Prateleira
- 12 de fevereiro de 2007
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Morreu um menino. Morrerão outros...
Prateleira é um espaço editorial. Aqui, em especial, relacionamos as Escrituras com notícias. Trabalhamos para criar uma mentalidade bíblica e desenvolver a arte de encarar os acontecimentos sob a ótica cristã.
Hoje abrimos exceção. O espaço deixa de ser editorial, mas sua função permanece. A propósito da barbárie que todos acompanhamos na última semana, nos indignamos junto com Ricardo Gondim.
Ira
por Ricardo Gondim
Sou pastor de uma comunidade cristã em São Paulo; lidero uma rede de igrejas espalhadas pelo Brasil, somando entre 20 e 25 mil pessoas; conduzo um programa de rádio diário também em São Paulo; escrevo para duas revistas de circulação nacional e, porque mantenho um site na internet, sinto-me membro da novíssima comunidade dos blogueiros.
Apesar disso, minha capacidade transformadora é pífia. Minha voz, semelhante a de milhões de brasileiros, não representa quase nada; não sou conhecido das elites, nunca estive na presença de um presidente da república e jamais usei um passaporte diplomático.
Partilho do sentimento de impotência que toma conta dos meus irmãos. Sinto-me frustrado, revoltado, irado, indignado, sei lá que expressão usar, com tudo o que ocorre na minha terra.
Assisti a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado com uma vontade louca de comprar um megafone, ir para a Brasília, e ficar gritando palavrões em plena praça pública. Tive impulso de chamar aqueles políticos arrumadinhos, empertigados dentro de seus ternos novíssimos, posando, feito jacus, para fotografias, com as palavras mais chulas da gíria portuguesa. Entendo que o jogo político é necessário; sei que disputas de poder acontecem em todas as instituições; compreendo que “ruim com os deputados, pior sem eles”.
Ninguém precisa me dar aula de democracia (sou filho de um preso político na ditadura e sei o horror dos tiranos), mas, mesmo reconhecendo a necessidade das instituições, fiquei vermelho de raiva com a inauguração do novo Congresso. Vejo meu país sangrando e os mesmos chavões sendo repetidos. Sinto que vivemos em meio a um desdém aviltante.
Ninguém mais se lembra da aluna de uma universidade do Rio de Janeiro, vítima de uma bala perdida, e que ficou tetraplégica; ninguém mais se lembra daquele senhor que chorava enquanto desenterravam seu filho de debaixo da cama de um soldado da Polícia Militar; ninguém mais se lembra da fotografia de uma adolescente se prostituindo, sentada no colo de um velho nojento do Amazonas; ninguém mais se lembra das mães que enterraram seus filhos, mortos por falta de asseio numa Unidade de Tratamento Intensivo de um hospital público. Dois dias depois das tragédias, chegam outros sinistros mais pavorosos e vamos nos acostumando; de horror em horror chegaremos no inferno preparado pelos próprios brasileiros.
Querem saber? Chega...
Para mim chega, já que os evangélicos degringolaram e hoje a grande maioria dos freqüentadores dos cultos é composta de pessoas infantilizadas pela religião; noto que o movimento do qual já fiz parte não se importa com a justiça nacional, não chora com os que choram e não defende o direito dos mais frágeis. Eles se reúnem em seus auditórios com uma única preocupação: acessar o divino, para se safarem.
Para mim chega, já que vejo a elite burguesa se locupletando há séculos, sem que ninguém consiga fazê-la mudar. Ela é preguiçosa, mesquinha, egoísta e insensível à miséria que vive do outro do lado do muro de seus condomínios. A elite brasileira se preocupa prioritariamente em blindar seus carros, freqüentar desfiles de moda breguíssimos em shoppings centers, freqüentar os mesmos cabeleireiros badalados e caros das modelos analfabetas, sair, feito “papagaio de pirata”, nas páginas das revistas de fofoca e comprar roupas em Miami. Ela não está nem aí para a miséria que cresce sem parar.
Para mim chega, já que os intelectuais nacionais atolaram na irrelevância de seu esnobismo; trancaram-se em suas torres de marfim, com textos herméticos e propostas mirabolantes e inúteis dos teóricos de direita ou de esquerda.
Imóvel e impotente, tenho vontade de chutar o mastro central desse grande circo de lona rasgada chamado Brasil.
Não passamos de um povinho sem sangue nos olhos, uma nação sem brios.
Faltam poucos dias para o país parar de novo para ver as escolas de samba, patrocinadas pelo tráfico, desfilarem a nudez das mulheres mais deslumbrantes que nossa raça produziu.
Os poucos gringos com uma libido maior que o medo de morrer, vão babar. E nós, sentaremos em nossas poltronas por quatro dias, embriagados de cerveja e sexo esqueceremos que já perdemos nossa alma.
Morreu um menino e estou com asco dos brasileiros que elegeram o Clodovil, o Maluf, o Genoíno, o Palocci, o Collor, o Sarney e toda aquela farsa chamada de Congresso Nacional. Sinto náuseas e o meu inferno são os próprios brasileiros.
Morreu um menino e não posso dormir sem antes dizer que, se pudesse, diria aos meus patrícios que a nossa perversidade está transbordando a medida da ira divina.
Morreu um menino, mas o pior ainda está por vir.
Morrerão muitos outros e continuarão as mesas redondas de idiotas discutindo as fofocas do futebol.
Morrerão muitos outros e a Daslu continuará vendendo calças jeans de 2 mil dólares.
Morrerão muitos outros e alguns poucos continuarão tomando vinho de 7 mil dólares em banquetes faustosos.
Morrerão muitos outros e os pastores continuarão prometendo abrir portas de emprego para quem der dinheiro em seus cultos.
Cansei do deboche e não sei o que fazer. Estou revoltado com o cinismo e não sei para onde me voltar.
Antes que esqueça: o nome do menino era João Hélio e seus pais ainda estão chorando muito...
Soli Deo Gloria.
Leia o livro
• Excelentíssimos Senhores, de Rubem Amorese
Leia mais
• Paternidade e Ira Urbana, de Rubem Amorese
Hoje abrimos exceção. O espaço deixa de ser editorial, mas sua função permanece. A propósito da barbárie que todos acompanhamos na última semana, nos indignamos junto com Ricardo Gondim.
Ira
por Ricardo Gondim
Sou pastor de uma comunidade cristã em São Paulo; lidero uma rede de igrejas espalhadas pelo Brasil, somando entre 20 e 25 mil pessoas; conduzo um programa de rádio diário também em São Paulo; escrevo para duas revistas de circulação nacional e, porque mantenho um site na internet, sinto-me membro da novíssima comunidade dos blogueiros.
Apesar disso, minha capacidade transformadora é pífia. Minha voz, semelhante a de milhões de brasileiros, não representa quase nada; não sou conhecido das elites, nunca estive na presença de um presidente da república e jamais usei um passaporte diplomático.
Partilho do sentimento de impotência que toma conta dos meus irmãos. Sinto-me frustrado, revoltado, irado, indignado, sei lá que expressão usar, com tudo o que ocorre na minha terra.
Assisti a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado com uma vontade louca de comprar um megafone, ir para a Brasília, e ficar gritando palavrões em plena praça pública. Tive impulso de chamar aqueles políticos arrumadinhos, empertigados dentro de seus ternos novíssimos, posando, feito jacus, para fotografias, com as palavras mais chulas da gíria portuguesa. Entendo que o jogo político é necessário; sei que disputas de poder acontecem em todas as instituições; compreendo que “ruim com os deputados, pior sem eles”.
Ninguém precisa me dar aula de democracia (sou filho de um preso político na ditadura e sei o horror dos tiranos), mas, mesmo reconhecendo a necessidade das instituições, fiquei vermelho de raiva com a inauguração do novo Congresso. Vejo meu país sangrando e os mesmos chavões sendo repetidos. Sinto que vivemos em meio a um desdém aviltante.
Ninguém mais se lembra da aluna de uma universidade do Rio de Janeiro, vítima de uma bala perdida, e que ficou tetraplégica; ninguém mais se lembra daquele senhor que chorava enquanto desenterravam seu filho de debaixo da cama de um soldado da Polícia Militar; ninguém mais se lembra da fotografia de uma adolescente se prostituindo, sentada no colo de um velho nojento do Amazonas; ninguém mais se lembra das mães que enterraram seus filhos, mortos por falta de asseio numa Unidade de Tratamento Intensivo de um hospital público. Dois dias depois das tragédias, chegam outros sinistros mais pavorosos e vamos nos acostumando; de horror em horror chegaremos no inferno preparado pelos próprios brasileiros.
Querem saber? Chega...
Para mim chega, já que os evangélicos degringolaram e hoje a grande maioria dos freqüentadores dos cultos é composta de pessoas infantilizadas pela religião; noto que o movimento do qual já fiz parte não se importa com a justiça nacional, não chora com os que choram e não defende o direito dos mais frágeis. Eles se reúnem em seus auditórios com uma única preocupação: acessar o divino, para se safarem.
Para mim chega, já que vejo a elite burguesa se locupletando há séculos, sem que ninguém consiga fazê-la mudar. Ela é preguiçosa, mesquinha, egoísta e insensível à miséria que vive do outro do lado do muro de seus condomínios. A elite brasileira se preocupa prioritariamente em blindar seus carros, freqüentar desfiles de moda breguíssimos em shoppings centers, freqüentar os mesmos cabeleireiros badalados e caros das modelos analfabetas, sair, feito “papagaio de pirata”, nas páginas das revistas de fofoca e comprar roupas em Miami. Ela não está nem aí para a miséria que cresce sem parar.
Para mim chega, já que os intelectuais nacionais atolaram na irrelevância de seu esnobismo; trancaram-se em suas torres de marfim, com textos herméticos e propostas mirabolantes e inúteis dos teóricos de direita ou de esquerda.
Imóvel e impotente, tenho vontade de chutar o mastro central desse grande circo de lona rasgada chamado Brasil.
Não passamos de um povinho sem sangue nos olhos, uma nação sem brios.
Faltam poucos dias para o país parar de novo para ver as escolas de samba, patrocinadas pelo tráfico, desfilarem a nudez das mulheres mais deslumbrantes que nossa raça produziu.
Os poucos gringos com uma libido maior que o medo de morrer, vão babar. E nós, sentaremos em nossas poltronas por quatro dias, embriagados de cerveja e sexo esqueceremos que já perdemos nossa alma.
Morreu um menino e estou com asco dos brasileiros que elegeram o Clodovil, o Maluf, o Genoíno, o Palocci, o Collor, o Sarney e toda aquela farsa chamada de Congresso Nacional. Sinto náuseas e o meu inferno são os próprios brasileiros.
Morreu um menino e não posso dormir sem antes dizer que, se pudesse, diria aos meus patrícios que a nossa perversidade está transbordando a medida da ira divina.
Morreu um menino, mas o pior ainda está por vir.
Morrerão muitos outros e continuarão as mesas redondas de idiotas discutindo as fofocas do futebol.
Morrerão muitos outros e a Daslu continuará vendendo calças jeans de 2 mil dólares.
Morrerão muitos outros e alguns poucos continuarão tomando vinho de 7 mil dólares em banquetes faustosos.
Morrerão muitos outros e os pastores continuarão prometendo abrir portas de emprego para quem der dinheiro em seus cultos.
Cansei do deboche e não sei o que fazer. Estou revoltado com o cinismo e não sei para onde me voltar.
Antes que esqueça: o nome do menino era João Hélio e seus pais ainda estão chorando muito...
Soli Deo Gloria.
Leia o livro
• Excelentíssimos Senhores, de Rubem Amorese
Leia mais
• Paternidade e Ira Urbana, de Rubem Amorese
Autor de Eu Creio, Mas Tenho Dúvidas, O Que os Evangélicos (não) Falam e Orgulho de Ser evangélico, Ricardo Gondim, casado, três filhos, é pastor da Assembléia de Deus Betesda, em São Paulo, e presidente do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos. É conferencista e autor de, entre outros, É Proibido (Mundo Cristão) e Artesãos de Uma Nova História (Candeia).
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