Opinião
- 31 de outubro de 2014
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Nem clero, nem leigo
No decorrer da Idade Média, a igreja cristã na Europa organizou-se em paróquias. Esta estrutura perdurou por mais de um milênio com igrejas edificadas no centro de vilas e cidades e com a vida de sua população gravitando em torno delas.
Este modelo de igreja não foi modificado pela Reforma do século 16. Assim o encontramos, tanto na Rússia ortodoxa, na Itália católica, na Inglaterra anglicana, na Suíça presbiteriana como na Alemanha luterana. Ele alicerçava-se na divisão entre clero e leigos. As diferentes confissões não alterariam o fato básico de que em todas elas o clero “produz espiritualidade” e leigos a “consomem” (MALM, Magnus, Vägvisare, 2a ed, 1991,26s.). Isto prestigiava os “reverendos” e era normal eles serem convidados como “autoridades religiosas” para solenidades.
Entrementes, porém, este cenário mudou. As igrejas ainda continuam nas praças centrais, mas já não desempenham o papel de outrora. Quanto maior a cidade, mais adiantada a sua marginalização. Os shoppings e outros espaços de lazer e consumo tomaram o seu lugar. Os pastores e padres, quando muito, são “reverendos” para as suas congregações. O pluralismo cultural e religioso faz com que uma infinidade mensagens concorra com seus sermões dominicais.
Nesta progressiva corrosão do modelo paroquial, pastores e padres se veem cada vez mais expostos a uma “opressão da performance” (EGG, Tuco, Igreja entre aspas, 2011, p.42): diante do encolhimento do público nas celebrações, eles são cobrados para fazer a igreja navegar de vento em popa como outrora. E isto gera desencanto, estresse e frustração.
Será que a Reforma iniciada com Martinho Lutero nos pode ensinar algo neste ambiente acuado?
Os reformadores viviam em outro tempo e enfrentaram outras dificuldades. Por isso as propostas deles não respondem necessariamente a nossas perguntas e angústias. Mesmo assim, vale a pena sondar se o seu horizonte não se comunica em algum ponto com o nosso. Podemos ousar fazê-lo, porque o Deus trino continua o mesmo. Por dependermos do mesmo evangelho da graça de Jesus Cristo, podemos e devemos procurar aprender das suas testemunhas no passado.
Lutero é muito elogiado pelo que ensinou acerca do sacerdócio geral dos crentes. Mas isto praticamente ficou sem efeito por permanecer na sombra da pesada herança paroquial. Na prática, também as igrejas evangélicas continuaram divididas em duas classes de cristãos – clero e leigos – e, por isso, esqueceram o que o reformador alemão concluíra do evangelho.
Agora, porém, que o modelo paroquial vai-se esvaindo, redescobrimos que, ao insistir o sacerdócio de todos os crentes, Lutero, na verdade, questionou a legitimidade da segmentação da igreja em clero e leigos:
“Se perguntas qual seria, então, a diferença entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes, a resposta é: cometeu-se uma injustiça com as palavras “sacerdote”, “cura”, “religioso” e outras semelhantes, quando o povo em geral foi delas excluído, para serem atribuídas a um pequeno grupo (...) A Sagrada Escritura não conhece nenhuma outra distinção do que aquela de nomear os instruídos e ordenados como (...) servidores, servos e administradores, cuja missão consiste em pregar à demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã.” (LUTERO: Da Liberdade Cristã, 5a ed., 1998, p.25s.)
O motivo de Lutero considerar esta divisão entre leigos e clero uma injustiça reside na justificação por graça: quem foi resgatado do pecado pela morte e ressurreição de Jesus participa do reinado e do sacerdócio dele. Jesus foi elevado à direita de Deus e se tornou Senhor de “céus e terra” (Mt 28.18s.; Fp 2.9ss.). Por seu sacrifício, ele – como o verdadeiro sacerdote – intercede (cf. Hb 8-9) por nós diante do Pai e nos ensina o seu amor gracioso. Portanto, quem crer nele participa deste seu senhorio e sacerdócio. Ninguém jamais poderá privá-lo do amor de Deus (Rm 8.28ss.). Todo crente tem acesso direto ao trono da graça e, por isso, pode interceder por seus irmãos e ensiná-los. Assim Jesus, o único mediador (1 Tm 2.5), capacita e envia todos os seus seguidores para que levem o evangelho mundo afora.
Nesta participação do senhorio e do sacerdócio de Jesus reside a liberdade cristã. Mesmo sem modificar a estrutura paroquial, Lutero não deixou margem para dúvidas: a missão de “pregar a demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã” é dever de cada cristão.
“Pois num caso destes um cristão enxerga em amor fraternal a necessidade das pobres almas em perigo, e não espera que (...) bispos lhe deem ordem ou cartas. Porque a necessidade rompe todas as leis e não tem lei.” (LUTERO: Pelo Evangelho de Cristo, 1994, p. 198).
Assim entendo que podemos aprender do Reformador que somos chamados a vivenciar nosso sacerdócio em nossa sociedade secularizada e pluralista. Nesta caminhada é importante observarmos:
1. Para aprender a testemunhar a fé na sociedade pós-cristã precisamos abrir espaço para compartilhar dificuldades e experiências. Nossos cultos e reuniões precisam tornar-se um lugar de ensino mútuo. Não o aprenderemos com quem não convive no mundo secularizado. Assim encorajados e confiantes no Espírito Santo, ousemos falar do evangelho em nossas casas, no trabalho e onde quer que convivamos com “pobres almas em perigo”.
2. Quando uma igreja começa a exercitar o sacerdócio geral, também o papel do pastor muda. Ele passa a fazer retaguarda aos que estão na vanguarda, à semelhança do que fez a Dra. Zilda Arns na Pastoral da Criança. Em vez de monopolizar, como pediatra que era, o tratamento de crianças doentes, ela priorizou capacitar agentes de saúde e, assim, reverteu o quadro de mortalidade infantil no Brasil.
3. Por fim, precisamos lembrar que luteranos e reformados não são os únicos herdeiros da Reforma. Há outros exercitando-se neste “sacerdócio”, como se pode depreender das palavras de Eliezer Morais, pastor da Assembleia de Deus, num debate na Rádio Gaúcha em Porto Alegre no dia 02 de julho de 2012:
• Martin Weingaertner, nascido em Santa Catarina (1949), é diretor da Faculdade de Teo-logia Evangélica em Curitiba (FATEV) e editor do devocionário “Orando em Família”. Seu casamento com Ursula foi abençoado com 5 filhos e 8 netos.
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Este modelo de igreja não foi modificado pela Reforma do século 16. Assim o encontramos, tanto na Rússia ortodoxa, na Itália católica, na Inglaterra anglicana, na Suíça presbiteriana como na Alemanha luterana. Ele alicerçava-se na divisão entre clero e leigos. As diferentes confissões não alterariam o fato básico de que em todas elas o clero “produz espiritualidade” e leigos a “consomem” (MALM, Magnus, Vägvisare, 2a ed, 1991,26s.). Isto prestigiava os “reverendos” e era normal eles serem convidados como “autoridades religiosas” para solenidades.
Entrementes, porém, este cenário mudou. As igrejas ainda continuam nas praças centrais, mas já não desempenham o papel de outrora. Quanto maior a cidade, mais adiantada a sua marginalização. Os shoppings e outros espaços de lazer e consumo tomaram o seu lugar. Os pastores e padres, quando muito, são “reverendos” para as suas congregações. O pluralismo cultural e religioso faz com que uma infinidade mensagens concorra com seus sermões dominicais.
Nesta progressiva corrosão do modelo paroquial, pastores e padres se veem cada vez mais expostos a uma “opressão da performance” (EGG, Tuco, Igreja entre aspas, 2011, p.42): diante do encolhimento do público nas celebrações, eles são cobrados para fazer a igreja navegar de vento em popa como outrora. E isto gera desencanto, estresse e frustração.
Será que a Reforma iniciada com Martinho Lutero nos pode ensinar algo neste ambiente acuado?
Os reformadores viviam em outro tempo e enfrentaram outras dificuldades. Por isso as propostas deles não respondem necessariamente a nossas perguntas e angústias. Mesmo assim, vale a pena sondar se o seu horizonte não se comunica em algum ponto com o nosso. Podemos ousar fazê-lo, porque o Deus trino continua o mesmo. Por dependermos do mesmo evangelho da graça de Jesus Cristo, podemos e devemos procurar aprender das suas testemunhas no passado.
Lutero é muito elogiado pelo que ensinou acerca do sacerdócio geral dos crentes. Mas isto praticamente ficou sem efeito por permanecer na sombra da pesada herança paroquial. Na prática, também as igrejas evangélicas continuaram divididas em duas classes de cristãos – clero e leigos – e, por isso, esqueceram o que o reformador alemão concluíra do evangelho.
Agora, porém, que o modelo paroquial vai-se esvaindo, redescobrimos que, ao insistir o sacerdócio de todos os crentes, Lutero, na verdade, questionou a legitimidade da segmentação da igreja em clero e leigos:
“Se perguntas qual seria, então, a diferença entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes, a resposta é: cometeu-se uma injustiça com as palavras “sacerdote”, “cura”, “religioso” e outras semelhantes, quando o povo em geral foi delas excluído, para serem atribuídas a um pequeno grupo (...) A Sagrada Escritura não conhece nenhuma outra distinção do que aquela de nomear os instruídos e ordenados como (...) servidores, servos e administradores, cuja missão consiste em pregar à demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã.” (LUTERO: Da Liberdade Cristã, 5a ed., 1998, p.25s.)
O motivo de Lutero considerar esta divisão entre leigos e clero uma injustiça reside na justificação por graça: quem foi resgatado do pecado pela morte e ressurreição de Jesus participa do reinado e do sacerdócio dele. Jesus foi elevado à direita de Deus e se tornou Senhor de “céus e terra” (Mt 28.18s.; Fp 2.9ss.). Por seu sacrifício, ele – como o verdadeiro sacerdote – intercede (cf. Hb 8-9) por nós diante do Pai e nos ensina o seu amor gracioso. Portanto, quem crer nele participa deste seu senhorio e sacerdócio. Ninguém jamais poderá privá-lo do amor de Deus (Rm 8.28ss.). Todo crente tem acesso direto ao trono da graça e, por isso, pode interceder por seus irmãos e ensiná-los. Assim Jesus, o único mediador (1 Tm 2.5), capacita e envia todos os seus seguidores para que levem o evangelho mundo afora.
Nesta participação do senhorio e do sacerdócio de Jesus reside a liberdade cristã. Mesmo sem modificar a estrutura paroquial, Lutero não deixou margem para dúvidas: a missão de “pregar a demais pessoas Cristo, a fé e a liberdade cristã” é dever de cada cristão.
“Pois num caso destes um cristão enxerga em amor fraternal a necessidade das pobres almas em perigo, e não espera que (...) bispos lhe deem ordem ou cartas. Porque a necessidade rompe todas as leis e não tem lei.” (LUTERO: Pelo Evangelho de Cristo, 1994, p. 198).
Assim entendo que podemos aprender do Reformador que somos chamados a vivenciar nosso sacerdócio em nossa sociedade secularizada e pluralista. Nesta caminhada é importante observarmos:
1. Para aprender a testemunhar a fé na sociedade pós-cristã precisamos abrir espaço para compartilhar dificuldades e experiências. Nossos cultos e reuniões precisam tornar-se um lugar de ensino mútuo. Não o aprenderemos com quem não convive no mundo secularizado. Assim encorajados e confiantes no Espírito Santo, ousemos falar do evangelho em nossas casas, no trabalho e onde quer que convivamos com “pobres almas em perigo”.
2. Quando uma igreja começa a exercitar o sacerdócio geral, também o papel do pastor muda. Ele passa a fazer retaguarda aos que estão na vanguarda, à semelhança do que fez a Dra. Zilda Arns na Pastoral da Criança. Em vez de monopolizar, como pediatra que era, o tratamento de crianças doentes, ela priorizou capacitar agentes de saúde e, assim, reverteu o quadro de mortalidade infantil no Brasil.
3. Por fim, precisamos lembrar que luteranos e reformados não são os únicos herdeiros da Reforma. Há outros exercitando-se neste “sacerdócio”, como se pode depreender das palavras de Eliezer Morais, pastor da Assembleia de Deus, num debate na Rádio Gaúcha em Porto Alegre no dia 02 de julho de 2012:
“Proclamamos o que herdamos da Reforma: a salvação somente pela graça, fé e Escrituras. Não clericalizamos a liturgia, trabalhamos com simplicidade, envolvidos com a realidade do povo brasileiro e fazemos com que os fiéis leiam a Bíblia” .
• Martin Weingaertner, nascido em Santa Catarina (1949), é diretor da Faculdade de Teo-logia Evangélica em Curitiba (FATEV) e editor do devocionário “Orando em Família”. Seu casamento com Ursula foi abençoado com 5 filhos e 8 netos.
Leia também
A Reforma Protestante ainda nos ajuda hoje?
Solus Christus
Sola Gratia
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