Opinião
- 21 de agosto de 2012
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Milton Nascimento: poesia e profecia
Vou começar este artigo com uma palavra de elogio a Ultimato pela decisão de ousar e inovar – qual é o periódico evangélico neste país que abriria espaço para um texto a respeito de um cantor e compositor não evangélico? Se fosse um artigo sobre a importância de um Feliciano Amaral, de um Luís de Carvalho ou de um Oseias de Paula, grandes cantores da “velha guarda” da igreja evangélica brasileira, seria compreensível e natural. Mas não – o “possante rotativo” Ultimato quer texto sobre os 70 anos de um cantor não evangélico! Surpreendente. Parafraseando um dos antigos poetas-cantores de Israel, esta surpresa é “assaz benigna”!
Milton
Milton Nascimento nasceu no Rio de Janeiro em 1942. Plena época da Segunda Guerra Mundial, tempo de crise, mas um ano que, pelos caminhos da divina providência, foi pródigo em artistas do mais alto calibre – neste mesmo ano nasceram gigantes da Música Popular Brasileira como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Bituca, o apelido carinhoso pelo qual os íntimos o tratam, foi adotado por um casal mineiro, e o menino foi então para Três Pontas (na ocasião não tinha dois anos de idade). A mudança para Minas Gerais o marcou profundamente, pois Milton construiu sua identidade cultural como mineiro. Seu pai adotivo era dono de uma estação de rádio e ele desde muito cedo se envolveu com a música. Anos mais tarde foi estudar em Belo Horizonte. Na capital mineira conheceu outras “feras” da poesia: Wagner Tiso, os irmãos Borges – Marilton, Lô e Marcio – e mais Tavinho Moura, Flavio Venturini, o inigualável Beto Guedes, Fernando Brant (parceiro com Milton na composição de muitas músicas que se tornariam clássicas) e Toninho Horta. A turma se encontrava na esquina das ruas Divinópolis com Paraisópolis: daí surgiu o Clube da Esquina, um dos movimentos musicais mais criativos, inovadores e talentosos de toda a história da MPB.
O talento de Milton ultrapassou as fronteiras do Brasil, pois ele foi convidado a gravar um disco com Wayne Shorter, lenda do jazz estadunidense. Sua interpretação de “Volver a los 17”, poesia da chilena Violeta Parra, junto com a “cantante” argentina Mercedes Sosa, é tão carregada de sentimento e “alma” que é capaz de emocionar uma estátua. Milton participou do espetáculo “O Grande Circo Místico”, assistido por mais de 200 mil pessoas em dois anos (1983-1984). Ganhou o Grammy (o “oscar” da música) em 1998. Seu registro de voz é inconfundível, sua afinação é impressionante, o que, com seu carisma pessoal, além de sua voz “cósmica”, faz com que seja um dos artistas mais conhecidos e amados do Brasil. Quem não conhece – e não gosta – de músicas como “Maria, Maria”, “Bares da Vida”, “Travessia”, “Canção da América”, “Morro Velho”, e tantas outras? Sua interpretação de “Coração de Estudante”, de autoria do seu parceiro Wagner Tiso, é inesquecível. “Coração de Estudante” se tornou o hino do movimento político das “Diretas Já” em 1984 e no ano seguinte, do funeral do Presidente Tancredo Neves, eleito, mas jamais empossado. “Canção da América” foi o tema do funeral de Airton Senna em 1994.
A música de Milton mostra ter ele recebido influência de diferentes estilos e estéticas. Portanto é difícil classificar com precisão qual é o tipo de música que Milton faz e canta. Percebe-se uma influência de regionalismos mineiros, da música e da poesia hispano-americanas das já citadas Violeta Parra e Mercedes Sosa, e ainda Victor Jara, do jazz estadunidense, da bossa nova.
Poesia e profecia
Esta breve reflexão visa homenagear um dos principais artistas brasileiros e ao mesmo tempo refletir sobre a arte a partir da perspectiva da teologia cristã. Seu título trabalha com um par de atividades-experiências-realizações das mais importantes da existência: poesia e profecia. Que coincidência maravilhosa que em nossa língua estas duas palavras símbolo de algo tão importante tenham a mesma sonoridade – rima. A teologia cristã tem uma estreita ligação com a poesia. É verdade que a teologia tradicionalmente tem sido construída em forma de proposição lógica, com argumentações dedutivas e indutivas, enfim, com ferramentas da lógica aristotélica. Quase todos os teólogos precisam se lembrar do óbvio: a maior parte da Bíblia, fonte e origem da teologia cristã, foi escrita em forma de poesia. Neste sentido é estranho que os pensadores cristãos tenham se afastado tanto da forma com que o conteúdo da revelação nos foi dado. Os livros proféticos do nosso Antigo Testamento, por exemplo, foram escritos em forma poética, não em forma de prosa, como infelizmente foram formatadas as versões Almeida Revista e Corrigida e Almeida Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil, as mais usadas pelos evangélicos do nosso país. Neste sentido há que se reconhecer e destacar o mérito da Bíblia de Jerusalém, das católicas Edições Paulinas, a primeira versão da Bíblia em português a formatar os textos proféticos em forma de poesia. Poesia é arte. A teologia cristã precisa (re)descobrir a arte. Lutero dizia que a música é filha de Deus. Até mesmo o grave Calvino afirmou com rara sensibilidade que a arte é um dom de Deus que nos ajuda a suportar os momentos depressivos e deprimentes da vida.
Feitas as observações deste último parágrafo, é tempo de voltar nossa atenção ao nosso homenageado: nem sempre tem sido observado, mas algumas músicas de Milton Nascimento combinam maravilhosamente bem profecia e poesia. Profecia no sentido bíblico, de denúncia do mal e da injustiça, não no sentido “nostradâmico” de predição do futuro como o senso comum entende. “Coração Civil” e “Notícias do Brasil (Os pássaros trazem)” são exemplos de músicas que exaltam a justiça e sonham a utopia santa de uma sociedade fraterna e solidária. Haverá algo mais biblicamente profético que isto? “Cio da Terra”, composta com o igualmente genial Chico Buarque de Holanda, com leveza faz lembrar tantos textos bíblicos que evocam as figura do grão, do trigo, do pão, símbolo da eucaristia. As canções do álbum “Missa dos Quilombos” (letras de Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, músicas de Milton) criticam a escravidão e o preconceito étnico – haverá algo mais biblicamente profético que isto?
De maneira leve e artisticamente refinada Milton Nascimento é um poeta e profeta que canta e encanta, ensina e edifica. Vida longa para você, Bituca! Deus abençoe sua trajetória. Que sua poesia-profecia continue a embalar nossos sonhos de um Brasil mais justo!
Nota:
O cantor Milton Nascimento completará 70 anos no dia 26 de outubro. Ele também faz 50 anos de carreira neste ano.
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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