Opinião
- 24 de maio de 2019
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O cristão, a violência e o uso de armas
Por Jorge Henrique Barro
Nem um de nós tem dúvidas de que esse é um tema polêmico. E é normalmente nos temas polêmicos que as pessoas tendem a emitir suas opiniões de modo mais apaixonado (emotivamente) do que racional. Pior que isso é quando cristão, que declaram irrestritamente que a bíblia é “a única regra de fé e prática”, emitem suas opiniões que não consideram o todo das Sagradas Escrituras. É um desserviço ao Evangelho citar versículos para endossar opiniões pessoais para dar a entender que tal postura é “bíblica”. Agindo assim, fica fácil de entender o conhecido adágio que diz que “a Bíblia é mãe das heresias”, pois qual pessoa cristã se autodenomina de herege? Para estes, basta citar a Bíblia que sua defesa está garantida!
Eu não tenho nenhuma expertise neste tema de arma de fogo. Pelo contrário, sou um pastor (presbiteriano) e missiólogo que nunca transitou neste meio. Não tenho os referenciais teóricos necessários que me credenciam para tratar esse assunto do ponto de vista de políticas públicas de segurança. Tive uma arma uma única vez em minhas mãos, sem munição, que um colega me mostrou, sendo que este trabalha para o Governo e, portanto, no uso legal da mesma. Confesso que fiquei assustado, mesmo ela estar sem munição. Se alguém me propor segurar uma arma novamente não quero passar essa experiência. Com isso, já fica desde início claro meu posicionamento em relação ao tema para que você fique à vontade para seguir lendo ou não. Espero que continue!
Antes de algumas breves reflexões bíblicas e teológicas, penso ser importante mencionar algumas questões legais sobre assunto em discussão em nosso país.
Temos no Brasil o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) que proíbe o porte de arma de fogo e estabelece os limites de sua posse. O Estatuto do Desarmamento trata da posse irregular de arma de fogo com o porte ilegal.
A posse consiste em manter no interior de residência (ou dependência desta) ou no local de trabalho a arma de fogo. E assim descreve:
Posse irregular de arma de fogo de uso permitido
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Pena detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
O porte pressupõe que a arma de fogo esteja fora da residência ou local de trabalho.
Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente.
O último artigo do Estatuto assim determina:
Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei.
O presidente da República, no dia 7 de maio de 2019, assina esse Decreto sobre a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo:
O Decreto pode ser lido na íntegra aqui.
O que muda com o Decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019 proposto pelo atual Governo? Veja a seguir (Fonte):
1. Posse
Com o direito à posse, a arma de fogo só pode ser mantida no interior de residência ou em local de trabalho, desde que o dono seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa. A legislação brasileira estabelece uma série de requisitos para a aquisição de armas.
Nos casos dos cidadãos comuns, é necessário ter, no mínimo, 25 anos. É preciso apresentar documento comprobatório de ocupação lícita; declaração escrita da efetiva necessidade, expondo fatos e circunstâncias que justifiquem o pedido; declaração de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal; comprovação de idoneidade, de aptidão psicológica e de capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo, entre outros documentos.
O Decreto inclui residências em áreas urbanas com elevados índices de violência como uma das justificativas para efetiva necessidade do uso da arma de fogo. Os locais considerados violentos são aqueles situados em unidades federativas com índices anuais superiores a dez homicídios por 100 mil habitantes, no ano de 2016, segundo os dados do Atlas da Violência 2018.
A pena para a posse irregular de armamento de fogo é de detenção de um a três anos, além de multa.
Confira aqui as 50 cidades mais perigosas para se viver, das quais 43 estão na América Latina e 17 no Brasil.
2. Porte
Já o porte de arma de fogo consiste em transitar com a arma de fogo, mantendo-a em um ambiente que não seja a residência ou local de trabalho do dono do armamento. A Lei nº 10.826, de dezembro de 2003, proíbe o porte em todo o território nacional, salvo em casos específicos.
Também é permitido quando o cargo ou função exige o uso desse tipo de equipamento. O porte funcional se aplica a diversos profissionais da área de segurança pública, tais como policiais militares e civis, integrantes da Força Nacional de Segurança Pública, agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência, integrantes das Forças Armadas, empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, entre outros.
3. Transporte
Nos casos das pessoas que têm somente o direito à posse, o transporte da arma é permitido em situações especiais, quando o armamento precisa ser levado de um local para outro.
É necessário ressaltar o artigo Art. 36:
Os clubes e as escolas de tiro, os colecionadores, os atiradores e os caçadores serão registrados no Comando do Exército.
E no § 6º A prática de tiro desportivo por menores de dezoito anos de idade será previamente autorizada por um dos seus responsáveis legais, deverá se restringir tão somente aos locais autorizados pelo Comando do Exército e será utilizada arma de fogo da agremiação ou do responsável quando por este estiver acompanhado.
Existe aí alguma intencionalidade em promover o gosto pelas das armas desde a mais tenra idade! O que se pretende com esse incentivo aos menores?
Além disso, qualquer que exerça a profissão de Advogado (Decreto nº 9.785, Art. 20, § 3º letra “h”) e profissional da imprensa que atue na cobertura policial (DECRETO Nº 9.785, Art. 20, § 3º, “VI”). Isso muito me preocupa, pois estes, em especial os Jornalistas, serão alvos fáceis nas Operações Militares, das Milícias e senhores dos cartéis, sem saber de onde vem os tiros.
Obviamente que existem muitos outros detalhes, que precisam ser discutidos pela sociedade brasileira, mas esses são suficientes para esclarecer a diferença entre o Estatuto do Desarmamento e o Decreto nº 9.785 proposto pelo atual Governo.
De acordo com o presidente da República, o governo foi “no limite da lei”. E diz ainda: “O nosso decreto não é um projeto de segurança pública. É, no nosso entendimento, algo mais importante. É um direito individual daquele que, porventura, queira ter uma arma de fogo, buscar a posse, que seja direito dele, respeitando alguns requisitos.” (Fonte)
Por que o Decreto não feito e nem pensado sob a ótica da segurança pública? Qual o sentido de dar um direito ao cidadão sem o respaldo da segurança pública?
Caso tal Decreto seja aprovado pelo Judiciário e passe a valer:
O resultado... mostra que o lobby da indústria da morte venceu e ganhou um filão de R$ 20 bilhões, em números conservadores. Para se ter uma ideia da euforia da indústria, as ações da fabricante brasileira Taurus dispararam e, às 15h15 [postado em 09/05/2019 06:00], os papéis apontavam para uma alta de 19,19%. (Fonte)
Aumentam as chances de o cidadão sofrer uma morte violenta e alguns grupos são mais ameaçados: mulheres, com a violência doméstica, suscetibilidade de acidentes com crianças, suicídios, conflitos de trânsito e tantos outros.
Breves reflexões bíblicas e teológicas
A violência armada é não partidária. Armas matam republicanos, democratas e independentes todos os dias. As vítimas são judeus, cristãos, muçulmanos, sikis, budistas, ateus, agnósticos, brancos, negros, latinos, asiáticos, homens, mulheres, meninos, meninas, jovens, velhos, gays, heterossexuais, ricos, pobres, rurais e urbanos. Nenhuma categoria de pessoa escapa. O vôlei de arma não é mais uma questão política do que dirigir bêbado, vender cocaína crack ou incêndio criminoso. Quando um ser humano é morto, a família não chama sua deputada, senadora ou magistrado civil. Eles chamam seu pastor, rabino ou imã. Lidar com a morte e suas consequências não é uma atividade policial. Por que trabalhar para evitar mortes violentas é um assunto político? (ATWOOD, James. America and its guns: a theological exposé. Eugene, OR: Cascade Books, 2012, p. 14).
Para Calvino, os princípios bíblicos também tinham aplicabilidade direta na ordenação da sociedade civil. Assim, em seu comentário sobre o Sexto Mandamento, “Não matarás”, Calvino expressou uma perspectiva teológica sobre o ordenamento da sociedade que se baseia no valor de cada vida humana como amada e redimida por Deus e, portanto, necessitada de proteção. Ele afirmou:
O propósito deste mandamento é que, uma vez que o Senhor ligou toda a raça humana por um tipo de unidade, a segurança de todos deve ser considerada como confiada a cada um. Em geral, portanto, toda violência e injustiça, e todo tipo de dano do qual o corpo de nosso vizinho sofre, é proibido. Assim, somos obrigados a fazer fielmente o que em nós está em defender a vida de nosso próximo, promover o que quer que seja para sua tranquilidade, ser vigilantes em afastar os danos e, quando o perigo vier, ajudar a removê-lo (Institutes, Book II, Chapter VIII, Number 39).
Não podemos nunca, como cristãos, nos render diante da banalização da vida no Brasil. A vida é o dom precioso de Deus que fruto de seu amor e graça comum! A banalização da vida tem um fio condutor na história da humanidade.
1. O primeiro homicídio na Bíblia
Nós, que somos cristãos, devemos ter uma compreensão das raízes da violência. A cobertura mediática sobre violência é chocantemente vasta, mas superficial. Centra-se no fato (que também é importante), mas dificilmente atinge as raízes das causas da violência.
Então, o que a Bíblia diz?
Nos é conhecido, logo no início da narrativa bíblica, o primeiro homicídio como um ato hediondo de violência. Já na segunda geração da humanidade um irmão derrama o sangue do outro. Caim mata Abel por uma razão que vem de dentro do coração – o ciúme que se transforma em raiva. O padrão é definido para toda a humanidade!
Algo tão simples, aparentemente, como o ciúme quando não controlado, deixa crescer, e de modo profundo e intenso, resultando em ações de violência. Deus havia advertido Caim ao perguntar: “Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo” (Gn 4:6-7).
Esta é realmente uma declaração surpreendente. Ciúmes conduz à raiva (fúria). A raiva altera nossa personalidade (rosto transformado). A personalidade sem controle gera violência. E dependendo da violência, produz a morte. O pecado é predatório, fica escondido atrás da porta, à espreita para possuir e dominar Caim.
O que pode ser feito em relação à violência?
“Então, lhe disse o SENHOR: Por que andas irado, e por que descaiu o teu semblante? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo” (Gn 4:6).
Deus disse a Caim que era melhor ele “exercer domínio” (governar) sobre o “desejo” - patologia de sua alma – (anseio, avidez – de um homem por uma mulher, da mulher por homem, de animal selvagem para devorar). Ele não o fez, e sangue foi derramado.
Deus disse a Caim: “O que foi que você fez? Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando” (Gn 4:10). E assim acontece com sangue de muitos hoje!
Essa trágica história nos revela como se dá o ciclo da violência. Veja:
Lição: a violência é o resultado de uma patologia da alma!
A violência, biblicamente falando, não começa com exércitos permanentes, operações militares, ódio étnico, desigualdades sociais de longa data, injustiças, corrupções e coisas do tipo. A violência é tão próxima a nós quanto nossos próprios corações.
Um pouco mais tarde, ainda em Gênesis, o próprio Deus estabelece um princípio profundo sobre a moralidade da violência: “A todo que derramar sangue, tanto homem como animal, pedirei contas; a cada um pedirei contas da vida do seu próximo. Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi o homem criado” (Gn 9:5-6).
Logo no início de tudo tal princípio é fundacional. A vital importância se fundamenta na realidade de que a violência contra os seres humanos é uma afronta contra a imagem e semelhança de Deus que transmite valor e dignidade para toda vida humana. A violência egoísta ou indiscriminada é uma ofensa moral contra Deus! Eis a moral de Deus:
Então, falou Deus todas estas palavras: Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos. Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão. Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou. Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá. Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo (Êx 20:1-17).
E ainda:
Estes, pois, são os mandamentos, os estatutos e os juízos que mandou o SENHOR, teu Deus, se te ensinassem, para que os cumprisses na terra a que passas para a possuir; para que temas ao SENHOR, teu Deus, e guardes todos os seus estatutos e mandamentos que eu te ordeno, tu, e teu filho, e o filho de teu filho, todos os dias da tua vida; e que teus dias sejam prolongados. Ouve, pois, ó Israel, e atenta em os cumprires, para que bem te suceda, e muito te multipliques na terra que mana leite e mel, como te disse o SENHOR, Deus de teus pais. Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te. Também as atarás como sinal na tua mão, e te serão por frontal entre os olhos. E as escreverás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas (Dt 6:1-10).
2. Jesus e a violência
O que (brevemente) o Novo Testamento tem a dizer sobre a violência, particularmente no ensino de Jesus?
2.1. Jesus modela o poder da não-violência
Na mesma noite de sua prisão, quando homens violentos se vieram até onde Jesus estava. Pedro estava pronto e preparado para lutar, pois havia trazido uma espada e quando a turma chegou tirou-a e feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha direita (o nome daquele servo era Malco).
“Jesus, porém, ordenou a Pedro: “Guarde a espada! Acaso não haverei de beber o cálice que o Pai me deu?” (Jo 18:10-11).
“Coloque sua espada de volta em seu lugar” porque certamente muitos que desembainham a espada pela espada morrerão. Esta era uma declaração de princípio, consistente com todos os ensinamentos de Jesus. No seu julgamento, Jesus disse a Pôncio Pilatos: Disse Jesus: “O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora o meu Reino não é daqui” (Jo 18:36).
O pacifismo está impregnado nos ensinos e práticas de Jesus. Há aqueles que entendem que o ensinamento de Jesus não exclui a violência na defesa, ou como descreve Romanos 13, um uso intencional e punitivo da força no governo humano:
“Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal” (Rm 13:3-4).
A meu ver o ensinamento de Jesus eleva a não-violência contra a violência. E a resposta proferida por Jesus contra a violência que introduziu um tipo diferente de reino e reinado, com um conjunto diferente de padrões éticos.
2.2. Jesus fala sobre a fonte da violência
Um dos mais revolucionários ensinamentos de Jesus é que a violência humana começa num lugar mais profundo. O pecado da violência começa antes que o sangue seja derramado ou palavras firam. No Sermão do Monte, Jesus disse:
Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: “Não matarás”, e “quem matar estará sujeito a julgamento”. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: “Racá” [“Você não vale nada”], será levado ao tribunal. E qualquer que disser: “Louco!” [“idiota”], corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5:21-22).
Não podemos falar de assassinato sem falar de raiva. Não podemos falar de tiroteios em comunidades, favelas ou qualquer outro lugar sem falar das infecções do ódio, da maldade e raiva em nossa cultura.
O lócus da violência, de acordo com Jesus, antes de se dar no exterior acontece no interior do coração dos homens conforme este ensinamento do Sermão da Monte:
Jesus chamou novamente a multidão para junto de si e disse: “Ouçam-me todos e entendam isto: não há nada fora do homem que, nele entrando, possa torná-lo "impuro". Pelo contrário, o que sai do homem é que o torna "impuro". Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça!” Depois de deixar a multidão e entrar em casa, os discípulos lhe pediram explicação da parábola. “Será que vocês também não conseguem entender?”, perguntou-lhes Jesus. “Não percebem que nada que entre no homem pode torná-lo "impuro"? Porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, sendo depois eliminado”. Ao dizer isto, Jesus declarou “puros” todos os alimentos. E continuou: “O que sai do homem é que o torna "impuro". Pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todos esses males vêm de dentro e tornam o homem "impuro"” (Mc 7:14-23).
Aqui está a má notícia da condição humana: a violência - como todo o pecado – vem de dentro do coração humano. O adultério não é causado externamente pela boa aparência de outra pessoa, a ganância não é causada externamente pelo dinheiro, a inveja não é causada externamente pelas concessionárias de carros e também a violência não é causada externamente por videogames ou filmes. Não há dúvida de que os estímulos externos certamente afetam as pessoas, e profundo sofrimento psicológico certamente condiciona as pessoas diante de uma cultura de violência permissiva para ser violenta, mas o instinto e a escolha de agir com violência vem do coração.
Não se pode dizer que esta declaração de Jesus oferece uma psicologia completa da violência, mas sim que oferece um núcleo de verdade aqui que pode nos ajudar quando olhamos para o mistério e a fábrica da violência na nossa sociedade. Os fariseus queriam acreditar que o pecado tinha a ver com aquilo que as pessoas colocavam para dentro delas, como o alimento que comiam. Essa é uma maneira conveniente de ver a vida. Muito mais preocupante, no entanto, é que todas as pessoas têm dentro delas mesmas o potencial (vírus) para a violência. É foi isso que preocupou Jesus! Confira a lista que ele mesmo elencou: o potencial para os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todas com potencial enorme para produzir violência.
A fábrica produtora da violência está dentro do ser humano e não fora dele!
2.3. Jesus nos encoraja a enfrentar corajosamente a violência
Jesus claramente ensinou que o mundo é um lugar pecaminoso e violento. E por causa disso, ele nos desafiou, como seus seguidores e discípulos, a não viver com medo e intimidação: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno” (Mt 10:28). Ele também disse: “Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (Jo 16:33).
2.4. Jesus ordena uma atitude contra violência
Como Jesus lidou com a violência? O que Jesus quer que façamos a respeito da violência? O que deve saltar a nossas mentes são, especialmente, as “bem-aventuranças”, que inclui este desafio da vida real: “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mt 5:9).
O que podemos fazer com relação à violência? Deve começar com um compromisso sério com o princípio: “Bem-aventurados os pacificadores”. Mas isso não acontecerá a menos consigamos ir além da ilusão (desejos imaturos). Pacificação fruto de um de trabalho ativo, e por vezes, frustrante e perigoso (mataram Jesus, mataram Martin Luther King e tantos outros). Paz não é ausência de conflito, mas a plenitude do shalom de Deus em meio aos conflitos. Não é a coisa mais conveniente a se fazer, mas é a mais certa - “bem-aventurados são os bem-aventurados” é o que gostaríamos de acreditar, mas a proposta é que os bem-aventurados são aqueles que gastam suas vidas no interesse da reconciliação e shalom de Deus!
Esse desafio é assustador, mas é o chamado claro de Jesus para seus seguidores em todos os tempos diante do lobby e indústria da violência. Dietrich Bonhoeffer, em seu livro, The cost of discipleship, disse:
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus”. Os seguidores de Jesus foram chamados à paz. Quando ele os chamou, eles encontraram a paz, pois ele é a paz deles. Mas agora lhes dizem que não devem apenas ter paz, mas fazê-la. E, para esse fim, renunciam a toda violência e tumulto. Na causa de Cristo, nada se ganha com tais métodos. Seu reino é de paz e a saudação mútua de seu rebanho é uma saudação de paz. Seus discípulos mantêm a paz optando por suportar o sofrimento em vez de infligir-se aos outros. Eles mantêm companheirismo onde outros os separam. Eles renunciam a toda autoafirmação e sofrem silenciosamente diante do ódio e do mal. Ao fazê-lo, eles superam o mal com o bem e estabelecem a paz de Deus no meio de um mundo de guerra e ódio. Mas em nenhum lugar essa paz será mais manifesta do que onde eles encontram os iníquos em paz e estão prontos para sofrer em suas mãos. Os pacificadores levarão a cruz com o seu Senhor, pois foi na cruz que a paz foi feita. Agora que eles são parceiros na obra de reconciliação de Cristo, eles são chamados de filhos de Deus como ele é o Filho de Deus (BONHOEFFER, Dietrich. The cost of discipleship. New York: MacMilillan Publishing co., 21.ed., 1979, p. 127-128).
E ainda Bonhoeffer diz:
Ao renunciar voluntariamente à autodefesa, o cristão afirma sua adesão absoluta a Jesus e sua liberdade da tirania de seu próprio ego. A exclusividade dessa adesão é o único poder que pode vencer o mal... O sofrimento voluntariamente suportado é mais forte que o mal, e significa a morte para o mal (p. 158-159).
E como enfrentar tudo isso? Ouçamos Bonhoeffer:
Se aceitássemos o preceito da não-resistência como um modelo ético para aplicação geral, deveríamos nos entregar a sonhos idealistas: deveríamos estar sonhando com uma utopia com leis que o mundo jamais obedeceria. Fazer da não-resistência um princípio para a vida secular é negar a Deus, minando sua graciosa ordenança pela preservação do mundo. Mas Jesus não é um desenhista de projetos políticos, ele é aquele que derrotou o mal por meio do sofrimento. Parecia que o mal havia triunfado na cruz, mas a verdadeira vitória pertencia a Jesus. E a cruz é a única justificativa para o preceito da não-violência, pois somente ela pode inflamar a fé na vitória sobre o mal que permitirá aos homens obedecer a esse preceito. E somente tal obediência é abençoada com a promessa de que seremos participantes da vitória de Cristo, bem como de seus sofrimentos. A paixão de Cristo é a vitória do amor divino sobre os poderes do mal e, portanto, é a única base suportável para a obediência cristã. Mais uma vez, Jesus chama aqueles que o seguem para compartilhar sua paixão. Como podemos convencer o mundo pela nossa pregação da paixão quando nos afastamos dessa paixão em nossas próprias vidas? Na cruz, Jesus cumpriu a lei que ele mesmo estabeleceu e assim mantém graciosamente seus discípulos na comunhão de seu sofrimento. A cruz é o único poder no mundo que prova que o amor sofrido pode vingar e vencer o mal. Mas foi exatamente essa participação na cruz que os discípulos receberam quando Jesus os chamou para ele. Eles são chamados abençoados por causa de sua participação visível em sua cruz (p. 161-162).
Outra passagem importante do Novo Testamento que fala sobre o estabelecimento da paz está na epístola de Tiago: “O fruto da justiça semeia-se em paz para os pacificadores”. Ou seja, quem planta paz colhe justiça! Por isso Tiago pergunta:
“De onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que guerreiam dentro de vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam, mas não conseguem obter o que desejam. Vocês vivem a lutar e a fazer guerras” (Tg 4:1-2).
A resposta de Tiago vai na mesma direção de Jesus. Qual? A violência é fruto do que está dentro, das “paixões que guerreiam dentro de vocês”.
O que pode ser feito com relação à violência?
Nunca eliminaremos totalmente a violência, mas é nosso dever diminuí-la e nos anteciparmos a ela.
Há muitos profissionais cujo trabalho é a pacificação como ativistas, e precisamos orar por estes e apoiá-los. Como também pessoas que atuam na polícia, justiça criminal, educadores, saúde mental, juízes, promotores, procuradores e muitos outros. A segurança numa comunidade vem de uma rede de colaboradores. Os seguidores de Jesus são chamados a fazer mais do que passivamente esperar a próxima pessoa sacar sua arma. É nosso dever desarma-la e lutar pelo desarmamento da sociedade. Nosso Senhor e Salvador nos chama para fechar a lacuna onde pessoas são rejeitadas e abusadas por outros. A conectar-se aos feridos antes que ataquem e firam outros. Para reduzir o nível de tensão e estresse ao redor de nós, vivendo em shalom.
Deus deu o seguinte testemunho do seu filho Jesus e sua missão:
Eis o meu servo, a quem escolhi, o meu amado, em quem tenho prazer. Porei sobre ele o meu Espírito, e ele anunciará justiça às nações. Não discutirá nem gritará; ninguém ouvirá sua voz nas ruas. Não quebrará o caniço rachado, não apagará o pavio fumegante, até que leve à vitória a justiça. Em seu nome as nações porão sua esperança (Mt 12:18-21).
A próxima pessoa em nossa comunidade que pode agir com violência é agora, hoje, em algum lugar, um caniço rachado (ferido) ou um pavio fumegante. Temos olhares essas pessoas, as notamos? Será que vamos ajudar essas pessoas para não se aproximarem da borda do penhasco? A polícia não pode e nem conseguirá supervisionar a vida de todos.
Nossas leis definem o comportamento civil, mas não podem domar as personalidades humanas!
Atirar de volta é sempre pior do que parar o tiroteio antes que ele comece. Trabalhar, preventivamente, para barrar a violência é muito melhor do que consertar seus estragos! Carregar os caixões dos mortos e descer seus corpos nas sepultadoras por causa da violência injusta é uma dor que adoeça a alma!
E Abel estava morto. Caim sabia disso, porque ele o matou.
Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel? Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão?” (Gn 4:9).
Essa é a pergunta para nós. Somos guardiões dos seres humanos, criados a imagem de Deus? É responsabilidade humana prestar atenção às vítimas em potencial e termos coragem de ficar atentos aos possíveis agressores.
O fim e recomeço da humanidade: terra foi novamente povoada
A história de Noé não pode ser desprezada no processo de entender o desenvolvimento dos povos e das cidades. Por que não? Porque é a partir desta família que Deus reinicia o processo do desenvolvimento da urbanização do mundo. Noé teve três filhos: Sem, Cam e Jafé e “a partir deles toda a terra foi povoada” (Gn 10:19). É um reinício porque ouve um fim do início. O que causou o fim?
Ora, a terra estava corrompida aos olhos de Deus e cheia de violência. Ao ver como a terra se corromperá, pois toda a humanidade havia corrompido sua conduta, Deus disse a Noé: “Darei fim a todos os seres humanos, porque a terra encheu-se de violência por causa deles. Eu os destruirei com a terra” (Gn 6:11-13).
Violência e corrupção da conduta humana deram fim aos primeiros povoamentos e cidades. Os sonhos dos primeiros construtores, como Caim e outros, literalmente foram para debaixo da água, com o dilúvio, pois “as águas prevaleceram sobre a terra cento e cinquenta dias” (Gn 7:24). Foram necessários quase cinco meses para destruir tudo quanto o ser humano havia construído até então, inclusive o próprio Jardim do Éden.
Este recomeço nasce, novamente, com a bênção de Deus: “Deus abençoou Noé e seus filhos dizendo-lhes: “Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9:1; ver também 9:7) e “a partir deles toda a terra foi povoada” (Gn 10:19). Este povoamento teria que acontecer com o compromisso, por parte de Noé e seus filhos, de não permitir que violência e corrupção da conduta humana se estabelecem na terra novamente. Deus estabelece uma aliança com a família de Noé e a estende “para todas as gerações futuras” (Gn 9:12). Mas isto não é unilateral. Deus deixa claro que pediria contas da vida do próximo (Gn 9:5) e afirma: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi criado o homem” (Gn 9:6). Esta é a contrapartida da aliança. Exige a participação humana como compromisso responsável. A cláusula contratual que Deus impõe na aliança é para o benefício do próprio ser humano. Ou seja, os novos povoamentos e a construção das futuras cidades não poderiam se dar pelo uso e exercício da violência como também desenvolver uma nova percepção ética-moral para que a corrupção não encontrasse um solo fértil para crescer. É com base nessas condições humanitárias que Deus disse: “Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9:7). Encham a terra de gente pacífica e íntegra! Isto nos fornece preciosa pistas de que dois elementos são fundamentais para Deus nas relações humanas: paz e integridade. Uma sociedade violenta e corrupta revela a ausência da imagem de Deus (Gn 9:6). A busca da paz e da integridade além de ser um esforço determinante para as relações humanas, para nós cristãos, trata-se de preservar o essencial: a imago Dei no ser humano criado por Deus!
Encontramos aqui uma função teológica impressionante para o exercício da missão do povo Deus nas cidades: a imagem de Deus no próximo. Isso revela que a questão da violência e da corrupção não pode ser vista e abordada apenas como um mal social e estrutural da sociedade. A questão essencial é relacional-espiritual, mas é óbvio que esse aspecto é negligenciado pelos governantes. É relacional porque a violência e corrupção, sejam quais forem suas expressões e modalidades, sempre atinge o ser humano. É espiritual porque a violência e corrupção acontecem pelo menosprezo ou desconhecimento da imago Dei no próximo. Isso revela o quanto Deus está interessado em participar da vida das pessoas da cidade. Esse deveria também ser o interesse da igreja, o povo de Deus, como pacificadores da cidade! Certamente a igreja pode atuar na personalidade humana, sendo ela uma mediadora (“pela igreja”) de conflitos como porta-voz e instrumento/agência conscientizadora dos valores do reino de Deus na promoção da paz! “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc 2:14).
Compre uma espada! Basta!
A seguir, Jesus lhes perguntou: Quando vos mandei sem bolsa, sem alforje e sem sandálias, faltou-vos, porventura, alguma coisa? Nada, disseram eles. Então, lhes disse: Agora, porém, quem tem bolsa, tome-a, como também o alforje; e o que não tem espada, venda a sua capa e compre uma. Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: “Ele foi contado com os malfeitores”. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido. Então, lhe disseram: Senhor, eis aqui duas espadas! Respondeu-lhes: Basta! (Lc 22:35-38).
Jacques Ellul (Anarquia e Cristianismo. [Sl .: sn], 1988, p. 64) ao comentar esse texto diz:
Era necessário que a profecia fosse cumprida de acordo com a qual ele [Jesus] seria colocado nas fileiras dos criminosos (Lc 22:36-37). A ideia de lutar com apenas duas espadas é ridícula. As espadas são suficientes, no entanto, para justificar a acusação de que Jesus é o líder de um bando de bandidos [“Ele foi contado com os malfeitores”]. Temos que notar aqui que Jesus está conscientemente cumprindo a profecia. Se ele não tivesse, essa fala não faria sentido algum.
Que profecia é esse que Jesus disse que importa que se cumpra em mim o que está escrito: “Ele foi contado com os malfeitores”? E continua dizendo que “porque o que a mim se refere está sendo cumprido”. Trata-se de Isaías 53:12, que diz:
Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.
O contexto da profecia de Isaías afirma que mesmo que foi contado com os transgressores, Jesus não iria optar para a violência armada, pelo contrário (“contudo”) que ele ao invés disso, faria duas coisas: (1) levaria sobre si o pecado de muitos; e (2) intercederia pelos transgressores. Quando isso aconteceu? Na cruz!
• “Levou sobre si o pecado de muitos” – “Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado, para se cumprir a Escritura, disse: Tenho sede! Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19:28-30).
• “Pelos transgressores intercedeu” – “Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, bem como aos malfeitores, um à direita, outro à esquerda. Contudo, Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:33-34).
Duas espadas jamais seriam suficientes para defender Jesus e nem mesmo combater contra Império Romano. Era apenas para enfatizar o cumprimento da profecia. Por isso o próprio se incumbiu de esclarecer o assunto e pôr um ponto final ao dizer aos discípulos que lhe disseram: “Senhor, eis aqui duas espadas!” Respondeu-lhes: Basta!” Como traduziu Eugene Peterson em A Mensagem:
Eles disseram: “Senhor, aqui estão duas espadas!”. Mas ele disse: “Basta! Chega dessa conversa sobre espadas!”.
Outra prova, logo em seguida, que sabe poucas horas depois desse texto, Jesus é preso. O texto diz:
Falava ele ainda, quando chegou uma multidão; e um dos doze, o chamado Judas, que vinha à frente deles, aproximou-se de Jesus para o beijar. Jesus, porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem? Os que estavam ao redor dele, vendo o que ia suceder, perguntaram: Senhor, feriremos à espada? Um deles feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha direita. Mas Jesus acudiu, dizendo: Deixai, basta. E, tocando-lhe a orelha, o curou. Então, dirigindo-se Jesus aos principais sacerdotes, capitães do templo e anciãos que vieram prendê-lo, disse: Saístes com espadas e porretes como para deter um salteador? Diariamente, estando eu convosco no templo, não pusestes as mãos sobre mim. Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas (Lc 22:47-53).
Note a mesma palavra usada por Jesus: “basta”.
No texto paralelo de Mateus (26:52-56), alguns acréscimos importantes:
Então, Jesus lhe disse: Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão. Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder? Naquele momento, disse Jesus às multidões: Saístes com espadas e porretes para prender-me, como a um salteador? Todos os dias, no templo, eu me assentava [convosco] ensinando, e não me prendestes. Tudo isto, porém, aconteceu para que se cumprissem as Escrituras dos profetas. Então, os discípulos todos, deixando-o, fugiram.
O acréscimo fundamental em Mateus é: violência gera ainda mais violência! “Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão”. Se Jesus precisasse usar de violência para solucionar a situação de sua prisão certamente não seria com um pequeno grupo de discípulos que entendia mais de vara de pescar do que que espadas! Ele simplesmente iria “rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos”. Não seria com doze discípulos, impotentes e incapazes, mas com doze legiões de anjos potentes que a todos exterminariam!
Segundo a Strong"s Number,
λεγιων - legeon - legião, corpo de soldados cujo o número diferia de tempos em tempos. Na época de Augusto, parece ter consistido de 6.826 homens (ie, 6100 soldados a pé, e 726 cavaleiros).
Se isso estiver correto, ou seja, uma legião for 6.826 soldados, então se trata de 81.912 não de soldados homens, mas anjos guerreiros! Acha suficiente? Muito, mas não para os discípulos: “Então, os discípulos todos, deixando-o, fugiram” (Mt 26:56). Onde estão os valentões com as duas espadas que compraram?
Em vez de violência, Jesus se rende, pois o versículo seguinte a fuga dos discípulos diz:
E os que prenderam Jesus o levaram à casa de Caifás, o sumo sacerdote, onde se haviam reunido os escribas e os anciãos. Mas Pedro o seguia de longe até ao pátio do sumo sacerdote e, tendo entrado, assentou-se entre os serventuários, para ver o fim (Mt 26:57-58).
Pedro, que outrora havia usado sua espada, agora “seguia de longe até ao pátio do sumo sacerdote e, tendo entrado, assentou-se entre os serventuários, para ver o fim”.
É necessário ainda lembrar a decisão de Jesus do não uso da violência, ao afirmar:
Tornou Pilatos a entrar no pretório, chamou Jesus e perguntou-lhe: És tu o rei dos judeus? Respondeu Jesus: Vem de ti mesmo esta pergunta ou to disseram outros a meu respeito? Replicou Pilatos: Porventura, sou judeu? A tua própria gente e os principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste? Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui (Jo 18:33-36).
Jesus fala de υπερετης - huperetes – traduzido por “ministros” que, no contexto, são os servos de um rei, criados, acompanhantes, os soldados de um rei.
Me parece que fica claro a orientação de Jesus do uso da violência, seja ela qual for. Como um discípulo de Jesus poderá amar a Deus e o próximo com uma arma na mão? Estes dois mandamentos resumem, segundo Jesus, TODA a LEI e os PROFETAS!
Como um discípulo de Jesus poderá ser um pacificador com uma arma na mão? “ Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5:9).
Lembro novamente a afirmação do Rev. James Atwwod que devotou mais de 30 anos de sua vida e ministério para lutar contra o desarmamento nos Estados Unidos:
A violência armada é não partidária. Armas matam republicanos, democratas e independentes todos os dias. As vítimas são judeus, cristãos, muçulmanos, sikis, budistas, ateus, agnósticos, brancos, negros, latinos, asiáticos, homens, mulheres, meninos, meninas, jovens, velhos, gays, heterossexuais, ricos, pobres, rurais e urbanos. Nenhuma categoria de pessoa escapa. O vôlei de arma não é mais uma questão política do que dirigir bêbado, vender cocaína crack ou incêndio criminoso.
Quando um ser humano é morto, a família não chama sua deputada, senadora ou magistrado civil. Eles chamam seu pastor, rabino ou imã. Lidar com a morte e suas consequências não é uma atividade política. Por que trabalhar para evitar mortes violentas é um assunto político? (ATWOOD, James. America and its guns: a theological exposé. Eugene, OR: Cascade Books, 2012, p. 14).
Antes de ser um assunto político (não que não seja!) é um assunto espiritual, isso ficou evidenciado no primeiro homicídio do mundo, como já vimos e também destacamos nas afirmações de Bonhoeffer. Isso não significa que tal tema não deva ter políticas públicas de segurança, que é uns deveres essenciais do Estado, sendo que nossa Constituição diz:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
O Estado não pode terceirizar a segurança pública por meio de um Decreto, mesmo que seja a “vontade” popular, colocando armas nas mãos das pessoas, dando a elas uma falsa sensação de segurança. O Governo Federal, em parcerias com os Estados Brasileiros, é responsável pela segurança de seus cidadãos que pagam os impostos para que sejam, entre outras destinações, para sua segurança. É responsabilidade do Estado proteger seus cidadãos e lhes oferecer segurança – que paga para isso! Um cidadão sozinho jamais dará conta das milícias, dos cartéis, dos roubos e assaltos e coisas do tipo. Responsabilizar o Governo não é sinônimo de limpar nossas mãos e nos isentar de nossas responsabilidades que deve ser exercida via uma cidadania consciente e participativa.
Permitir que o cidadão tenha uma (ou algumas) arma em suas mãos, como exercício de autodefesa, aumentará o (pseudo) sentimento de segurança pessoal e familiar como também as mortes por arma de fogo. Estou seguro que nossas estatísticas provaram isso, caso tal Decreto seja aprovado.
Espero e oro para o Governo não ceda as pressões do lobby da bancada da bala diante de um mercado bilionário que aumentará ainda mais o lucro das funerárias e cemitérios.
Finalizo dizendo que essa é uma posição pessoal minha, como discípulo de Jesus de Nazaré, e que isso em nada tem a ver com as instituições e organizações que sirvo e represento, mesmo porque nem as consultei para mencionar e nem mesmo falar em nome delas.
Deixo algumas palavras do pacifista Pr. Dr. Martin Luther King sobre a não-violência:
"Uma das coisas importantes da não violência é que não busca destruir a pessoa, mas transformá-la."
"Através da violência você pode matar um assassino, mas não pode matar o assassinato. Através da violência você pode matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar o ódio. A escuridão não pode extinguir a escuridão. Só a luz pode."
E ele ainda nos faz essa convocação:
"A medida fundamental de um homem não é como ele se posiciona em momentos de conforto e conveniência, mas como ele se posiciona em tempos de desafio e controvérsia."
Este é meu posicionamento!
Quero uma sociedade livre e pacificada, pois minha esperança está no Deus que criou “novos céus e nova terra”, em cujo ambiente harmônico o mal é persona non grata!
O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o SENHOR (Is 65:25).
• Jorge Henrique Barro é diretor (Desenvolvimento Institucional) e professor da Faculdade Teológica Sul Americana. Também assessor da Aliança Cristã Evangélica Brasileira.
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Duas dicas:
» Assista esse vídeo do Rev. James Atwwod
» O livro do Rev. James Atwwod - America and its guns: a theological expose
- 24 de maio de 2019
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