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Opinião

Miracle workers

Por que situações que, imaginamos, se atendidas, redundarão em libertação para quem as faz, e em louvor e adoração a Deus, não são atendidas?

Por Carlos Caldas

Miracle Workers é uma série televisiva disponibilizada pelo canal de streaming HBO. No Brasil optou-se por não traduzir o título, que literalmente significa “Operadores (ou “fazedores”) de milagres”. No português popular, “milagreiros”. Em um português erudito, “taumaturgos”. A série tem sete episódios curtos, com cerca de vinte minutos de duração cada, e tem no elenco dois astros famosos: Daniel Radcliffe (que interpretou Harry Potter) e Steve Buscemi. Com certeza a série incomodará e desagradará muita gente, porque traz em seu núcleo um elemento religioso, que é apresentado da maneira mais irreverente e esculhambada que se possa imaginar. Não poucos serão os que a tomarão por sacrílega, ou até mesmo blasfema. A série é a adaptação do livro What in God’s Name1 ainda não traduzido para o português, do autor Simon Rich. Como não li o livro, não sei se a adaptação é ou não fiel ao original que a inspirou.

A síntese do enredo é a seguinte: Deus (interpretado por Steve Buscemi) comanda o céu, que é apresentado como uma grande corporação que determina todos os acontecimentos da natureza e das vidas das pessoas. Só que ele está preocupado apenas em se dedicar aos seus hobbies (como aprender a jogar golfe) e em saber o que as pessoas estão dizendo a seu respeito. O Deus de Miracle Workers é literalmente o deus otiosus2. A “Corporação Céu” tem departamentos conduzidos por anjos que são responsáveis por tudo que acontece na terra. As pessoas que morrem vão para este “céu”, transformam-se em anjos e são designadas para trabalhar nos muitos departamentos que há lá. Deus não está nem um pouco preocupado ou interessado em nada que acontece na terra. Dentre os tantos departamentos do céu há o que se dedica a responder as orações. Tudo é muito burocrático: Craig (interpretado por Daniel Redcliffe), o anjo responsável por aquele setor, recebe os pedidos de oração em um cartão, e por uma tela de televisão vê a pessoa na terra que fez aquele pedido. Operando computadores ele decide o que fazer quanto ao pedido, e bate um carimbo no cartão, de acordo com o resultado obtido: atendido ou negado. Muitos pedidos recebem o carimbo “Impossível”. Ele está ali há milhares de anos, até que recebe a visita de Eliza (interpretada pela jovem atriz Geraldine Viswanathan, que é australiana de origem indiana) que, cansada de trabalhar no departamento de sujeira, resolve por sua própria conta fazer o que a faria se sentir realizada. Por isso resolve ir para o departamento de orações, e vai ajudar Craig. Enquanto isso, cansado do mundo, Deus resolve que vai explodir a terra, e abrir um restaurante em uma galáxia distante3. Querendo salvar o planeta, Eliza faz uma aposta com Deus: se ela e Craig conseguissem atender a uma oração impossível em uma semana, o mundo seria poupado. Deus aceita a aposta, e a partir daí acontece uma sequência de situações, uma mais nonsense, absurda, sem sentido, sem lógica, sem noção e ridícula que a outra. No caso, a oração impossível de ser atendida seria a de fazer com que um rapaz muito tímido e a moça de quem ele gostava ficassem juntos. Talvez pelo fato de serem episódios muito curtos, todos os diálogos são muito rápidos (os atores e atrizes falam rápido como metralhadoras disparando), e como são muitos, um atrás do outro, a velocidade da sequência não deixa muito tempo para o espectador digerir o que está recebendo.

Mas engana-se quem pensa que Miracle Workers é apenas uma sequência de situações sem noção e diálogos absurdos. Há camadas mais profundas na narrativa. Uma leitura superficial da série irá ressaltar apenas que pessoas com sensibilidade religiosa ficarão incomodadas pela maneira com que o sagrado é retratado. Mas acontece que Miracle Workers “entrega” mais do que aparenta.



A série provoca uma reflexão sobre um problema teológico dificílimo – a oração. Cada vez mais concordo com C. S. Lewis, que disse que de todos os problemas teológicos, o mais difícil de todos é a oração4. Uma resposta que margeia a ingenuidade dirá, em tons que são mais islâmicos que cristãos, que se uma oração é atendida ou não é porque “era para ser” ou “não era para ser”. Esta construção teológica apresenta como ouvinte das orações não um Pai amoroso, mas uma espécie de destino, frio e impessoal, que determina, por razões para nós completamente desconhecidas, o que era para ser e o que não era para ser.

O mistério da oração é: por que nem todas as orações são atendidas? Por que situações que, imaginamos, se atendidas, redundarão em libertação para quem as faz, e em louvor e adoração a Deus, não são atendidas? Como o problema é muito doloroso e angustiante, muitos (todos?) conscientemente ou não, preferem apaziguar suas mentes respondendo para si como uma criança de 5 anos de idade costuma responder algumas das perguntas que lhe são feitas: “por que sim” ou “por que não”. Mas por que sim? Porque sim. Mas por que não? Porque não. Respostas assim fazem minorar o sofrimento de quem precisa de algo, busca dos céus, mas não recebe resposta. Pelo menos, não a resposta que queria, ou que precisava. Este problema da oração não respondida toca no problema da teodiceia, termo introduzido na reflexão filosófica ocidental moderna pelo filósofo Gottfried Leibniz (1646-1716). Simplificando e resumindo, a teodiceia, conforme Leibniz, é uma tentativa racional de defender a existência de uma divindade onisciente, onipotente, onipresente e amorosa com a presença do mal no mundo. Leibniz tentou responder a um antigo dilema filosófico: se existe um Deus que é todo poderoso e bom, por que existe o mal no mundo? Ou Deus não é bom, ou não é todo poderoso. Talvez ele não queira o mal, mas não tem poder para evitá-lo, logo, não é todo poderoso. Talvez ele tenha poder para evitar o mal, mas não quer fazê-lo, logo, não é bom. A questão perturba o ser humano há muito tempo, e algumas das mentes mais brilhantes que a raça humana produziu tentaram respondê-la. Diante do problema do mal, uma atitude possível é pedir a um poder superior que nos ajude a enfrentar uma situação que nos ameaça. Jesus nos ensinou a pedir: “Pai nosso que estás no céu... livra-nos do mal”.

Penso que seja à luz deste contexto que se pode perceber uma camada mais profunda em Miracle Workers. A série, com toda sua loucura e falta de sentido, não oferece uma teodiceia. Muito pelo contrário. A impressão que tive ao assisti-la – impressão, repito – é que o roteirista deve ter algum trauma por não ter tido alguma oração não respondida, e por isso produziu um roteiro que é uma “vingança” contra Deus. Isso porque na série Deus só tem defeitos: é um egocêntrico preguiçoso que não tem habilidade nenhuma, nem sequer para abrir uma caixa de cereais, vaidoso, insensível e indiferente a tudo e a todos. A série exagera, a ponto de irritar, com sua representação de Deus que é totalmente caricata, um ser desprovido de inteligência que não inspira o menor respeito em ninguém. Ao ver a série a reação que tive não foi de argumentar apologeticamente (“isso está errado”), mas de pensar: por que o roteiro apresentou Deus assim? Em outras palavras: minha preocupação não foi nem tanto com o que foi dito a respeito de Deus (muito embora isso tenha me incomodado) mas porque foi dito. Daí minha hipótese: imagino que tenha sido uma resposta do roteirista a algum trauma sofrido no passado. Uma resposta inadequada, e, no mínimo, desajeitada (para dizer pouco), porque o roteiro não se preocupa em nenhum momento se vai ou não escandalizar os telespectadores. Em um país de cultura islâmica uma produção como esta jamais seria levada adiante. Isto porque a série é irreverente em um nível jamais visto em produções da cultura pop. Daí ser inevitável a pergunta: afinal, o que está por detrás de uma apresentação do divino tão “zoada”?

Rudolf Otto, em O Sagrado, texto publicado em 1917 que se tornou clássico tanto para a reflexão teológica como também para os estudos de religião5, apresenta o sublime, o numinoso6, o sagrado como mysterium tremendum et fascinans, uma realidade além da capacidade humana de compreensão (mysterium) que de maneira paradoxal, assusta (tremendum) e atrai (fascinans) ao mesmo tempo. Miracle Workers não tem um numen que atrai e assusta. A divindade da série é um ser idiotizado e imbecilizado. Concluindo: terá sido essa a maneira que o roteirista encontrou para lidar com suas dores e dúvidas na busca do sagrado? Se foi, estas dores e dúvidas continuarão. Teria sido melhor procurar outra maneira para enfrentar suas lutas.

Notas
1. A expressão What in God’s name (literalmente, “o que em nome de Deus”) é muito comum nos países de língua inglesa. É usada sempre no interrogativo como uma interjeição em contextos nos quais alguém se espanta ou se indigna com alguma situação inusitada, incomum, absurda ou revoltante.

2. A expressão latina deus otiosus (“deus ausente”) é usada nos estudos de religião para designar a ideia de um ser supremo que se ausentou do cenário da sua criação, deixando-a seguir seu próprio curso sem nela interferir.

3. Parece que Simon Rich, o autor do livro que inspira a série Miracle Workers tenha retirado sua inspiração para colocar Deus desejando fazer um restaurante em galáxia distante em O restaurante no fim do universo, um romance de ficção científica do autor inglês Douglas Adams, autor da série Guia do mochileiro das galáxias (da qual faz parte O restaurante no fim do universo), uma série que faz paródia e esculhamba com todos os clichês da ficção científica.

4. C. S. Lewis: "Oração peticionária: um problema sem resposta". In Reflexões cristãs. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2019, p. 235-248.

5. Rudolf Otto. O sagrado. Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia e Editora Sinodal. Petrópolis: Vozes, 2007.

6. A palavra numinoso (que não deve ser confundida com “luminoso”), derivada da palavra latina numen, é de uso raro na língua portuguesa. Numinoso se refere ao sobrenatural, que está acima e além do ser humano.



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