Opinião
- 01 de fevereiro de 2013
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O mal por trás das tragédias
É um escândalo da razão quando o psicólogo entrevistado informa aos telespectadores que deve aceitar a tragédia sem procurar culpados, como parte da terapia do luto individual ou social, na recente tragédia de Santa Maria. Antes, a repórter tinha denominado “fatalidade” a tragédia de fato anunciada da qual fazia cobertura. Problemas com o vocabulário? Menos ainda se aceitaria a “terapeuta do luto” que explica com técnica didática fria, sem sentimentos ou considerações sobre as causas criminosas da tragédia; sem aludir à casa de espetáculos, seus proprietários e exploradores; sem responsabilizar governantes e fiscais venais, depois da morte de quase três centenas de jovens num curral sem saída, sufocados por uma fumaça negra e asfixiante. Discorrendo com habilidade professoral sobre “as quatro etapas da terapia do luto”.
Observo um terceto perfeito, vozes harmônicas e afinadas que interpretariam o ser interior essencial da humanidade: Nietsche, Adler, Freud compõem e executam a sinfonia macabra reveladora da vida humana. O mal e o bem nos acompanham a vida toda. No entanto, ninguém pode ler essa partitura, muito menos ouvi-la, a não ser diante de tragédias e comoções sociais. As tragédias de Santa Maria, RS, e o desabamento no templo da Igreja Renascer, em São Paulo, fazem parte dessa composição que ninguém gostaria de ouvir: “gregarismo e ganância”, explorados e exploradores. Há um sentimento e uma sensação de impotência diante de alguma coisa ilimitada, sem fronteiras, que poderia originar uma revolta “oceânica”', como Freud poderia dizer, mas não suprime o mal.
O bem, o amor, a misericórdia e a compaixão, não podem ser definidos nem alcançados por explicação inteligente, no uso da razão. Nem o mal. Freud descobriu que há pulsões determinantes na vida humana que nos permitem uma melhor compreensão do funcionamento do inconsciente coletivo (Jung) e da irrupção dos impulsos no comportamento humano. Delas, a pulsão do desejo seria a raiz de tudo. As ações e os desejos humanos não são frutos da vontade. O ser humano também necessita organizar-se em sociedades, é gregário como a maioria das espécies. Até para divertir-se necessita integrar-se a grandes multidões, e estas, quando trata de defenderem-se, entregam-se ao pânico mortal, pisoteando e passando por cima de quem quer que seja no seu caminho. E o sábio fundador da psicanálise ensinaria a resignação: “Aceite o princípio da realidade (humana), modere o princípio do desejo, acolha o que lhe acontecer. Mostre grandeza na dor”.
Adler cria outra teoria, calcada na ideia acertada de Nietsche sobre o poder, que poderia lembrar-nos os motivos anteriores, dos que preparam “o cerco das multidões”: trata-se do inato impulso em direção à supremacia, ao controle e mando, à competição e superioridade, em quaisquer situações que envolvem multidões. Agrada-me o desdobramento de Adler, identificando o “poder” como pulsão primordial. Talvez uma pulsão originária, a qual explicaria a organização do “curral”, num templo ou num espaço como é um estádio.
Mas nenhum deles previu o mal-estar maior que a modernidade conheceria seria a exacerbação, o elogio da “ganância” por trás das tragédias. A ganância dos empresários religiosos, dos governantes e dos políticos. Estamos diante de um escândalo à razão, o teólogo Jürgen Moltmann destacou muito bem, reconhece Leonardo Boff: “Deus é solidário com o oprimido, o explorado, e não causador de sua dor; Deus não é conivente ou indiferente ao sofrimento”. E temos o complemento inaceitável pela razão: “Deus nunca se isentou do sofrimento, ele sempre sofreu e sofre conosco”.
A encarnação desmente a teodiceia racionalista da isenção de Deus quanto ao mal existente. Na paixão de Cristo, Deus percorreu os nossos caminhos andando em meio ao sofrimento humano, não foi poupado dos clamores e lágrimas de todo homem e de toda mulher, apreendendo a dor, vivenciando toda espécie de sofrimento, mas propondo modificá-lo. O profeta do Apocalipse afirmou que, por fim: “não haverá fome nem sede”, entre os sofrimentos humanos (Ap 21.1-4). De fato, Deus estará conosco para sempre, e “enxugará nossos olhos de toda lágrima, a morte não mais existirá, nem haverá luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isso terá passado”.
Contestando a atitude contemplativa, acomodatícia, resignada, o mal tido como irreversível, inatingível e imutável, nem precisamos retornar ao mundo medieval supersticioso e entregue ao mal sobrenatural terceirizado. A Idade Média era atravessada por agentes extramundanos envolvidos com magia e mitos da religião, como se o “mal manifesto e experimentado” induzisse compulsoriamente à busca do “bem” (Andrés Queiruga). Deus e o diabo, anjos e espíritos, maldição e mau-olhado, magia negra ou branca, orações de poder, curas espirituais, antevisão de catástrofes, como “profecias” sobre multidões “pecadoras” compõem o cenário fatalista.
É preciso observar o que aponta a teologia bíblica da Criação e da Queda: nenhuma divinização ou demonização do mundo pode ser aceita; nenhum mal é irreversível; nenhuma força humana de poder, de posse, pela ganância, é incorrigível como pulsão humana, explicando a existência da dor, do sofrimento e do mal. A fé imagina. Sonhando um mundo sem males, constrói utopias. Pela fé interpretamos o sonho de toda a humanidade expresso no gênesis bíblico: “o paraíso foi o que há de ser, um mundo sem males nem dores”.
Os profundos abismos da psiquê humana, sob a insistência da afirmação do “princípio da realidade”, oferecendo combustível à resignação, à aceitação da concepção do mal irreversível, far-nos-ão esquecer num tempo mínimo. As tragédias, segundo a substituição e reposição permanentes, alimentam a mídia e a internet. Porém, não modificam o mal existente.
Nem precisamos apostar. E perguntaremos sobre os crimes contra a humanidade que continuam a ser impetrados; a dura luta contra a corrupção e o desleixo das autoridades nos alvarás de funcionamento de templos, casas de espetáculo (certamente por trás das tragédias); contra o senso comum que discute ocasionalmente as misérias do mundo, diante de catástrofes, sem comoção. “A dor da gente não sai no jornal” (Chico Buarque).
A mídia pinça minuciosamente a história das tragédias, sem buscar os agentes causadores, desde o crime organizado, poderes públicos corrompidos e empresários, dirigentes religiosos gananciosos. Ela não leva em conta a tragédia diária da miséria, da fome, das doenças cíclicas, da pobreza extrema. Não dão ibope. O abismo das desigualdades sociais; as diferenças no repartir dos bens sociais, passam ao largo do interesse popular, do senso comum e da mídia. Freud explica?
Em tempo
Derval Dasilio lançou em dezembro o livro Jaime Wright – O Pastor dos Torturados que conta a história do pastor presbiteriano que denunciou as injustiças na época da ditadura militar no Brasil.
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Dor e consolação em conjunto (Blaise Pascal)
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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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