Prateleira
- 15 de janeiro de 2015
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O cristão não está ‘vacinado’ contra as compulsões. A tecnologia é uma delas
É como procurar uma agulha no palheiro. Há tantos conceitos mais ou menos parecidos com a compulsão que é muito difícil perceber o problema. A edição 352 da revista Ultimato, a primeira de 2015, buscou ajuda de dois conhecidos profissionais na área de saúde mental, ambos fundadores do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) que, além de competentes, são cristãos sérios: o psiquiatra e doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP), Uriel Heckert; e, Zenon Lotufo Júnior, professor no curso de pós-graduação em terapia cognitivo-comportamental do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Ultimato também ouviu a psicóloga clínica Elsy Carvalho, além de publicar outros artigos sobre o tema de capa. O assinante, claro, lê primeiro.
Para saber mais, acesse a edição atual.
Prateleira coloca à disposição de todos os leitores um dos artigos da matéria de capa, por Ricardo Wesley Morais Borges.
SILENCIAR A COMPULSÃO PELA TECNOLOGIA
Por alguma razão o metrô havia parado. Suava a bela jovem ao meu lado. Não era o calor; o ar-condicionado ainda seguia em seu afã de soprar. Ansiosa, agarrada a um... espelho? Não, um celular. Grande – friso a desproporção porque não gosto de xeretar a vida dos outros. Ela via a si mesma, numa selfie. Foi aos comentários. Também buscou as “curtidas” da foto. Olhar fixo. “Ei, o trem voltou a andar, não perca a sua estação, OK?” Não parecia que me ouviria. Como outros que vi ao longo daquele dia, na padaria, no restaurante, caminhando pela rua (escapei por pouco daquela topada), cada um publicando algo para que o mundo veja, curta e comente.
Lembro-me de Júlio. O Cortázar e seu conto sobre “o fim do mundo do fim”. Isso acontece toda vez que fico abrumado pela quantidade de informação nas redes sociais, pelo acúmulo de notícias banais, pelas fotos e vídeos sobre tudo, mas principalmente por alguém que se expõe ao mundo. Parece a tal compulsão por buscar algo, um reconhecimento, um prazer, uma curtida, que lhe prestem atenção.
Volto a Júlio. Descreveu o dia em que todos os leitores resolveram ser escribas. Surgiram tantos livros que não mais havia espaço no mundo. Pilhas de livros por todos os lados. Ninguém mais os lia, é verdade, mas todos escreviam. A situação se agravava. Veio o caos – livros foram lançados ao mar. Os escribas se aproximaram de sua extinção. Cortázar narrou esse apocalipse muito antes da internet. Previu o tempo em que todos têm (ou querem ter) algo que dizer, publicar, sobre tudo e sobre nada.
Não soltar a tela, manter-se em comunicação constante em tempo real, sim, pode se transformar em um tipo de idolatria. Pior, em adoração de si mesmo. Também em desejo por algo que nunca leva à satisfação. Exatamente como as cisternas rachadas que cavamos para nós mesmos e que não mais retêm água (Jr 2.13).
Ninguém deve ser ludita que desmereça o potencial para o bem das redes sociais ou de outras tecnologias. Há que entender bem e enfrentar os desafios de cada época e contexto. Uma vez ouvi que o problema dessas modas ou recursos é que eles criam oportunidades que antes não existiam. Assim, se não estou preparado para a “novidade”, então crescem as possibilidades de que minha natureza humana insegura e frágil se agarre de maneira indevida a qualquer nova oportunidade e dela faça mau uso.
Ela, a tal tecnologia, em verdade não é o problema. A responsabilidade é minha – pelo menos sempre deveria ser. Seguramente, também é preciso ser sensível àqueles que sofrem algum tipo de compulsão ligada a esses avanços sedutores e possibilidades infinitas (ou opressoras?) dos gadgets cada vez mais modernos – e caros. Pessoas que precisam de apoio psicoterápico e até mesmo de medicamentos devem ser sempre acolhidas e encorajadas com paciência e sensibilidade.
Também é verdade que muitas outras situações talvez demandem “somente” o desafio de crescer como pessoa madura, em paz consigo mesma e com os demais. Aprender a, como dizia Hans Burki, reduzir, renunciar e simplificar. A redescobrir a beleza e a simplicidade das relações pessoais de carne e osso, dos silêncios cúmplices ao lado de quem a gente ama, sem precisar de qualquer outra tela ou conexão além da sutil e gostosa presença do outro. Desfrutar a paz de se sentir amada por Deus sem precisar fazer algo por isso (Mt 3.17). Esquecer-se ou livrar-se da ilusão de que “Apple” Assíria ou “Android” Egito nos salvarão (Os 14.3; Is 31.1).
Nem precisamos deles. A salvação e o nosso melhor sentido de identidade sempre vêm de Deus. Quer usar melhor o seu celular? Poderia até usá-lo para ler e meditar em algo em sua próxima viagem de ônibus ou metrô. Mas também aprenda a desligá-lo, a silenciá-lo, e a prestar atenção na beleza das vidas que estão ao seu redor. Essa sempre será a melhor conexão.
• Ricardo Wesley Morais Borges é casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo, e serve na equipe regional para a América Latina da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE-IFES).
Ultimato também ouviu a psicóloga clínica Elsy Carvalho, além de publicar outros artigos sobre o tema de capa. O assinante, claro, lê primeiro.
Para saber mais, acesse a edição atual.
Prateleira coloca à disposição de todos os leitores um dos artigos da matéria de capa, por Ricardo Wesley Morais Borges.
SILENCIAR A COMPULSÃO PELA TECNOLOGIA
Por alguma razão o metrô havia parado. Suava a bela jovem ao meu lado. Não era o calor; o ar-condicionado ainda seguia em seu afã de soprar. Ansiosa, agarrada a um... espelho? Não, um celular. Grande – friso a desproporção porque não gosto de xeretar a vida dos outros. Ela via a si mesma, numa selfie. Foi aos comentários. Também buscou as “curtidas” da foto. Olhar fixo. “Ei, o trem voltou a andar, não perca a sua estação, OK?” Não parecia que me ouviria. Como outros que vi ao longo daquele dia, na padaria, no restaurante, caminhando pela rua (escapei por pouco daquela topada), cada um publicando algo para que o mundo veja, curta e comente.
Lembro-me de Júlio. O Cortázar e seu conto sobre “o fim do mundo do fim”. Isso acontece toda vez que fico abrumado pela quantidade de informação nas redes sociais, pelo acúmulo de notícias banais, pelas fotos e vídeos sobre tudo, mas principalmente por alguém que se expõe ao mundo. Parece a tal compulsão por buscar algo, um reconhecimento, um prazer, uma curtida, que lhe prestem atenção.
Volto a Júlio. Descreveu o dia em que todos os leitores resolveram ser escribas. Surgiram tantos livros que não mais havia espaço no mundo. Pilhas de livros por todos os lados. Ninguém mais os lia, é verdade, mas todos escreviam. A situação se agravava. Veio o caos – livros foram lançados ao mar. Os escribas se aproximaram de sua extinção. Cortázar narrou esse apocalipse muito antes da internet. Previu o tempo em que todos têm (ou querem ter) algo que dizer, publicar, sobre tudo e sobre nada.
Não soltar a tela, manter-se em comunicação constante em tempo real, sim, pode se transformar em um tipo de idolatria. Pior, em adoração de si mesmo. Também em desejo por algo que nunca leva à satisfação. Exatamente como as cisternas rachadas que cavamos para nós mesmos e que não mais retêm água (Jr 2.13).
Ninguém deve ser ludita que desmereça o potencial para o bem das redes sociais ou de outras tecnologias. Há que entender bem e enfrentar os desafios de cada época e contexto. Uma vez ouvi que o problema dessas modas ou recursos é que eles criam oportunidades que antes não existiam. Assim, se não estou preparado para a “novidade”, então crescem as possibilidades de que minha natureza humana insegura e frágil se agarre de maneira indevida a qualquer nova oportunidade e dela faça mau uso.
Ela, a tal tecnologia, em verdade não é o problema. A responsabilidade é minha – pelo menos sempre deveria ser. Seguramente, também é preciso ser sensível àqueles que sofrem algum tipo de compulsão ligada a esses avanços sedutores e possibilidades infinitas (ou opressoras?) dos gadgets cada vez mais modernos – e caros. Pessoas que precisam de apoio psicoterápico e até mesmo de medicamentos devem ser sempre acolhidas e encorajadas com paciência e sensibilidade.
Também é verdade que muitas outras situações talvez demandem “somente” o desafio de crescer como pessoa madura, em paz consigo mesma e com os demais. Aprender a, como dizia Hans Burki, reduzir, renunciar e simplificar. A redescobrir a beleza e a simplicidade das relações pessoais de carne e osso, dos silêncios cúmplices ao lado de quem a gente ama, sem precisar de qualquer outra tela ou conexão além da sutil e gostosa presença do outro. Desfrutar a paz de se sentir amada por Deus sem precisar fazer algo por isso (Mt 3.17). Esquecer-se ou livrar-se da ilusão de que “Apple” Assíria ou “Android” Egito nos salvarão (Os 14.3; Is 31.1).
Nem precisamos deles. A salvação e o nosso melhor sentido de identidade sempre vêm de Deus. Quer usar melhor o seu celular? Poderia até usá-lo para ler e meditar em algo em sua próxima viagem de ônibus ou metrô. Mas também aprenda a desligá-lo, a silenciá-lo, e a prestar atenção na beleza das vidas que estão ao seu redor. Essa sempre será a melhor conexão.
• Ricardo Wesley Morais Borges é casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo, e serve na equipe regional para a América Latina da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE-IFES).
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