa e dominação. A cidade não é o lugar onde prevalece o desejo claro de se receber o sustento e alcançar qualidade de vida coletiva. É só observar as diferenças entre os núcleos habitacionais populares, a elitização da moradia dentro da geografia urbana, e os lugares preferidos, shopping centers e “thematical parks”.
Carências, provações, também são temas que acompanham esta cultura. Nas periferias das cidades e metrópoles milhões conhecem os mesmos sofrimentos, as mesmas doenças, as mesmas desigualdades. Cooptados pela propaganda que incita à ganância, ao consumo, as classes bem-postas fecham os olhos para os desgraçados, financiadas pelo sistema bancário, na “indústria da felicidade aparente”, e seus inúmeros postos de venda. Não importa se o dinheiro é imundo, o sistema financeiro manipula-o para seus fins.
A rede de atendimento aos “famintos de felicidade” tornou-se um negócio rendoso, e os usuários, para mantê-la, exigem mais exploração dos que já são super-explorados. Os jovens são mantidos em excitação permanente. Ecstasy, Viagra e “fast-food” são sinalizações orientadoras. Alguma coisa semelhante a uma imensa jaula onde se prende e se controla a fé através da ganância, templos gigantescos propõem as possibilidades de um grande mercado, uma grande produção de fieis à mercê de personalidades midiáticas também disponíveis no melhor lugar das salas evangélicas e católicas.
Os valores da vida são fluidos e dispersivos. A luta, a competição, o esforço pela supremacia, porém, são sólidos e constantes, citando Sigmunt Baumann. Cada dia é um verdadeiro calvário, na busca de altos níveis e qualidades aceitáveis para os que habitam nossas cidades, incluindo moradias, locais “próximos de tudo”. Que tudo é esse? O problema maior, no entanto, são os valores veiculados em substituição aos tradicionais, sobre amor, solidariedade, compaixão e cuidado com o outro.
Ideias voyeuristas expõem o ser humano como mercadoria barata, afirmando isoladamente a falta de importância do mesmo. Vive-se uma cultura sitiada pelo dinheiro, segundo Jurandyr Freire. Todos ficam felizes em falar de moral, ciência, religião, política, esportes, amor, filhos, saúde, alimentação saudável, esteira rolante, eletrocardiograma, mamografia, ultrassom, próstata, colonoscopia, e mesmo assim, nas palavras de Woody Allen, chega o dia inevitável.
Um fantasma assombra quem vive na cidade calcada na confiança nas tecnologias que a “salvarão”. Repercussões do racionalismo instrumental. De um lado os gordos e bem alimentados, “joging” e academias de ginástica; os que procuram espaços públicos como formigas, gozando da escassa natureza; aqueles que absorvem doses cavalares de solidão, carentes de comunhão diante de “palm-tops” e “tablets”. Comem de tudo e em qualquer lugar, barris de pipocas, hambúrgueres de três andares. Nos aeroportos, nas ruas, no teatro e no cinema, nos templos...
Entram nas farmácias procurando calmantes, medicamentos contra a tensão cotidiana, drogas que serão consumidas em pilhas de caixas. De outro lado o imenso contingente de pobres e carentes. Os famintos, alvos do nojo da cidade, os que comem lixo e sobras, pivetes, crackeiros, viciados, moradores de rua. Na periferia e favelas um contingente monumental, nem ousamos falar de suas carências.
Paradigma perfeito da torre de Babel, “portal dos deuses”, na tradução mais próxima da verdade linguística. Ultimamente, a religião gananciosa, pentecostal “soft”, carismática, pretende ocupar o lugar da torre símbolo da cidade. A cidade pentecostal é símbolo da desordem na linguagem; da ganância, do desespero da própria humanidade, que quer uma torre para projetos egoístas e individualistas, aos privilegiados que nela poderão subir, utilizando como escada ou elevadores os ombros e as costas dos outros.
O ser humano quer a divinização de si mesmo, nas maiores alturas, galgando os céus. Há uma premência de invadir a área do divino, um projeto de controle e dominação do mundo. Ter, acumular, consumir. Enquanto a Divindade é bajulada, é também pressionada para atender desejos egoístas e gananciosos. Por isso, para reintroduzir a linguagem do reinado de Deus, que é a da solidariedade, do amor, da dignidade, do cuidado, da misericórdia, e da compaixão (Gn 11.1-9: “E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala”; At 2. 1-11: “... e numa só linguagem, ouvirmos falar das grandezas de Deus”), a cidade caótica e desordenada precisa de Pentecostes. E não do oportunismo midiático “pentecostal”. Mais que isso, precisa do Pai, do Filho e do Espírito Santo, juntos, de uma só vez, como anuncia o Evangelho.
É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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