Opinião
- 23 de maio de 2017
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Lutero e o seu mundo
Por Lyndon Araújo dos Santos
Em 31 de outubro de 1517, um inquieto monge agostiniano, formado em direito e professor universitário, afixou 95 teses teológicas nas portas do castelo da cidade de Wittemberg. Esse pequeno gesto de Martinho Lutero se tornou o estopim de um conjunto de mudanças e de transformações de ordem religiosa, política, cultural e econômica. O “cristianismo” enquanto expressão histórica, mas não exclusiva do Reino de Deus, e a “cristandade” enquanto projeto de dominação política, cultural e religiosa, não mais seriam os mesmos. E isto até aos nossos dias, passados 500 anos.
Conquanto Lutero tenha sido um personagem central no calor dos acontecimentos, o evento da Reforma Protestante no século XVI resultou de um conjunto de movimentos anteriores, vindos de dentro e de fora da Igreja europeia. Pois outros cristianismos haviam no mundo de então, para além da sua configuração europeia, como o bizantino, por exemplo. Sob a “ameaça” muçulmana depois do fracasso das cruzadas, a fé cristã submetida à lógica da conquista defrontou-se com sua própria contradição ao nomear os “inimigos” e fundamentar-se na prática do amor.
Podemos recuar até ao século XII para apontar o surgimento de movimentos que foram precursores da Reforma. Diversos movimentos sociais e religiosos tomaram corpo no intervalo de 400 anos. Eles tiveram natureza popular, carismática, apocalíptica, missionária, teológica – e, claro, de protesto político-social. Houve uma série de questionamentos à hierarquia eclesiástica e à própria estrutura da sociedade feudal, por meio de construções teológicas consideradas “heresias”, do ponto de vista do poder religioso que assim as definiu.
Na confluência das décadas finais do século XV e iniciais do XVI, a cristandade medieval “cindiu” gerando uma diversidade de ações e de reações, com desdobramentos até aos nossos dias. E o cristianismo se reformou e se reinventou como “protestante”, assim como o catolicismo se refez numa “Contra-Reforma”.
Gestava-se naquele contexto a “modernidade” pelo renascimento cultural, pelas descobertas invasoras das américas, das áfricas e das índias, e pelo surgimento do sistema-mundo capitalista mercantil. O pensamento operava o deslocamento do teocentrismo escolástico para o humanismo moderno. As fontes da verdade deixariam de ser exclusivas da tradição e da teologia oficial, antes a razão e a experiência se tornariam as outras bases para a construção da verdade. Com isto, a questão da autoridade era diretamente afetada.
A pressão da ameaça invasora militar dos turcos otomanos ao leste europeu forçava uma Europa provinciana e acuada buscar terras e mercado para comerciantes e nascentes monarquias ainda não tão absolutas. A imprensa e as novas tecnologias de navegação contribuíram para tal expansão. Interessada neste avanço civilizatório e comercial, a Igreja reproduzia seu poder aliada às frações da nobreza europeia, estabelecendo com as monarquias emergentes tratados e acordos políticos. Sendo portadora do carisma religioso e proprietária de grandes extensões de terras, cobrava impostos para a sustentação e a ostentação da burocracia eclesiástica e da hierarquia.
Ao mesmo tempo, a “romana” Igreja Católica vivia permanentes embates internos e desgastes externos. O conciliarismo defendia a autoridade dos concílios acima do papa e da cúria. O papado submetido a disputas por parte de grupos e de famílias ricas italianas contrapunha-se ao desejo de renovação, pureza e simplicidade vindo das bases. A venda de cargos eclesiásticos, a simonia, e o nepotismo eram práticas escandalosamente naturalizadas. Esse contexto produziu golpes em meio à corrupção reinante e a eleição concomitante de papas ilegítimos e sem popularidade, ancorados somente na força do poder da cúria isolada dos interesses do povo.
A peste negra que assolou um terço da população na Europa colocou em cheque a eficácia desta instituição em salvar o mundo da doença e dos demônios. Paradoxalmente, do centro e das margens desta Igreja em crise vinham pressões desde as ordens religiosas com seus poderosos mosteiros e pregadores e das universidades com seus professores (Franciscanos e Dominicanos) e de movimentos místicos medievais.
Estas forças conjunturais geravam uma angústia religiosa e social que clamava por mudança. O sentido da salvação estava cativo ao escape do mundo provisório de sofrimentos e subordinado à mediação da Igreja pelo sacerdócio e pelos sacramentos. A morte era a realidade sempre presente e próxima, ao lado da fome, da miséria e da pobreza impostas à maioria da população. O medo apocalíptico do fim do mundo iminente era o sentimento coletivo compartilhado e o céu seria como uma terra de comida e de fartura, a Cocanha tão sonhada!
Havia a necessidade de uma nova teologia e de uma nova ordem que libertassem as pessoas do trágico, do medo e do controle, reinventando o indivíduo como sujeito de si mesmo diante de Deus e do mundo. Estas aspirações vinham ao encontro também da nova classe burguesa emergente e desejosa de controle político e de compensação religiosa aos seus anseios de enriquecimento. Os príncipes alemães almejavam as terras da Igreja e pressionavam por uma outra ordem política para uma Alemanha fragmentada.
A crise espiritual de Lutero era pessoal e de sua época. A indignação contra a cobrança das indulgências de Tetzel fazia parte de sua personalidade e expressava um sentimento generalizado. A volta a uma simplicidade de vida cristã era um clamor de séculos. A espiritualidade ansiava por libertar-se da exteriorização dos rituais para uma experiência interna e subjetiva que trouxesse significado e sentido ao piedoso. Uma nova (mas antiga) fonte de autoridade, as Escrituras, era reclamada ante a força da tradição. As 95 teses respondiam a estas e a outras questões.
Nota: Este texto foi escrito a partir da participação do autor em “Diálogos na Web 500 Anos Reforma Protestante”, uma iniciativa da Aliança Evangélica. Publicado graças à parceria entre Aliança Evangélica, Ultimato e Basileia. Os diálogos completos estão disponíveis em vídeo, aqui.
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Imagem: Por Ferdinand Wilhelm Pauwels - flickr, Domínio público.
Em 31 de outubro de 1517, um inquieto monge agostiniano, formado em direito e professor universitário, afixou 95 teses teológicas nas portas do castelo da cidade de Wittemberg. Esse pequeno gesto de Martinho Lutero se tornou o estopim de um conjunto de mudanças e de transformações de ordem religiosa, política, cultural e econômica. O “cristianismo” enquanto expressão histórica, mas não exclusiva do Reino de Deus, e a “cristandade” enquanto projeto de dominação política, cultural e religiosa, não mais seriam os mesmos. E isto até aos nossos dias, passados 500 anos.
Conquanto Lutero tenha sido um personagem central no calor dos acontecimentos, o evento da Reforma Protestante no século XVI resultou de um conjunto de movimentos anteriores, vindos de dentro e de fora da Igreja europeia. Pois outros cristianismos haviam no mundo de então, para além da sua configuração europeia, como o bizantino, por exemplo. Sob a “ameaça” muçulmana depois do fracasso das cruzadas, a fé cristã submetida à lógica da conquista defrontou-se com sua própria contradição ao nomear os “inimigos” e fundamentar-se na prática do amor.
Podemos recuar até ao século XII para apontar o surgimento de movimentos que foram precursores da Reforma. Diversos movimentos sociais e religiosos tomaram corpo no intervalo de 400 anos. Eles tiveram natureza popular, carismática, apocalíptica, missionária, teológica – e, claro, de protesto político-social. Houve uma série de questionamentos à hierarquia eclesiástica e à própria estrutura da sociedade feudal, por meio de construções teológicas consideradas “heresias”, do ponto de vista do poder religioso que assim as definiu.
Na confluência das décadas finais do século XV e iniciais do XVI, a cristandade medieval “cindiu” gerando uma diversidade de ações e de reações, com desdobramentos até aos nossos dias. E o cristianismo se reformou e se reinventou como “protestante”, assim como o catolicismo se refez numa “Contra-Reforma”.
Gestava-se naquele contexto a “modernidade” pelo renascimento cultural, pelas descobertas invasoras das américas, das áfricas e das índias, e pelo surgimento do sistema-mundo capitalista mercantil. O pensamento operava o deslocamento do teocentrismo escolástico para o humanismo moderno. As fontes da verdade deixariam de ser exclusivas da tradição e da teologia oficial, antes a razão e a experiência se tornariam as outras bases para a construção da verdade. Com isto, a questão da autoridade era diretamente afetada.
A pressão da ameaça invasora militar dos turcos otomanos ao leste europeu forçava uma Europa provinciana e acuada buscar terras e mercado para comerciantes e nascentes monarquias ainda não tão absolutas. A imprensa e as novas tecnologias de navegação contribuíram para tal expansão. Interessada neste avanço civilizatório e comercial, a Igreja reproduzia seu poder aliada às frações da nobreza europeia, estabelecendo com as monarquias emergentes tratados e acordos políticos. Sendo portadora do carisma religioso e proprietária de grandes extensões de terras, cobrava impostos para a sustentação e a ostentação da burocracia eclesiástica e da hierarquia.
Ao mesmo tempo, a “romana” Igreja Católica vivia permanentes embates internos e desgastes externos. O conciliarismo defendia a autoridade dos concílios acima do papa e da cúria. O papado submetido a disputas por parte de grupos e de famílias ricas italianas contrapunha-se ao desejo de renovação, pureza e simplicidade vindo das bases. A venda de cargos eclesiásticos, a simonia, e o nepotismo eram práticas escandalosamente naturalizadas. Esse contexto produziu golpes em meio à corrupção reinante e a eleição concomitante de papas ilegítimos e sem popularidade, ancorados somente na força do poder da cúria isolada dos interesses do povo.
A peste negra que assolou um terço da população na Europa colocou em cheque a eficácia desta instituição em salvar o mundo da doença e dos demônios. Paradoxalmente, do centro e das margens desta Igreja em crise vinham pressões desde as ordens religiosas com seus poderosos mosteiros e pregadores e das universidades com seus professores (Franciscanos e Dominicanos) e de movimentos místicos medievais.
Estas forças conjunturais geravam uma angústia religiosa e social que clamava por mudança. O sentido da salvação estava cativo ao escape do mundo provisório de sofrimentos e subordinado à mediação da Igreja pelo sacerdócio e pelos sacramentos. A morte era a realidade sempre presente e próxima, ao lado da fome, da miséria e da pobreza impostas à maioria da população. O medo apocalíptico do fim do mundo iminente era o sentimento coletivo compartilhado e o céu seria como uma terra de comida e de fartura, a Cocanha tão sonhada!
Havia a necessidade de uma nova teologia e de uma nova ordem que libertassem as pessoas do trágico, do medo e do controle, reinventando o indivíduo como sujeito de si mesmo diante de Deus e do mundo. Estas aspirações vinham ao encontro também da nova classe burguesa emergente e desejosa de controle político e de compensação religiosa aos seus anseios de enriquecimento. Os príncipes alemães almejavam as terras da Igreja e pressionavam por uma outra ordem política para uma Alemanha fragmentada.
A crise espiritual de Lutero era pessoal e de sua época. A indignação contra a cobrança das indulgências de Tetzel fazia parte de sua personalidade e expressava um sentimento generalizado. A volta a uma simplicidade de vida cristã era um clamor de séculos. A espiritualidade ansiava por libertar-se da exteriorização dos rituais para uma experiência interna e subjetiva que trouxesse significado e sentido ao piedoso. Uma nova (mas antiga) fonte de autoridade, as Escrituras, era reclamada ante a força da tradição. As 95 teses respondiam a estas e a outras questões.
Nota: Este texto foi escrito a partir da participação do autor em “Diálogos na Web 500 Anos Reforma Protestante”, uma iniciativa da Aliança Evangélica. Publicado graças à parceria entre Aliança Evangélica, Ultimato e Basileia. Os diálogos completos estão disponíveis em vídeo, aqui.
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Imagem: Por Ferdinand Wilhelm Pauwels - flickr, Domínio público.
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
- Textos publicados: 35 [ver]
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