Opinião
- 06 de maio de 2010
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No crepúsculo do pensamento ocidental
Guilherme de Carvalho
Desde a Reforma do século 16 os cristãos evangélicos têm lutado para manter a fidelidade bíblica e o valor contemporâneo da teologia cristã. Seria possível fazer o mesmo no campo da filosofia? Seria possível construir uma filosofia cristã na tradição da Reforma?
Embora muitos tenham respondido que não, o século 20 viu nascer um pequeno movimento que desenvolveu uma abordagem cristã reformada para os problemas da filosofia. No centro desse movimento estava o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, cuja extensa obra é apresentada pela primeira vez ao público de língua portuguesa através dessa introdução, preparada por ele mesmo: “No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico”, lançamento da Editora Hagnos.
A obra se baseia em uma série de palestras apresentadas por Dooyeweerd em sua turnê pela América do Norte no final dos anos cinquenta. As palestras reunidas pelo próprio autor foram publicadas em 1960 e reimpressas em 1968 com correções, tornando-se uma espécie de introdução à sua obra magna: “A New Critique of Theoretical Thought”, em quatro volumes e ainda sem tradução para o português.
No “Crepúsculo” Dooyeweerd apresenta um articulado desafio à noção moderna popular de que o pensamento teórico em geral (especialmente nas disciplinas acadêmicas) e o pensamento filosófico em particular seriam “neutros” em relação à religião. Embora pouca gente hoje em dia acredite na neutralidade do pensamento em relação à cultura, ao sistema econômico ou aos valores sociais, a busca de neutralidade em relação a preconceitos religiosos era e continua sendo um dogma no mundo acadêmico e na política.
Utilizando métodos filosóficos Dooyeweerd mostra que por trás de toda teoria científica ou movimento intelectual existe uma orientação religiosa básica que pode ser trazida à luz, e que não é possível encontrar uma base “neutra” para escolher entre uma ou outra visão religiosa. Pelo contrário, toda escolha teórica sempre pressupõe um posicionamento religioso suprateórico, e os diferentes “standpoints” religiosos são de certa forma incomensuráveis. Quando alguém decide pensar sobre a religião, seus pés já estão apoiados em algum fundamento, saiba ele disso ou não.
Com isso Dooyeweerd torna claro por que a ciência e a filosofia são relativas à espiritualidade; e que por isso mesmo o cristão estaria plenamente justificado, “prima facie”, ao fazer escolhas teóricas e estabelecer programas de pesquisa baseados em uma visão cristã de mundo.
Dooyeweerd encara ainda o desafio de criticar um aparente inimigo do “dogma” da autonomia da razão: o relativismo historicista, que é uma das fontes do pensamento pós-moderno (pragmatismo, hermenêutica, desconstrução, etc.). Na obra o filósofo traz à luz as raízes do historicismo em uma forma específica de absolutização do pensamento teórico, que causa a sua própria contradição; e com isso deixa claro que, ao refutar a autonomia da razão, ele não propõe a dissolução da verdade no ácido do relativismo. Pelo contrário, a fé é necessária para manter a razão sóbria.
Na terceira parte do livro Dooyeweerd encara o espinhoso problema das relações entre a filosofia e a teologia, propondo um caminho original: ele retém a noção de Tomás de Aquino, de que deve-se distinguir entre essas duas disciplinas, e a proposta de Agostinho, de que a filosofia deve ser transformada a partir da fé cristã. Isso lhe dá condições de apontar a falha das teologias que tentam acomodar a revelação a conceitos filosóficos oriundos de sistemas pagãos ou seculares, e também o caminho para uma reforma da própria teologia, a partir da reforma desses conceitos filosóficos.
Na última seção do livro Dooyeweerd toca naquele assunto que revela o “etos” de seu projeto e nos faz ver o caminho que o diálogo de cristianismo e cultura deve tomar hoje: a busca por uma antropologia radicalmente bíblica. Segundo o autor, na base de cada sistema filosófico está o entendimento que o homem tem de si mesmo e de sua relação com a origem divina de todas as coisas. A questão do autoconhecimento – “gnōthi seauton” em Sócrates, “Deum et animam Scire” em Agostinho – é a questão filosófica central.
Ora, quando o homem adere a um ídolo, não pode mais saber quem é. E porque não se conhece, sempre construirá formas de pensamento e de cultura nas quais aspectos fundamentais de sua identidade enquanto imagem de Deus serão distorcidos ou reprimidos. Essa é exatamente a razão por que a cultura ocidental vem aos poucos minando a dignidade do homem e despersonalizando-o.
A única cura genuína para o presente estado de coisas - diz Dooyeweerd - será a retomada de uma visão pura do homem como ser pessoal, integrado e espiritual. E isso só pode ser dado pela Palavra de Deus atuando no coração do homem. Mas para ser capaz de anunciar essa verdade de forma clara e transformadora o cristianismo precisará fazer escolhas, e a mais importante delas será a desistência dos métodos de acomodação – das tentativas de acoplar exteriormente a fé cristã a cosmovisões não cristãs como o existencialismo, o pós-modernismo, o socialismo, o liberalismo econômico ou o naturalismo, para citar apenas algumas. No campo das ideias, em especial, os cristãos deverão repensar os conceitos fundamentais e as teorias dominantes em cada disciplina, promovendo a sua reforma interna a partir da Palavra de Deus.
Há que se enfrentar com fôlego e coragem esse desafio. O próprio Dooyeweerd fundou, juntamente com diversos companheiros, uma associação de filosofia cristã e uma revista científica, até hoje em circulação. E na esteira de seu trabalho pioneiro filósofos e acadêmicos cristãos se levantaram nos mais diversos campos do conhecimento, como a ética, a ciência política, a história, a teoria estética, a psicologia ou a tecnologia da informação. Hoje o movimento da filosofia reformacional tornou-se uma comunidade internacional e produtiva – no julgamento de alguns, como o historiador americano George Marsden, a maior promessa para dar estabilidade e orientação para o cristianismo evangélico ocidental no século 21.
Cremos que o contato com a tradição reformacional – mais do que apenas com Dooyeweerd, que foi um de seus fundadores – é salutar para o cristianismo brasileiro, que ainda luta para ganhar maturidade. De fato já há no Brasil um movimento articulado e consciente da necessidade de diálogo com a cultura e responsabilidade social: o movimento da missão integral, com uma rica história de boas ideias e bons exemplos. A tradição reformacional pode contribuir com um poderoso influxo construtivo para a expansão dos horizontes teóricos e práticos da missão da igreja brasileira, e nos preparar melhor para pós-modernidade verde-e-amarela que já surge no horizonte.
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Desde a Reforma do século 16 os cristãos evangélicos têm lutado para manter a fidelidade bíblica e o valor contemporâneo da teologia cristã. Seria possível fazer o mesmo no campo da filosofia? Seria possível construir uma filosofia cristã na tradição da Reforma?
Embora muitos tenham respondido que não, o século 20 viu nascer um pequeno movimento que desenvolveu uma abordagem cristã reformada para os problemas da filosofia. No centro desse movimento estava o filósofo holandês Herman Dooyeweerd, cuja extensa obra é apresentada pela primeira vez ao público de língua portuguesa através dessa introdução, preparada por ele mesmo: “No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico”, lançamento da Editora Hagnos.
A obra se baseia em uma série de palestras apresentadas por Dooyeweerd em sua turnê pela América do Norte no final dos anos cinquenta. As palestras reunidas pelo próprio autor foram publicadas em 1960 e reimpressas em 1968 com correções, tornando-se uma espécie de introdução à sua obra magna: “A New Critique of Theoretical Thought”, em quatro volumes e ainda sem tradução para o português.
No “Crepúsculo” Dooyeweerd apresenta um articulado desafio à noção moderna popular de que o pensamento teórico em geral (especialmente nas disciplinas acadêmicas) e o pensamento filosófico em particular seriam “neutros” em relação à religião. Embora pouca gente hoje em dia acredite na neutralidade do pensamento em relação à cultura, ao sistema econômico ou aos valores sociais, a busca de neutralidade em relação a preconceitos religiosos era e continua sendo um dogma no mundo acadêmico e na política.
Utilizando métodos filosóficos Dooyeweerd mostra que por trás de toda teoria científica ou movimento intelectual existe uma orientação religiosa básica que pode ser trazida à luz, e que não é possível encontrar uma base “neutra” para escolher entre uma ou outra visão religiosa. Pelo contrário, toda escolha teórica sempre pressupõe um posicionamento religioso suprateórico, e os diferentes “standpoints” religiosos são de certa forma incomensuráveis. Quando alguém decide pensar sobre a religião, seus pés já estão apoiados em algum fundamento, saiba ele disso ou não.
Com isso Dooyeweerd torna claro por que a ciência e a filosofia são relativas à espiritualidade; e que por isso mesmo o cristão estaria plenamente justificado, “prima facie”, ao fazer escolhas teóricas e estabelecer programas de pesquisa baseados em uma visão cristã de mundo.
Dooyeweerd encara ainda o desafio de criticar um aparente inimigo do “dogma” da autonomia da razão: o relativismo historicista, que é uma das fontes do pensamento pós-moderno (pragmatismo, hermenêutica, desconstrução, etc.). Na obra o filósofo traz à luz as raízes do historicismo em uma forma específica de absolutização do pensamento teórico, que causa a sua própria contradição; e com isso deixa claro que, ao refutar a autonomia da razão, ele não propõe a dissolução da verdade no ácido do relativismo. Pelo contrário, a fé é necessária para manter a razão sóbria.
Na terceira parte do livro Dooyeweerd encara o espinhoso problema das relações entre a filosofia e a teologia, propondo um caminho original: ele retém a noção de Tomás de Aquino, de que deve-se distinguir entre essas duas disciplinas, e a proposta de Agostinho, de que a filosofia deve ser transformada a partir da fé cristã. Isso lhe dá condições de apontar a falha das teologias que tentam acomodar a revelação a conceitos filosóficos oriundos de sistemas pagãos ou seculares, e também o caminho para uma reforma da própria teologia, a partir da reforma desses conceitos filosóficos.
Na última seção do livro Dooyeweerd toca naquele assunto que revela o “etos” de seu projeto e nos faz ver o caminho que o diálogo de cristianismo e cultura deve tomar hoje: a busca por uma antropologia radicalmente bíblica. Segundo o autor, na base de cada sistema filosófico está o entendimento que o homem tem de si mesmo e de sua relação com a origem divina de todas as coisas. A questão do autoconhecimento – “gnōthi seauton” em Sócrates, “Deum et animam Scire” em Agostinho – é a questão filosófica central.
Ora, quando o homem adere a um ídolo, não pode mais saber quem é. E porque não se conhece, sempre construirá formas de pensamento e de cultura nas quais aspectos fundamentais de sua identidade enquanto imagem de Deus serão distorcidos ou reprimidos. Essa é exatamente a razão por que a cultura ocidental vem aos poucos minando a dignidade do homem e despersonalizando-o.
A única cura genuína para o presente estado de coisas - diz Dooyeweerd - será a retomada de uma visão pura do homem como ser pessoal, integrado e espiritual. E isso só pode ser dado pela Palavra de Deus atuando no coração do homem. Mas para ser capaz de anunciar essa verdade de forma clara e transformadora o cristianismo precisará fazer escolhas, e a mais importante delas será a desistência dos métodos de acomodação – das tentativas de acoplar exteriormente a fé cristã a cosmovisões não cristãs como o existencialismo, o pós-modernismo, o socialismo, o liberalismo econômico ou o naturalismo, para citar apenas algumas. No campo das ideias, em especial, os cristãos deverão repensar os conceitos fundamentais e as teorias dominantes em cada disciplina, promovendo a sua reforma interna a partir da Palavra de Deus.
Há que se enfrentar com fôlego e coragem esse desafio. O próprio Dooyeweerd fundou, juntamente com diversos companheiros, uma associação de filosofia cristã e uma revista científica, até hoje em circulação. E na esteira de seu trabalho pioneiro filósofos e acadêmicos cristãos se levantaram nos mais diversos campos do conhecimento, como a ética, a ciência política, a história, a teoria estética, a psicologia ou a tecnologia da informação. Hoje o movimento da filosofia reformacional tornou-se uma comunidade internacional e produtiva – no julgamento de alguns, como o historiador americano George Marsden, a maior promessa para dar estabilidade e orientação para o cristianismo evangélico ocidental no século 21.
Cremos que o contato com a tradição reformacional – mais do que apenas com Dooyeweerd, que foi um de seus fundadores – é salutar para o cristianismo brasileiro, que ainda luta para ganhar maturidade. De fato já há no Brasil um movimento articulado e consciente da necessidade de diálogo com a cultura e responsabilidade social: o movimento da missão integral, com uma rica história de boas ideias e bons exemplos. A tradição reformacional pode contribuir com um poderoso influxo construtivo para a expansão dos horizontes teóricos e práticos da missão da igreja brasileira, e nos preparar melhor para pós-modernidade verde-e-amarela que já surge no horizonte.
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É teólogo, mestre em Ciências da Religião e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e presidente da Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares, é também organizador e autor de Cosmovisão Cristã e Transformação e membro fundador da Associação Brasileira Cristãos na Ciência (ABC2).
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