Opinião
- 16 de agosto de 2016
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Nem nas olimpíadas corpo (material) e alma (espiritual) se separam
Tempo de Olimpíadas. O que nos faz lembrar de muitos filmes que tratam, de um modo ou de outro, do tema do esporte. Dentre tantos, a deliciosa comédia “Jamaica abaixo de zero”, de 1993 (que trata de um fato – a história de como a caribenha Jamaica participou dos Jogos Olímpicos de Inverno no Canadá em 1988), o muito bom documentário “Todos os corações do mundo”, de 1995 (sobre a Copa do Mundo de 1994, na qual o Brasil quebrou um longo jejum de 24 anos sem título), o maravilhoso “Invictus”, de 2005, dirigido por Clint Eastwood (a meu ver, um dos dez melhores filmes de todos os tempos em qualquer categoria), e dramas, como o muito bom “Coach Carter – treino para a vida”, de 2005, que trata do basquete, e o recente filme brasileiro “Mais forte que o mundo – a história de José Aldo”, de 2016, que trata do MMA.
Mas gostaria de falar sobre outro, não tão recente, e que se tornou clássico: “Carruagens de fogo”, de 1981. O filme ganhou muitos prêmios: só Oscar, foram quatro (Melhor Filme, Melhor Trilha Sonora – assinada por Vangelis, nome artístico de um músico grego cujo nome é Evangélos Odisseas Papathanassiou – Melhor Roteiro Original e Melhor Figurino, em 1982), e ainda Melhor Filme no Globo de Ouro no mesmo ano e Melhor Filme no BAFTA (uma espécie de Oscar britânico), além de prêmios especiais no Festival de Cannes e no Festival de Toronto.
Por que falar sobre um filme antigo? Porque Carruagens de Fogo se tornou um clássico. Penso ser possível aplicar a filmes o que Ítalo Calvino1 (que não tem nada a ver com o João) disse sobre – livros – clássicos e, antes dele, C. S. Lewis (“On the reading of old books”, um dos ensaios da coletânea “God in the dock”, infelizmente ainda não disponível em português), disseram. Com argumentações diferentes ambos defenderam a importância de se ler textos clássicos. Não é necessário reproduzir aqui as argumentações dos dois pensadores. Pois como disse poucas linhas acima, parto do pressuposto que o argumentado pode ser aplicado a filmes. Sem dúvida, Carruagens de fogo se enquadra na seleta categoria dos filmes clássicos.
Carruagens de fogo apresenta a história de Eric Liddell (1902-1945), filho de missionários presbiterianos escoceses na China, ele próprio mais tarde missionário naquele país e, nas horas vagas, atleta olímpico2. Liddell era um presbiteriano de pura cepa, um homem de princípios inegociáveis: classificado para disputar as Olimpíadas de 1924, em Paris, recusou-se a correr os 100 metros rasos porque a disputa seria em um domingo. Para aqueles presbiterianos antigos o dia de descanso era algo muito sério. O filme menciona algumas vezes o Sabbath – não há corresponde direto para esta palavra em português. Sabbath não é exatamente o mesmo que Saturday, que é sábado. Sabbath tem um significado especificamente religioso, pois se refere ao dia de descanso, o dia do Senhor – no caso dos cristãos, o domingo. Como presbiteriano que era, Liddell levava muito a sério a tradição do Catecismo Maior de Westminster, que em suas perguntas 115-121 é muito estrito e severo quanto às proibições referentes ao Sabbath cristão, isto é, o domingo. Liddell “bateu o pé”, como popularmente se diz, não atendeu nem ao pedido do próprio Príncipe de Gales na época, e mesmo sendo chamado de traidor da pátria, não se deixou demover de sua decisão. Um de seus colegas trocou de lugar com ele, permitindo desta maneira que Liddel corresse os 400 metros rasos em uma quinta-feira. Resultado: ele ganhou a medalha de ouro. Naquela mesma Olimpíada seria ainda bronze nos 200 metros rasos.
O filme conta ainda a história de outro atleta da mesma equipe britânica de atletismo: Harold Abrahams (1899-1978), que corria por motivações completamente diferentes das de Liddell. Abrahams era judeu, filho de imigrantes lituanos. Era motivado por sua vaidade pessoal, uma carência emocional de ser considerado o melhor no que fazia, mas também que demonstrar que o fato de ser judeu não fazia dele menos capaz que nenhum anglo-saxão “puro sangue”. Naqueles mesmos jogos Abrahams conquistou a medalha de ouro nos 100 metros rasos.
A motivação de Liddell é completamente diferente. E aí está a meu ver o ponto culminante do filme. Em uma fala interessantíssima ele diz: I believe God made me for a purpose. For China. But he also made me fast. And when I run I feel His pleasure. To win is to honor Him – “Eu creio que Deus me fez com um propósito. Para a China. Mas ele também me fez veloz. E quando eu corro, eu sinto o Seu prazer. Vencer é honrá-lo”.
Há aí uma antropologia teológica fina, sofisticada, de nível elevadíssimo! A frase de Liddell ecoa um dito de Irineu de Lyon, do século segundo da era cristã, um dos mais notáveis entre os Pais da Igreja dentre os chamados Pais Polemistas (apesar de seu nome, que significa “pacífico”). Irineu tem uma antropologia positiva, quando afirma que “a glória de Deus é que o homem viva!” Sua frase é entendida no contexto de sua polêmica contra os gnósticos, que valorizavam o “espiritual”, desprezando o “material”. Milênios passados, e infelizmente nas igrejas evangélicas quase sempre predomina uma antropologia pessimista, de influência mais grega que judaico-cristã, que por isso valoriza mais a “alma” que o corpo. É preciso aprender com Irineu, e com Eric Liddell, que o corpo é importante e atividades aparentemente “não espirituais” são para a glória e a honra do Criador! Eric Liddell apresentou intuitivamente, em germe, avant la lettre, a ideia de uma teologia do corpo, uma teologia da alegria e do prazer, que seria, com outros contornos e por meio de outros caminhos teóricos, elaborada décadas mais tarde por pensadores como Rubem Alves.
É preciso também aprender com Eric Liddell que compromisso com Deus é algo a ser levado a sério. Não se entrará no mérito da discussão teológica se os “divines” de Westminster acertaram ou não em sua interpretação do quarto mandamento. Esta discussão fugiria aos objetivos da presente reflexão. O que convém refletir é que Liddell agiu como os jovens hebreus levados para a Babilônia e não abriu mão de seu compromisso de fidelidade ao seu Deus. Ele não permitiu concessões. Sua firmeza de propósito impressionou a Europa em seu tempo. E se constitui em exemplo e desafio até os dias de hoje.
Depois das Olimpíadas de 24 Liddell voltou para a China, onde fora criado, para exercer a obra missionária. Casou-se com uma cidadã canadense de origem escocesa, e o casal teve três filhas. Quando o Japão invadiu a China, Liddell conseguiu que a esposa e as filhas fossem evacuadas para o Canadá. Ele poderia ter saído também, mas preferiu ficar no campo missionário. Foi levado para um campo de prisioneiros, no qual os japoneses mantinham estrangeiros, europeus e norte-americanos. Conforme o relato de Duncan Hamilton, autor da mais recente biografia de Liddell, vários sobreviventes daquele campo de prisioneiros relataram como Liddell tornou-se querido de todos por servir a todos, sem exceção. Lá veio a falecer, por ter contraído febre tifoide. Não sem razão alguns consideram Liddell um mártir cristão do século XX3.
Carruagens de fogo é um filme bem conduzido, que emociona (se bem que algumas vezes um tanto lento na narrativa), e que apresenta desafios sérios aos cristãos de todos os tempos: viver a vida, ter prazer, não estabelecer dicotomia entre material e “espiritual”, servir ao próximo, levar o compromisso cristão a sério.
Notas:
1 Por que ler os clássicos. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
2 Para uma versão animada da vida de Liddel, dublada em português, clique aqui.
3 Duncan Hamilton. For the Glory: Eric Liddell’s Journey from Olympic Champion to Modern Martyr. London: Penguin Books, 2016.
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A alma sem corpo é fantasma e o corpo sem alma é defunto
Cartas Entre Freud e Pfister
Mas gostaria de falar sobre outro, não tão recente, e que se tornou clássico: “Carruagens de fogo”, de 1981. O filme ganhou muitos prêmios: só Oscar, foram quatro (Melhor Filme, Melhor Trilha Sonora – assinada por Vangelis, nome artístico de um músico grego cujo nome é Evangélos Odisseas Papathanassiou – Melhor Roteiro Original e Melhor Figurino, em 1982), e ainda Melhor Filme no Globo de Ouro no mesmo ano e Melhor Filme no BAFTA (uma espécie de Oscar britânico), além de prêmios especiais no Festival de Cannes e no Festival de Toronto.
Por que falar sobre um filme antigo? Porque Carruagens de Fogo se tornou um clássico. Penso ser possível aplicar a filmes o que Ítalo Calvino1 (que não tem nada a ver com o João) disse sobre – livros – clássicos e, antes dele, C. S. Lewis (“On the reading of old books”, um dos ensaios da coletânea “God in the dock”, infelizmente ainda não disponível em português), disseram. Com argumentações diferentes ambos defenderam a importância de se ler textos clássicos. Não é necessário reproduzir aqui as argumentações dos dois pensadores. Pois como disse poucas linhas acima, parto do pressuposto que o argumentado pode ser aplicado a filmes. Sem dúvida, Carruagens de fogo se enquadra na seleta categoria dos filmes clássicos.
Carruagens de fogo apresenta a história de Eric Liddell (1902-1945), filho de missionários presbiterianos escoceses na China, ele próprio mais tarde missionário naquele país e, nas horas vagas, atleta olímpico2. Liddell era um presbiteriano de pura cepa, um homem de princípios inegociáveis: classificado para disputar as Olimpíadas de 1924, em Paris, recusou-se a correr os 100 metros rasos porque a disputa seria em um domingo. Para aqueles presbiterianos antigos o dia de descanso era algo muito sério. O filme menciona algumas vezes o Sabbath – não há corresponde direto para esta palavra em português. Sabbath não é exatamente o mesmo que Saturday, que é sábado. Sabbath tem um significado especificamente religioso, pois se refere ao dia de descanso, o dia do Senhor – no caso dos cristãos, o domingo. Como presbiteriano que era, Liddell levava muito a sério a tradição do Catecismo Maior de Westminster, que em suas perguntas 115-121 é muito estrito e severo quanto às proibições referentes ao Sabbath cristão, isto é, o domingo. Liddell “bateu o pé”, como popularmente se diz, não atendeu nem ao pedido do próprio Príncipe de Gales na época, e mesmo sendo chamado de traidor da pátria, não se deixou demover de sua decisão. Um de seus colegas trocou de lugar com ele, permitindo desta maneira que Liddel corresse os 400 metros rasos em uma quinta-feira. Resultado: ele ganhou a medalha de ouro. Naquela mesma Olimpíada seria ainda bronze nos 200 metros rasos.
O filme conta ainda a história de outro atleta da mesma equipe britânica de atletismo: Harold Abrahams (1899-1978), que corria por motivações completamente diferentes das de Liddell. Abrahams era judeu, filho de imigrantes lituanos. Era motivado por sua vaidade pessoal, uma carência emocional de ser considerado o melhor no que fazia, mas também que demonstrar que o fato de ser judeu não fazia dele menos capaz que nenhum anglo-saxão “puro sangue”. Naqueles mesmos jogos Abrahams conquistou a medalha de ouro nos 100 metros rasos.
A motivação de Liddell é completamente diferente. E aí está a meu ver o ponto culminante do filme. Em uma fala interessantíssima ele diz: I believe God made me for a purpose. For China. But he also made me fast. And when I run I feel His pleasure. To win is to honor Him – “Eu creio que Deus me fez com um propósito. Para a China. Mas ele também me fez veloz. E quando eu corro, eu sinto o Seu prazer. Vencer é honrá-lo”.
Há aí uma antropologia teológica fina, sofisticada, de nível elevadíssimo! A frase de Liddell ecoa um dito de Irineu de Lyon, do século segundo da era cristã, um dos mais notáveis entre os Pais da Igreja dentre os chamados Pais Polemistas (apesar de seu nome, que significa “pacífico”). Irineu tem uma antropologia positiva, quando afirma que “a glória de Deus é que o homem viva!” Sua frase é entendida no contexto de sua polêmica contra os gnósticos, que valorizavam o “espiritual”, desprezando o “material”. Milênios passados, e infelizmente nas igrejas evangélicas quase sempre predomina uma antropologia pessimista, de influência mais grega que judaico-cristã, que por isso valoriza mais a “alma” que o corpo. É preciso aprender com Irineu, e com Eric Liddell, que o corpo é importante e atividades aparentemente “não espirituais” são para a glória e a honra do Criador! Eric Liddell apresentou intuitivamente, em germe, avant la lettre, a ideia de uma teologia do corpo, uma teologia da alegria e do prazer, que seria, com outros contornos e por meio de outros caminhos teóricos, elaborada décadas mais tarde por pensadores como Rubem Alves.
É preciso também aprender com Eric Liddell que compromisso com Deus é algo a ser levado a sério. Não se entrará no mérito da discussão teológica se os “divines” de Westminster acertaram ou não em sua interpretação do quarto mandamento. Esta discussão fugiria aos objetivos da presente reflexão. O que convém refletir é que Liddell agiu como os jovens hebreus levados para a Babilônia e não abriu mão de seu compromisso de fidelidade ao seu Deus. Ele não permitiu concessões. Sua firmeza de propósito impressionou a Europa em seu tempo. E se constitui em exemplo e desafio até os dias de hoje.
Depois das Olimpíadas de 24 Liddell voltou para a China, onde fora criado, para exercer a obra missionária. Casou-se com uma cidadã canadense de origem escocesa, e o casal teve três filhas. Quando o Japão invadiu a China, Liddell conseguiu que a esposa e as filhas fossem evacuadas para o Canadá. Ele poderia ter saído também, mas preferiu ficar no campo missionário. Foi levado para um campo de prisioneiros, no qual os japoneses mantinham estrangeiros, europeus e norte-americanos. Conforme o relato de Duncan Hamilton, autor da mais recente biografia de Liddell, vários sobreviventes daquele campo de prisioneiros relataram como Liddell tornou-se querido de todos por servir a todos, sem exceção. Lá veio a falecer, por ter contraído febre tifoide. Não sem razão alguns consideram Liddell um mártir cristão do século XX3.
Carruagens de fogo é um filme bem conduzido, que emociona (se bem que algumas vezes um tanto lento na narrativa), e que apresenta desafios sérios aos cristãos de todos os tempos: viver a vida, ter prazer, não estabelecer dicotomia entre material e “espiritual”, servir ao próximo, levar o compromisso cristão a sério.
Notas:
1 Por que ler os clássicos. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
2 Para uma versão animada da vida de Liddel, dublada em português, clique aqui.
3 Duncan Hamilton. For the Glory: Eric Liddell’s Journey from Olympic Champion to Modern Martyr. London: Penguin Books, 2016.
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A alma sem corpo é fantasma e o corpo sem alma é defunto
Cartas Entre Freud e Pfister
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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