Opinião
- 05 de outubro de 2012
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O mandato político de todos nós
A preocupação com os fracos não é questão de generosidade, mas de direitos, porque estes são o outro lado da moeda das responsabilidades. Ora, a responsabilidade faz parte da essência do ser humano, criado à imagem de Deus. E o que é minha responsabilidade é o direito do meu próximo, e vice-versa.
A imagem de Deus: um convite para governar o universo
Em que sentido o homem é a imagem de Deus? Tem a ver com aquilo que o homem é chamado a fazer, com a sua tarefa: “Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar. [...] Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a” (Gn 1.26-28).
Não é só político que tem um mandato! Todos os seres humanos têm um “mandato cultural”. Deus não criou um mundo pronto e acabado, mas providenciou todo o material necessário e deu ao homem a responsabilidade e o privilégio de desenvolver as potencialidades do universo. Deus nos oferece uma vida dinâmica, com possibilidades para explorar e projetos para realizar.
O homem, então, é um marceneiro que Deus colocou numa gigantesca oficina repleta de matéria-prima e ferramentas, e a quem ele disse: “Com esses materiais, crie coisas!”
Somos chamados a ser colaboradores de Deus na criação do mundo. Certamente, nas formas de convivência humana, ainda há muita coisa para criar!
O mandato missionário: um novo pedido de colaboração
Além do mandato cultural, extensivo a todos os homens, os cristãos recebem também um “mandato missionário”: “Deus estava em Cristo, reconciliando o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação” (2 Co 5.19).
Deus cria um ser capaz de recusar a proposta de colaboração, em função de um ilusório projeto próprio. Então Deus concebe um plano de redenção que não passa por cima da dignidade do homem (que está justamente na sua real responsabilidade moral), não diz que o nosso pecado não importa, e não oferece um perdão fácil (“Vou fazer de conta que não houve nada”). O plano é custoso, pois implica encarnação, sofrimento e cruz. Mas o incrível é que, depois de toda a iniciativa de Deus e de todo o sofrimento de Cristo, o “ministério da reconciliação” é confiado aos homens!
Para a última etapa, o homem é novamente chamado a colaborar. Que dignidade possui o homem! É convidado a colaborar na criação (mandato cultural) e na redenção (mandato missionário).
O projeto de Deus é que as pessoas sejam convidadas a participar do governo do universo. Tanto que ele efetivamente nos entrega o cuidado da natureza, o desenvolvimento tecnológico, a criação de instituições sociais e políticas, o evangelismo, o discipulado, o sustento de obras cristãs, a teologia...
O projeto de Deus: a restauração da nossa humanidade plena
Deus nos criou para sermos seres humanos plenos, capazes de olhar nos olhos um do outro, alicerçados em nossa própria identidade (que é, em boa parte, socialmente construída). O projeto de Deus é a restauração da nossa plena humanidade, o que implica condições sociais renovadas, já que não somos nem nunca seremos almas desencarnadas, mas pessoas inteiras vivendo em comunidade.
A visão bíblica original é de uma harmonia original e uma proposta de colaboração no processo de criação do mundo! A hostilidade entra depois, do lado do homem.
Os profetas: um desafio à nossa maneira de ver o mundo
Quando a Lei de Moisés estava sendo negligenciada, apareceram os profetas. Quem é o profeta? Uma pessoa que nos leva às favelas.1 Para ele, mesmo uma pequena injustiça assume proporções cósmicas, porque ele sente intensamente, e sabe que Deus também sente, que não é indiferente à situação do homem. O ouvido do profeta está sintonizado a um gemido imperceptível aos outros. Por isso, suas denúncias nos parecem tão exageradas. Ele se opõe à adoração do imponente. No mundo pagão, a grandeza, o poder e a sobrevivência de um deus dependia da grandeza, do poder e da sobrevivência de seu povo e dos seus templos (o que faz lembrar muitos cristãos de hoje, fascinados com os símbolos do poder e do sucesso). A religião, diz o profeta, pode distorcer as exigências de Deus.
Implícita nas profecias de desastre está sempre uma exortação ao arrependimento. Poucos são culpados, mas todos são responsáveis.
O profeta vê a realidade com os olhos de Deus. Sua mensagem não é de crítica objetiva — ele frisa as emoções de Deus, seu amor, desilusão, misericórdia, indignação. Não é apenas o porta-voz de Deus, mas o seu colaborador. Sua vida emocional assimila à vida emocional de Deus.
Por que a religião bíblica, cuja essência é a adoração de Deus, enfatiza tanto a justiça para os homens? Porque a justiça não é um mero valor; é a participação de Deus na vida humana.
As pessoas abusam dos pobres e fracos, sem perceber que estão humilhando Deus (Pv 14.31). A justiça divina favorece os pobres exatamente para restituir-lhes aquilo que deveriam ter segundo o propósito original de Deus para a humanidade, mas que lhes foi negado pelo egoísmo e opressão (Êx 22.22-23; Dt 10.17-19; 24.10-13; Is 10.1-2; Jr 22.3, 16). Os profetas falam por aqueles que são demasiado fracos para pleitear a própria causa, e nos exortam a fazer o mesmo.
Os profetas: um desafio à nossa maneira de votar
Como tudo isso contrasta com o nosso costumeiro egoísmo! Oxalá a comunidade evangélica brasileira tivesse milhões de pessoas inconformadas com a opressão dos outros, sempre abraçando de maneira altruísta as causas dos fracos e impotentes, ganhando notoriedade como pessoas que “se metem”, que “choram e oram em particular, e desafiam terra e inferno em público”.2
Como cristãos, somos chamados a ver a realidade brasileira, à medida do possível, na perspectiva de Deus, a pensar “o que precisa ser mudado para que o Brasil se pareça mais com o plano de Deus para toda a humanidade”. Isso exclui dois tipos de voto: o voto interesseiro, egoísta (o que é bom para mim, para minha classe, minha profissão, meu estado etc.), e o voto “irmão” (que visa apenas os interesses da comunidade evangélica). Os critérios do reino de Deus, o projeto divino para a humanidade, devem prevalecer.
Notas
1.Para a seguinte caracterização do profeta e do conceito bíblico de justiça, usamos HESCHEL, A. The Prophets: An Introduction. v. 1. Nova York: Harper and Row, 1962. p. 3-26, 195-220.
2. WHITE, J. Lideres y Siervos. Buenos Aires: Certeza, 1977. p. 77.
Nota:
Texto adaptado do capítulo 5 de Religião e Política, sim. Igreja e Estado, não.
Autor de "Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não" e "Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida", ambos pela Editora Ultimato; e "Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino" e "Quem Perde, Ganha", pela ABU Editora, Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é doutor em sociologia pela UNICAMP. É professor do programa de pós-graduação em ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos e, desde 2003, professor catedrático de sociologia no Calvin College, nos Estados Unidos. É colunista da revista Ultimato.
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