Opinião
- 18 de março de 2019
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Maomé e o Alcorão: uma ameaça a ser combatida? Respostas fáceis para perguntas difíceis
Por Marcos Amado
“Para cada capítulo que lemos do Alcorão, precisamos ler três capítulos da Bíblia!”. Essa foi a afirmação que, com grande surpresa, eu ouvi de um experiente e renomado missionário anglo-saxão que havia trabalhado por duas décadas em um país muçulmano. Segundo ele, isso era necessário para que o poder maligno do livro, que é considerado sagrado por mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo, fosse contraposto. Já um missionário brasileiro, ao ser perguntado por um muçulmano sobre a opinião que ele tinha do Alcorão, respondeu, sem pestanejar, que o Alcorão era um livro de inspiração satânica.
“Para cada capítulo que lemos do Alcorão, precisamos ler três capítulos da Bíblia!”. Essa foi a afirmação que, com grande surpresa, eu ouvi de um experiente e renomado missionário anglo-saxão que havia trabalhado por duas décadas em um país muçulmano. Segundo ele, isso era necessário para que o poder maligno do livro, que é considerado sagrado por mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo, fosse contraposto. Já um missionário brasileiro, ao ser perguntado por um muçulmano sobre a opinião que ele tinha do Alcorão, respondeu, sem pestanejar, que o Alcorão era um livro de inspiração satânica.
As percepções acima talvez representem o pensamento de uma boa parcela dos evangélicos brasileiros. Além disso, para a maioria de nós o Alcorão continua sendo uma grande incógnita. Os poucos de nós que se aventuram a ler o texto que, segundo a tradição muçulmana, foi revelado ao Profeta Maomé pelo anjo Gabriel, acabam perdendo rapidamente o interesse dada nossa incapacidade de entender o milenar texto que, sem dúvida alguma, tem tido grande influência sobre a história ocidental e oriental. E para agravar ainda mais a situação, nossa percepção sobre Maomé é igual, ou até mesmo pior, do que a que temos sobre o Alcorão.
E por que isso pode ser algo importante para aqueles de nós que entendem que parte do nosso chamado é sermos testemunhas de Jesus entre os seguidores de outras religiões, inclusive entre os muçulmanos? Martin Accad, teólogo e pastor evangélico libanês disse que:
"Sua visão do islã afetará sua atitude em relação aos muçulmanos. Sua atitude, por sua vez, influenciará sua abordagem na interação entre cristãos e muçulmanos, e essa abordagem afetará o resultado final de sua presença como uma testemunha de Jesus entre eles" (Accad 2016).
Parafraseando Accad, provavelmente poderíamos dizer que a visão negativa que temos do Alcorão e de Maomé afeta a nossa atitude em relação aos muçulmanos o que, eventualmente, afetará nossa interação e testemunho entre eles.
Se esse realmente for o caso, o que, então, poderíamos fazer? Qual deveria ser nossa atitude? Talvez poderíamos começar perguntando-nos se, como cristãos, não seria possível ter um olhar menos belicoso em relação a Maomé e ao Alcorão.
Os muçulmanos, de uma forma geral, entendem que Deus revelou as escrituras para os judeus, para os cristãos e, finalmente, para os árabes. Mas, segundo a crença muçulmana, quando ele comunicou o conteúdo do Alcorão a Maomé, não houve nenhuma influência das escrituras judaicas nem cristãs, pois a revelação feita a Maomé vinha diretamente de Deus, por intermédio do anjo.
Porém, se aceitamos a premissa (comumente aceita pelos teólogos cristãos) de que todo texto (mesmo aqueles considerados inspirados) tem, no seu processo de formação, a influência do seu contexto histórico e social, não poderíamos pensar que com o Alcorão teria sido diferente. Aliás, provavelmente é por conta desta influência que, quando fazemos um estudo mais cuidadoso e comparamos o conteúdo do Alcorão com o Antigo e com o Novo Testamento, assim como com textos judaicos e cristãos não-canônicos existentes na época de Maomé, as semelhanças encontradas não são poucas.
Ao longo dos séculos, o judaísmo desenvolveu importantes compêndios de leis, traduções e comentários tais como a Mishna, o Talmude e o Targum. Todos eles já existiam antes do advento do islã, no século VII. Do lado cristão, à medida que, a partir do primeiro século, a nova fé se expandia para o oriente e para o ocidente, houve uma grande proliferação de textos e ideias teológicas, algumas consideradas ortodoxas e outras heréticas.
Segundo a tradição islâmica Maomé começou a ter as primeiras revelações cerca de 600 anos depois de Cristo. Relatos históricos mostram que a Península Arábica daquela época era habitada e/ou frequentada por judeus e cristãos de diferentes estirpes (Bell 1968) que haviam levado consigo (de forma oral ou escrita) as tradições, compêndios e ideias teológicas mencionadas acima (Bell 1968, Brown 2009). Vários estudiosos do islã afirmam que Maomé cresceu tendo contato com judeus e cristãos (Geiger 1998, Reynolds 2007, Crone 2015).
Sendo assim, não deveria ser de se estranhar a presença nas pregações de Maomé (que eventualmente foram compiladas em um livro, o Alcorão), de conceitos bíblicos como arrependimento, perdão, recompensa, castigo, céu e inferno, as bênçãos dadas por Deus através da natureza, a majestade e unicidade de Deus, a existência de anjos e demônios, o Dia do Julgamento, entre muitos outros. Obviamente a maneira que o Alcorão explica esses conceitos apresenta, com frequência, diferenças significativas em relação à compreensão cristã. Porém, não há duvidas de que, na sua essência, o Alcorão usa categorias bíblicas para apresentar o que Maomé entendia ser o caminho para o paraíso.
Além de conceitos teológicos, são muitos os personagens, histórias e palavras de origem bíblica encontrados nas escrituras muçulmanas. Noé, Abraão, Moisés, Davi e Jesus (incluindo muitos dos seus milagres), são apenas alguns exemplos.
Portanto, se aceitarmos a hipótese de que o conteúdo de textos judaico-cristãos influenciou Maomé e, consequentemente, a formação do Alcorão, surgem, naturalmente algumas questões importantes: será que não poderíamos ter uma perspectiva diferente sobre o Alcorão do que a dos missionários mencionados no início? Será que um texto que nós não consideramos inspirado deve ser, necessariamente, considerado de origem satânica?
É claro que no nosso zelo por salvaguardar as verdades bíblicas, nossa primeira reação possivelmente seja a de dizer que o Alcorão foi, no mínimo, um plágio mal feito da Bíblia e que pensar diferente seria cair no erro de querer ‘cristianizar’ o Alcorão. Mas, quando analisamos aquilo que se tem como histórico sobre Maomé, sobre a situação religiosa e social da Península Arábica no período do surgimento do islã e sobre a formação do Alcorão, podemos pensar em pelo menos duas respostas bastante diferentes entre si para as perguntas acima: uma delas seria continuar afirmando que o Alcorão tem inspiração satânica e Maomé foi um líder cruel e imoral. É claro que esta posição contribui para uma exacerbação da animosidade entre cristãos e muçulmanos. Outra opção seria ver Maomé como um homem que era filho da sua época, que, durante sua juventude e também na sua fase adulta, teve contato com judeus e cristãos, escutou suas histórias religiosas e que, apesar de suas imperfeições, cria (equivocadamente) que tinha a missão divina de pregar aos árabes (que ainda não possuíam as Escrituras Sagradas em seu próprio idioma) aquilo que já havia sido revelado a judeus e cristãos.
Mas, será que seria possível aceitar a segunda resposta sem afirmar que Maomé foi um profeta enviado por Deus ou que o Alcorão é um livro inspirado? Será que, mesmo entendendo que os muçulmanos possuem conceitos equivocados sobre verdades e personagens bíblicos, seria possível dizer que eles possuem centelhas da verdade bíblica que poderiam ser usadas como ponte para a apresentação do que a Bíblia realmente afirma?
Será que uma das duas opções mencionadas acima nos ajudaria (sem ferirmos nenhum princípio bíblico) a mudarmos nossa atitude em relação aos muçulmanos e a olharmos para eles com um olhar mais humano, como pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus que foram expostos a alguns conceitos judaico-cristãos, mas que precisam da oportunidade de escutarem, ainda que seja uma vez, o que a Bíblia verdadeiramente ensina? Será que existem posicionamentos intermediários entre as duas posições mencionadas acima?
Obviamente devemos zelar pelas verdades bíblicas e não podemos abrir mão das nossas convicções. Por outro lado, por mais que gostaríamos de simplificar, possivelmente não encontraremos respostas fáceis para estas perguntas. Nossos missiólogos devem pensar juntos sobre as possíveis respostas e suas implicações. Minha oração é que o Senhor nos ajude a encontrarmos caminhos que levem à diminuição da animosidade entre os seguidores das duas religiões e, ao mesmo tempo, criem um ambiente mais propício para explicar, de forma clara, a salvação que há em Cristo Jesus.
BIBLIOGRAFIA
- Accad, M. (2016). Atitudes cristãs em relação ao islã e aos muçulmanos: uma abordagem querigmática. São Paulo, Martureo - Centro de Reflexão Missiológica.
- Bell, R. (1968). Christianity in South Arabia and its influence upon the Arabs in general. The origin of Islam in its Christian environment : the Gunning lectures, Edinburgh University 1925. London, Routledge: 33-63.
- Brown, D. (2009). Christianity in the Near East. A new introduction to Islam. West Sussex, UK, Wiley-Blackwell: pos. 1166-1241.
- Crone, P. (2015). "Jewish Christianity and the Qur"an (Part One)." Journal of Near Eastern Studies 74(2): 225-253.
- Geiger, A. (1998). What did Muhammad borrow from Judaism? The origins of the Koran: classic essays on Islam"s holy book. I. Warraq. New York, Prometheus Books.
- Reynolds, G. S. E. (2007). The Qur"an in its historical context Oxon, Oxford, Routledge.
• Marcos Amado é fundador e diretor do ‘Centro de Reflexão Missiológica Martureo’.
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