Opinião
- 04 de janeiro de 2016
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O Evangelho como superação da religião
O evangelho é a superação da religião. O cristianismo é uma religião. O evangelho é, portanto, a superação do cristianismo. O silogismo proposto carece de esclarecimentos. Não pode ser compreendido sem uma adequada noção dos conceitos de evangelho e religião.
O sociólogo venezuelano Otto Maduro, em seu livro “Religião” e “Luta de Classes”, define religião como “conjunto de discursos e práticas, referente a seres anteriores ou superiores ao ambiente natural e social, em relação aos quais os fiéis desenvolvem uma relação de dependência e obrigação”.
A definição de Otto Maduro permite identificar dois importantes aspectos do fenômeno religioso: seus fundamentos e sua lógica. Quanto aos fundamentos, a expressão “conjunto de discursos e práticas” aponta para as bases da religião: discursos, ou dogmas – corpo doutrinário; rito, ou práticas litúrgicas; e tabu, ou códigos morais. Considerados esses fundamentos, o evangelho não pode ser classificado como religião.
Embora tenha suas doutrinas e afirmações dogmáticas, a essência do evangelho é o relacionamento com uma pessoa – Jesus Cristo –, e não com um “conjunto de crenças” racional e cartesianamente organizado: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Em relação aos ritos e práticas litúrgicas, sabemos que o evangelho extrapola absolutamente o cerimonialismo religioso e torna obsoleto o debate a respeito de onde e como adorar a Deus, pois “Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.24). A adoração legítima e autêntica é a consagração da vida como “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1), em detrimento do que se faz nos templos, até porque “Deus não habita em templos feitos por mãos humanas” (At 7.48), tendo como morada (Ef 2.20-22) uma casa espiritual construída com pedras vivas (1Pe 2.5).
Finalmente, o evangelho, cujo novo mandamento é amar com o amor do Cristo (Jo 13.34), jamais poderá se classificar como tabu, ou régua reguladora de comportamento moral, pois “no amor não há Lei” (Gl 5.22-23), o que estabelece a proposta cristã como uma nova consciência, baseada na mente (1Co 2.16) e na atitude do Cristo (Fp 2.5-11), que extrapolam qualquer enquadramento moral ou legal.
Considerando as categorias das ciências da religião que encaixam o fenômeno religioso na moldura dos dogmas, ritos e tabus, é surpreendente que o evangelho seja considerado religião. O evangelho é a superação da religião. Não é adesão a dogmas, mas relação mística com o Deus revelado em Jesus de Nazaré; não é celebrado em ritos, mas na dinâmica do Espírito que faz da vida toda uma festa para a glória de Deus; não se restringe à observação de regras comportamentais, mas se estabelece a partir de uma profunda transformação do ser humano, que é arrancado de si mesmo na direção de seu próximo em amor.
A definição de Otto Maduro permite também perceber a lógica inerente ao fenômeno religioso: a “relação de obrigações e benefícios” com os “seres superiores”. A religião se sustenta na lógica da justiça retributiva: o fiel cumpre suas obrigações e recebe a bênção; falha no cumprimento do que lhe compete no contrato com a divindade e em troca recebe o castigo e a maldição. A impossibilidade humana de atingir quaisquer que sejam os padrões definidos pelos deuses, ou mesmo Deus, faz surgir necessariamente o sistema sacrificial. Por definição, o divino está na categoria da perfeição, enquanto o humano, da finitude e da imperfectibilidade moral. Para escapar dos castigos e maldições, a religião oferece os sacrifícios compensatórios, necessários para afastar a ira dos deuses e conquistar seus favores.
O evangelho é a superação das relações de mérito (justiça retributiva) e dos sistemas sacrificiais. Jesus é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), e inaugura uma nova dimensão de relação entre Deus e os homens, não mais baseada no mérito, mas na graça, a elegante opção autodeterminada de Deus de abençoar “bons e maus, justos e injustos”, pois “Deus é amor” (1Jo 4.8). Aquele que se apropria do evangelho sabe que “Aquele que não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós”, também “nos dará juntamente com ele, pela graça, todas as coisas” (Rm 8.32), e desfruta a liberdade e a paz com Deus e a paz de Deus (Rm 5.1; 8.1), pois “o amor lança fora todo o medo” (1Jo 4.18).
À sombra da cruz do Calvário, onde o escandaloso amor de Deus é revelado (Jo 3.16; 1Co 1.23), é surpreendente que o evangelho seja encaixotado nas categorias da religião, que tem como fundamento as “relações de obrigações e benefícios”, e sobrevive de enclausurar corações e consciências nos limites estreitos do medo e da culpa.
É urgente a melhor compreensão dos termos que estabelecem a distinção entre o evangelho de Jesus Cristo e o cristianismo compreendido nos termos das ciências da religião. O cristianismo, como sistema religioso organizado e institucionalizado, é culpado do pecado de quebra do terceiro mandamento. O cristianismo, em qualquer período da história e contexto sociocultural, se assemelha muito mais a todos os demais fenômenos religiosos que ao evangelho que pretendeu superar. É uma pena que os cristãos estejam, ainda hoje, exageradamente apegados às discussões e aos debates dogmáticos, aprisionados a cerimoniais ritualísticos templocêntricos e clericais, quixotesca e desnecessariamente ocupados na tentativa de subjugar e controlar moralmente o comportamento social, e tristemente, escravizados pelos sistemas sacrificiais e meritórios, que não fazem mais do que multiplicar as fileiras dos “decepcionados com Deus”.
Chegou o tempo quando homens e mulheres que serão tomados por loucos devem, em plena manhã, acender uma lanterna, correr aos templos cristãos e gritar incessantemente: “Onde estão aqueles que não se envergonham do evangelho?”.
Imagem: freeimages.com
• Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, “O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia”.
O sociólogo venezuelano Otto Maduro, em seu livro “Religião” e “Luta de Classes”, define religião como “conjunto de discursos e práticas, referente a seres anteriores ou superiores ao ambiente natural e social, em relação aos quais os fiéis desenvolvem uma relação de dependência e obrigação”.
A definição de Otto Maduro permite identificar dois importantes aspectos do fenômeno religioso: seus fundamentos e sua lógica. Quanto aos fundamentos, a expressão “conjunto de discursos e práticas” aponta para as bases da religião: discursos, ou dogmas – corpo doutrinário; rito, ou práticas litúrgicas; e tabu, ou códigos morais. Considerados esses fundamentos, o evangelho não pode ser classificado como religião.
Embora tenha suas doutrinas e afirmações dogmáticas, a essência do evangelho é o relacionamento com uma pessoa – Jesus Cristo –, e não com um “conjunto de crenças” racional e cartesianamente organizado: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Em relação aos ritos e práticas litúrgicas, sabemos que o evangelho extrapola absolutamente o cerimonialismo religioso e torna obsoleto o debate a respeito de onde e como adorar a Deus, pois “Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo 4.24). A adoração legítima e autêntica é a consagração da vida como “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1), em detrimento do que se faz nos templos, até porque “Deus não habita em templos feitos por mãos humanas” (At 7.48), tendo como morada (Ef 2.20-22) uma casa espiritual construída com pedras vivas (1Pe 2.5).
Finalmente, o evangelho, cujo novo mandamento é amar com o amor do Cristo (Jo 13.34), jamais poderá se classificar como tabu, ou régua reguladora de comportamento moral, pois “no amor não há Lei” (Gl 5.22-23), o que estabelece a proposta cristã como uma nova consciência, baseada na mente (1Co 2.16) e na atitude do Cristo (Fp 2.5-11), que extrapolam qualquer enquadramento moral ou legal.
Considerando as categorias das ciências da religião que encaixam o fenômeno religioso na moldura dos dogmas, ritos e tabus, é surpreendente que o evangelho seja considerado religião. O evangelho é a superação da religião. Não é adesão a dogmas, mas relação mística com o Deus revelado em Jesus de Nazaré; não é celebrado em ritos, mas na dinâmica do Espírito que faz da vida toda uma festa para a glória de Deus; não se restringe à observação de regras comportamentais, mas se estabelece a partir de uma profunda transformação do ser humano, que é arrancado de si mesmo na direção de seu próximo em amor.
A definição de Otto Maduro permite também perceber a lógica inerente ao fenômeno religioso: a “relação de obrigações e benefícios” com os “seres superiores”. A religião se sustenta na lógica da justiça retributiva: o fiel cumpre suas obrigações e recebe a bênção; falha no cumprimento do que lhe compete no contrato com a divindade e em troca recebe o castigo e a maldição. A impossibilidade humana de atingir quaisquer que sejam os padrões definidos pelos deuses, ou mesmo Deus, faz surgir necessariamente o sistema sacrificial. Por definição, o divino está na categoria da perfeição, enquanto o humano, da finitude e da imperfectibilidade moral. Para escapar dos castigos e maldições, a religião oferece os sacrifícios compensatórios, necessários para afastar a ira dos deuses e conquistar seus favores.
O evangelho é a superação das relações de mérito (justiça retributiva) e dos sistemas sacrificiais. Jesus é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), e inaugura uma nova dimensão de relação entre Deus e os homens, não mais baseada no mérito, mas na graça, a elegante opção autodeterminada de Deus de abençoar “bons e maus, justos e injustos”, pois “Deus é amor” (1Jo 4.8). Aquele que se apropria do evangelho sabe que “Aquele que não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós”, também “nos dará juntamente com ele, pela graça, todas as coisas” (Rm 8.32), e desfruta a liberdade e a paz com Deus e a paz de Deus (Rm 5.1; 8.1), pois “o amor lança fora todo o medo” (1Jo 4.18).
À sombra da cruz do Calvário, onde o escandaloso amor de Deus é revelado (Jo 3.16; 1Co 1.23), é surpreendente que o evangelho seja encaixotado nas categorias da religião, que tem como fundamento as “relações de obrigações e benefícios”, e sobrevive de enclausurar corações e consciências nos limites estreitos do medo e da culpa.
É urgente a melhor compreensão dos termos que estabelecem a distinção entre o evangelho de Jesus Cristo e o cristianismo compreendido nos termos das ciências da religião. O cristianismo, como sistema religioso organizado e institucionalizado, é culpado do pecado de quebra do terceiro mandamento. O cristianismo, em qualquer período da história e contexto sociocultural, se assemelha muito mais a todos os demais fenômenos religiosos que ao evangelho que pretendeu superar. É uma pena que os cristãos estejam, ainda hoje, exageradamente apegados às discussões e aos debates dogmáticos, aprisionados a cerimoniais ritualísticos templocêntricos e clericais, quixotesca e desnecessariamente ocupados na tentativa de subjugar e controlar moralmente o comportamento social, e tristemente, escravizados pelos sistemas sacrificiais e meritórios, que não fazem mais do que multiplicar as fileiras dos “decepcionados com Deus”.
Chegou o tempo quando homens e mulheres que serão tomados por loucos devem, em plena manhã, acender uma lanterna, correr aos templos cristãos e gritar incessantemente: “Onde estão aqueles que não se envergonham do evangelho?”.
Imagem: freeimages.com
• Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, “O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia”.
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Ricardo Barbosa