Opinião
- 19 de novembro de 2020
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O Deus da justiça e a justiça de Deus na caminhada do primeiro diretor nacional da Visão Mundial no Brasil
Entrevista com Manfred Grellert
Ao celebrarmos os 70 anos de existência da World Vision International (WVI) e os 45 anos da Visão Mundial Brasil (VM), lembramos com gratidão da vida de Manfred Grellert, sua esposa, Lianne, e seus quatro filhos. Manfred foi, até hoje, o brasileiro que teve a mais longa influência na jornada da WVI, onde desempenhou as funções de diretor da VM Brasil, vice-presidente da WV na América Latina e diretor em formação espiritual, em âmbito global.
No decorrer de sua longa e intensa dedicação à VM/WVI, de 1980 a 2009, ele sempre destacou o compromisso com um evangelho integral, com as crianças a partir de suas famílias e comunidades e a intensa labuta pela transformação sociopolítica e econômica das comunidades mais pobres onde a VM estava envolvida. Deixemos que ele mesmo fale do que ele viveu.
Manfred, como você se apresentaria a alguém que não o conhece? Conte um pouco da sua história.
Nasci em 1941, num lugarzinho chamado Lajeado Candeia, onde não havia luz elétrica nem água encanada, no interior do Rio Grande do Sul. Meu pai era pastor numa igreja composta, em sua maioria, por filhos de migrantes alemães. Em nosso lar havia uma profunda devoção a Jesus Cristo e à Palavra de Deus. Ter estudado em bons colégios evangélicos luteranos e ter sido formado por igrejas que buscavam prover boa formação com diversão sadia para os jovens foi propício para eu discernir a minha vocação ministerial. Depois de estudar teologia no Seminário Batista do Sul, de 1961 a 1964, e casar-me com a também gaúcha Lianne Brenner, em 1965 nós seguimos para um programa de estudos doutorais em Louisville, KY, nos Estados Unidos.
Quando voltamos ao Brasil, em 1970, fui ensinar teologia no Seminário Batista do Norte. Poucos meses depois, aceitei o convite para pastorear a Primeira Igreja Batista da Capunga. Trabalhei intensamente, me envolvi na vida denominacional e conheci a realidade do Nordeste, este Brasil que eu desconhecia e onde fomos recebidos de braços abertos. Depois de dez anos, já com uma família de seis pessoas, saímos de lá para assumir a direção da VM Brasil em Belo Horizonte.
Nos Estados Unidos, em 1965, eu havia me deparado com um país em profunda convulsão social, uma intensa luta dos negros pelos seus direitos civis; e isto exigia novas reflexões teológicas e éticas com as quais eu tinha de me ocupar. Ao voltar para o Brasil, encontrei um ambiente de fermentação teológica e me vi em meio a vários acontecimentos que foram me moldando e que eu procurava integrar no meu ensino teológico, em que o pobre e a justiça eram eixos fundamentais.
>>> As marcas de Lausanne 74 <<<
Em minha caminhada evangélica, fui convidado a participar do notório Congresso Internacional de Evangelização Mundial, em Lausanne, Suíça, 1974, onde percebi o empenho por uma evangelização baseada na integridade e integralidade do evangelho. Um ponto alto deste evento foi, para mim, a noite em que o argentino Juan Ortiz e Stanley Mooneyham, então presidente da WVI, falaram acerca do poder transformador do evangelho em meio às comunidades pobres; ali eu disse a mim mesmo que, um dia, gostaria de fazer parte de algo dessa natureza. Este meu encontro com esta visão integral e íntegra do evangelho veio a se aprofundar e intensificar quando, em 1979, participei do Segundo Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE), em Lima, Peru, onde encontrei uma pujante Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) militando por uma prática de missão transformadora na sofrida América Latina.
Algumas coisas começaram a clarear dentro de mim, em meio a estas diferentes andanças: o seguimento a Jesus Cristo demandava uma vida indelevelmente marcada pela vida do próprio Jesus. Ademais, o testemunho, o serviço e a luta pela justiça envolviam a cabeça, o coração e as mãos, levando a missão a buscar por uma espiritualidade marcada pelo caráter de Deus e por um serviço concreto ao próximo, especialmente o pobre.
A VM entrou na sua vida em 1980. Por que você aceitou o desafio de ser o primeiro diretor nacional da VM no Brasil?
Os anos em que exerci a direção nacional na VM, aqui no Brasil, foram igualmente intensos. Numa decisão estratégica, passamos a priorizar a nossa atuação no Nordeste, onde ficava o Brasil mais pobre e onde éramos ausentes. Em termos da nossa linha de atuação, caminhamos de uma proposta assistencialista para projetos comunitários com o empoderamento de líderes locais, e para a luta contra a injustiça e a busca dos direitos das comunidades mais pobres.
O nosso envolvimento com o mundo evangélico brasileiro e suas lideranças pastorais foi igualmente intenso. Ao mesmo tempo em que se intensificava este relacionamento com o mundo evangélico, mantínhamos contato com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e procurávamos estabelecer uma presença no espaço governamental do país.
O tempo foi, de fato, curto, pois já em 1985 a WV me levou a uma posição de vice-presidência com a responsabilidade de coordenar o trabalho na América Latina. As linhas de ação que haviam sido pioneiras no Brasil foram levadas para a América Latina, com ênfase no desenvolvimento comunitário e na busca de justiça para as comunidades pobres, mas agora acrescidos de um programa de microcrédito visando a autonomia financeira e econômica dessas comunidades.
Você exerceu várias funções na WV e teve grande influência na Organização. Você marcou a WV e esta marcou você. Como foi isso?
A WV tinha na época um grupo executivo que integrava os líderes maiores da Organização. Neste fórum eu participei do desenvolvimento das políticas e das estratégias globais, que eram, então, encaminhadas ao Conselho Internacional. Ali se avaliavam as experiências do trabalho de campo e se projetava o caminho a seguir. Sendo o responsável por gerenciar quatorze escritórios nacionais, presentes na maioria dos países latino-americanos, eu conheci as favelas mais pobres e miseráveis e chorei sobre a miséria da esquecida Cite Soleil, no Haiti.
O que me sustentava era a consciência de que para Jesus Cristo e para os pobres valia a pena doar o nosso melhor e suportar o pior. Era necessário fazer o melhor dentro das existentes estruturas iníquas, como expressão do seguimento a Jesus Cristo.
Na época a WV privilegiava os projetos rurais, nos quais se buscava aumentar a produção agrícola de pequenos agricultores a fim de lhes proporcionar algum rendimento econômico e condições para melhor cuidarem de seus filhos. Onde a mortalidade infantil era mais acentuada, buscar a sobrevivência das crianças de 1 a 5 anos era prioridade. O alvo seguinte era conseguir a maior permanência possível das crianças na escola, pois cada ano ganho lhes proporcionaria melhor qualidade de vida futura. O que mais me marcou nessa experiência foi a criatividade e a resiliência das pessoas nessas comunidades. Compartilham o pouco que têm, com uma enorme sabedoria em viver com escassos recursos. São sobreviventes.
>>> Biografia de Manfred Grellert <<<
Esta não foi, certamente, uma caminhada a sós. Os escritos de John Stott me alimentavam. Os encontros com militantes e pensadores comunitários, como Francis O’Gorman, me inspiravam e desafiavam. E a valiosa contribuição da FTL, com a articulação da proposta da missão integral, estabelecia um rumo no qual eu caminhava. Às vezes a articulação teológica andava mais rápido do que a prática, mas experiências concretas de missão integral foram surgindo como testemunho encarnado de seguimento a Jesus.
Nas muitas andanças, seja pelo Brasil, América Latina, Caribe ou algum outro lugar do mundo, fiz muitas amizades. Algumas delas persistem até hoje e são elas que enriquecem a nossa vida. Todos precisamos de afirmação e de ternura, mas também de uma crítica amiga e verdadeira.
A justiça é o tema central deste livro, lançado por ocasião dos 45 anos da VM no Brasil e 70 anos da World Vision International. A busca por justiça tem estado presente na vida da Organização? Como isso tem se expressado em sua vida?
A temática da justiça está presente na WVI desde um dos seus documentos fundantes, intitulado Declaração de Internacionalização, produzido e acordado em 1978. Neste verdadeiro pacto, firmado pelos fundadores da Organização, afirma-se o desejo de superar qualquer paternalismo, "demonstrando um senso de justiça que jamais pode ser substituído pela mera caridade." Aos poucos foi-se introduzindo na Organização a consciência de que a falta de justiça é a causa primordial da pobreza.
Foi em 1992, no entanto, que a afirmação da justiça se tornou central ao entrar na sua Declaração de Missão, tornando-se um de seus objetivos ministeriais. Esta declaração diz: “Nossa missão é seguir nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo no trabalho com os pobres e oprimidos, para promover a transformação humana, buscar a justiça e ser um testemunho das boas novas do Reino de Deus”. Desde então a WV se define como uma organização que promove três linhas de ação: o desenvolvimento comunitário, a resposta a situações de emergência e a promoção da justiça (advocacy). No último documento chave elaborado pela WVI, Nossa Visão, o tema da justiça está de volta ao assumir o compromisso de ser "Uma corajosa promotora de justiça e de paz".
É sempre mais fácil colocar temas como o da justiça numa Declaração do que intencionar a sua operacionalização. Não é diferente com a WV, onde o tema da advocacy nunca deixou de ser uma espécie de “primo pobre”, não assumindo um papel preponderante no seu tecido operacional. Mas houve esforços neste sentido, entre os quais se destaca a participação da WV na elaboração dos Objetivos do Milênio e seu sucedâneo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Também se destacam as inúmeras iniciativas que visaram a elaboração e implementação de políticas públicas que viessem a proteger e alavancar a infância, nas quais a VM teve, em diferentes países, uma ativa participação.
E, por último, quero me referir ao programa criado para fornecer pequenos empréstimos – o microcrédito – para pessoas sem acesso ao crédito bancário, ainda que a juro de mercado. Este também é um gesto que, em muitos casos, promove justiça.
Muitos anos se passaram e hoje, aposentado, vivo em Los Angeles, Estados Unidos. Acabei ficando neste país, onde os meus filhos se instalaram, com exceção de Anna Cristine, que hoje vive no Equador e exerce a função de assessora sênior para a Infância na VM da América Latina. Ao olhar para minha vida, em retrospectiva e avaliando as diversas opções estratégicas e linhas de ação, me conforta saber que a promoção de desenvolvimento comunitário, a que me dediquei, é também uma luta pela justiça.
Hoje você olha para a VM/WV a partir de uma profunda mirada no retrovisor. Aponte para fatores que o encorajam e fatores que o preocupam quanto ao futuro desta Organização.
Ainda creio, até inocentemente, que a VM surgiu no coração de Deus. Nunca foi perfeita, é claro, mas se estruturou como um movimento global que é genuinamente multiétnico, multirracial e transdenominacional, tornando-se um sinal da humanidade reconciliada (Ap 7.9). Uma organização que testemunha, no seguimento a Jesus, acerca do serviço ao outro e da promoção de justiça. Milhões de crianças e suas famílias, em mais de cem países, tiveram acesso a melhores condições de vida, tiveram a possibilidade de reorganizar a sua vida depois de uma tragédia ou emergência e, assim esperamos, conheceram algo da vida abundante da qual fala o evangelho.
Aponto ainda para o fato de que a WV foi além de uma visão paroquial da qual algumas organizações nunca conseguiram sair. À medida que se espalhava pelo mundo, a Organização foi integrando em seu corpo lideranças locais e os tons foram ficando coloridos em seus encontros internacionais. O mundo organizacional se ampliava e havia que buscar unidade na diversidade, o que se tornou viável pela inspiração do próprio evangelho e pela vocação de servir ao pobre e ao oprimido. A Organização buscou por equidade representativa e o fez visível no seu próprio Conselho Internacional. Este foi, para mim, um sinal do reino de Deus.
A própria Organização se tornou, a meu ver, um fator de risco. Quando entrei, em 1980, ela tinha um orçamento anual de 100 milhões de dólares e quando saí, em 2010, o orçamento anual era de 2,6 bilhões. Ela experimentou um crescimento gigantesco e neste processo, de ser uma para-eclesiástica, passou a ser uma ONG cristã; esta passagem para megaorganização teve o seu preço. Isto se expressou, de forma acentuada, na escolha de lideranças chaves, quando já não bastava identificar-se como seguidor de Jesus Cristo, mas se carecia de gestores com perfil gerencial e tecnocrático, trazendo para dentro da Organização um tom corporativo. Não creio que a Organização tenha conseguido trabalhar muito bem o desafio da espiritualidade corporativa. Percebo o crescimento de sementes de secularização e temo que estas vão germinar, como tem acontecido com muitas outras organizações.
No que se refere à justiça, reconheço que é complicado para uma megaorganização como a WV ser eficaz, ao mesmo tempo, tanto na ação social como na promoção da justiça. Esta exige, muitas vezes, a proposição de opções concretas pela justiça e a denúncia de injustiças, o que acaba causando mal-estar tanto entre os seus doadores e financiadores como entre os líderes locais que defendem o status quo. Às vezes me ocorre que deveríamos criar, em separado da WV, uma espécie de Fundação Amós que pudesse especializar-se no diagnóstico da injustiça e unir cristãos preocupados e engajados na busca e promoção da justiça. Uma espécie de Fundação Evangélica pela Justiça seria de enorme importância para um país como o Brasil.
O Deus da Justiça e a Justiça de Deus reúne uma seleção preciosa de textos, com abordagem bíblica e experiências concretas de homens e mulheres de diferentes nacionalidades e um ministério comum: a busca pela justiça. E, diga-se, a justiça não é um tema abstrato.
A publicação de O Deus da Justiça e a Justiça de Deus celebra 45 anos da Visão Mundial Brasil.
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