Opinião
- 03 de outubro de 2016
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O lugar da cultura na leitura da Bíblia
Boa parte da discussão que se faz no meio eclesiástico e teológico sobre direitos humanos, questões de gênero, homossexualidade e outras questões morais e éticas passa por pelo menos duas questões de fundo. A primeira é o quanto desejamos aceitar a Bíblia como norma e, consequentemente, como guia para as questões práticas da fé. A segunda é que mesmo aceitando a Bíblia como norma na vida do cristão e da igreja, até que ponto vamos aceitar as normativas, prescrições e ensinamentos como universais, portanto, aplicáveis a todo tempo e todo lugar indistintamente das peculiares sociais, culturais e regionais. Em outras palavras, há uma questão de fundamento e outra de interpretação.
Supondo naturalmente que no meio cristão e evangélico haja uma aceitação da Bíblia como norma de vida, as diferenças entre os diversos posicionamentos entre cristãos estão na segunda questão de fundo, a interpretação ou a maneira de entender o caráter normativo da Bíblia para questões específicas da conduta humana contemporânea.
Nessa discussão, mais do que a busca pela compreensão do contexto literário e histórico do texto bíblico está, frequentemente, a discussão sobre a cultura. Ouço com muita frequência o argumento de que muitos ensinamentos bíblicos estão condicionados ao contexto cultural do mundo bíblico, por isso, não são aplicáveis à realidade contemporânea. Geralmente se evoca essa ideia justamente para amenizar a rigidez de certos textos condenatórios na Bíblia.
Realmente, a cultura em si não é normativa. Precisamos fazer a leitura da Bíblia com essa sensibilidade cultural. Vemos isso na própria Bíblia na transição entre o Antigo Testamento e o Novo. Porém, o que nos leva a considerar a cultura do outro menos importante, seja ela bíblica ou não?
Há pelo menos duas maneiras de eu desprezar a cultura do outro. A primeira é tendo uma visão evolutiva da cultura. Toma-se a cultura e civilização modernas como mais nobre e sublime, portanto, tendo valores mais justos, igualitários e democráticos, e consideram-se povos e civilizações que não tenham esses mesmos valores, costumes e organização social como estando em estágios inferiores da evolução humana. Portanto, precisamos ajudar aquela cultura a ‘enxergar’ e a evoluir para o estágio ideal da humanidade.
De acordo com essa visão, como os povos da Bíblia são de uma época e lugar muito distantes, a sua cultura é muito primitiva e está longe do ideal da modernidade. Assim, precisamos ler a Bíblia, mas nos ‘libertar’ daquela cultura antiga e ficar apenas com aqueles valores universais. Minha crítica a essa perspectiva é que a ‘boa nova’, o evangelho da Bíblia não pode ser outra coisa a não ser os valores e ideais da sociedade moderna ocidental. A Bíblia não tem uma boa nova para hoje, pelo contrário, nós é que temos uma boa nova para a Bíblia ou, pelo menos, precisamos nos libertar da Bíblia!
A segunda maneira de desprezar a cultura do outro é pelo etnocentrismo, isto é, julgar a cultura do outro a partir da minha própria. Tomo a minha cultura como normativa e tudo que for estranha a ela é inferior ou, no mínimo, desprezível, se não até ameaçador. Não consigo aceitar a outra cultura em igual valor à minha. Isso não tem o sentido necessariamente evolutivo. Por exemplo, culturas tradicionais percebem a cultura moderna como ameaçadora e desestabilizadora.
Achamos que isso é um problema do missionário transcultural que não tem a sensibilidade cultural, contudo, é um problema hermenêutico também. Tomo a minha experiência e vivência como regra absoluta e desprezo na Bíblia aquilo que é estranho à minha realidade. Não consigo ver valor ou aspectos igualmente nobres da cultura bíblica antiga.
Prefiro uma perspectiva mais relativa da cultura no sentido de que toda cultura tem seus valores e seus males. Realmente, não se podem transportar costumes, práticas e valores de uma cultura a outra sem resignificar ou sem alijar o seu conteúdo. Isso não significa que devemos replicar a cultura bíblica para os tempos de hoje, mas também não significa que temos de libertá-la dos seus males. Precisamos ver o seu valor intrínseco e sua construção de sentido e dignidade humana, social, religiosa, moral e ética.
Mais do que isso, penso que precisamos ler a Bíblia discernindo até que ponto os costumes e valores do próprio Israel antigo e da igreja foram contra a cultura dominante do antigo oriente e até que ponto reafirmavam os valores dominantes. Israel e a igreja não existiram no vácuo. Foram realmente reflexo de sua cultura, porém, a partir de sua fé no Senhor que os tirou da terra do Egito e em Jesus Cristo que ressuscitou e é Senhor (por mais que essa fé tenha suas definições contextuais) reagiram contra a cultura dominante. Eu creio que é aí, nessa intersecção, que encontramos a boa nova da Bíblia para a nossa sociedade – como compreender e viver na cultura moderna à luz da fé no Cristo.
Se usarmos a Bíblia apenas para reafirmar nossos valores culturais e crenças religiosas, ela passa a ser apenas uma forma de legitimação de nossas práticas. Porém, se a lermos em seu caráter normativo levando em conta todas as peculiaridades próprias dela e de nossa cultura, ela servirá tanto para confrontar nossas más práticas quanto para trazer boa nova de salvação.
Leia mais
A cultura e a comunicação do evangelho
A cultura, esta nossa inimiga
A redenção da cultura
Fé Cristã e Cultura Contemporânea
Por Que Confiar na Bíblia?
Foto: Jazmin Quaynor / Unsplash.com
Supondo naturalmente que no meio cristão e evangélico haja uma aceitação da Bíblia como norma de vida, as diferenças entre os diversos posicionamentos entre cristãos estão na segunda questão de fundo, a interpretação ou a maneira de entender o caráter normativo da Bíblia para questões específicas da conduta humana contemporânea.
Nessa discussão, mais do que a busca pela compreensão do contexto literário e histórico do texto bíblico está, frequentemente, a discussão sobre a cultura. Ouço com muita frequência o argumento de que muitos ensinamentos bíblicos estão condicionados ao contexto cultural do mundo bíblico, por isso, não são aplicáveis à realidade contemporânea. Geralmente se evoca essa ideia justamente para amenizar a rigidez de certos textos condenatórios na Bíblia.
Realmente, a cultura em si não é normativa. Precisamos fazer a leitura da Bíblia com essa sensibilidade cultural. Vemos isso na própria Bíblia na transição entre o Antigo Testamento e o Novo. Porém, o que nos leva a considerar a cultura do outro menos importante, seja ela bíblica ou não?
Há pelo menos duas maneiras de eu desprezar a cultura do outro. A primeira é tendo uma visão evolutiva da cultura. Toma-se a cultura e civilização modernas como mais nobre e sublime, portanto, tendo valores mais justos, igualitários e democráticos, e consideram-se povos e civilizações que não tenham esses mesmos valores, costumes e organização social como estando em estágios inferiores da evolução humana. Portanto, precisamos ajudar aquela cultura a ‘enxergar’ e a evoluir para o estágio ideal da humanidade.
De acordo com essa visão, como os povos da Bíblia são de uma época e lugar muito distantes, a sua cultura é muito primitiva e está longe do ideal da modernidade. Assim, precisamos ler a Bíblia, mas nos ‘libertar’ daquela cultura antiga e ficar apenas com aqueles valores universais. Minha crítica a essa perspectiva é que a ‘boa nova’, o evangelho da Bíblia não pode ser outra coisa a não ser os valores e ideais da sociedade moderna ocidental. A Bíblia não tem uma boa nova para hoje, pelo contrário, nós é que temos uma boa nova para a Bíblia ou, pelo menos, precisamos nos libertar da Bíblia!
A segunda maneira de desprezar a cultura do outro é pelo etnocentrismo, isto é, julgar a cultura do outro a partir da minha própria. Tomo a minha cultura como normativa e tudo que for estranha a ela é inferior ou, no mínimo, desprezível, se não até ameaçador. Não consigo aceitar a outra cultura em igual valor à minha. Isso não tem o sentido necessariamente evolutivo. Por exemplo, culturas tradicionais percebem a cultura moderna como ameaçadora e desestabilizadora.
Achamos que isso é um problema do missionário transcultural que não tem a sensibilidade cultural, contudo, é um problema hermenêutico também. Tomo a minha experiência e vivência como regra absoluta e desprezo na Bíblia aquilo que é estranho à minha realidade. Não consigo ver valor ou aspectos igualmente nobres da cultura bíblica antiga.
Prefiro uma perspectiva mais relativa da cultura no sentido de que toda cultura tem seus valores e seus males. Realmente, não se podem transportar costumes, práticas e valores de uma cultura a outra sem resignificar ou sem alijar o seu conteúdo. Isso não significa que devemos replicar a cultura bíblica para os tempos de hoje, mas também não significa que temos de libertá-la dos seus males. Precisamos ver o seu valor intrínseco e sua construção de sentido e dignidade humana, social, religiosa, moral e ética.
Mais do que isso, penso que precisamos ler a Bíblia discernindo até que ponto os costumes e valores do próprio Israel antigo e da igreja foram contra a cultura dominante do antigo oriente e até que ponto reafirmavam os valores dominantes. Israel e a igreja não existiram no vácuo. Foram realmente reflexo de sua cultura, porém, a partir de sua fé no Senhor que os tirou da terra do Egito e em Jesus Cristo que ressuscitou e é Senhor (por mais que essa fé tenha suas definições contextuais) reagiram contra a cultura dominante. Eu creio que é aí, nessa intersecção, que encontramos a boa nova da Bíblia para a nossa sociedade – como compreender e viver na cultura moderna à luz da fé no Cristo.
Se usarmos a Bíblia apenas para reafirmar nossos valores culturais e crenças religiosas, ela passa a ser apenas uma forma de legitimação de nossas práticas. Porém, se a lermos em seu caráter normativo levando em conta todas as peculiaridades próprias dela e de nossa cultura, ela servirá tanto para confrontar nossas más práticas quanto para trazer boa nova de salvação.
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Fé Cristã e Cultura Contemporânea
Por Que Confiar na Bíblia?
Foto: Jazmin Quaynor / Unsplash.com
Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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