Opinião
- 31 de agosto de 2022
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Legado, louvor e lamento
Por Gedeon Alencar
Esta nota foi preparada a convite da comissão à frente do projeto Legado & Louvor.
Quais nomes de mulheres eu poderia apontar nessas décadas que são fundamentais e poderiam entrar na relação de legado e louvor na história assembleiana? Elas não foram historiografadas, elas não foram registradas, elas não foram reconhecidas, elas foram propositalmente apagadas
Muito óbvio e necessário que tenhamos que lembrar e celebrar períodos e pessoas que nos antecederam, porque somente chegamos aqui e somos o que somos pela existência e trabalho dessas pessoas.
As Assembleias de Deus (AD) nasceram no Brasil em 1911, enquanto o nome oficial somente veio a surgir nos EUA em 1914. Atualmente, segundo estimativas da Aliança Mundial das Assembleias de Deus, as ADs contam com 70 milhões de membros em mais de 190 países1. No Brasil, segundo o Censo de 2010, é a maior denominação pentecostal, com mais de 12 milhões de membros. Não é uma igreja, são várias. Tanto no Brasil, como quando nasceu nos EUA e se espalhou pelo mundo, são assembleias. Ou, como defino em meu livro, são a Matriz Pentecostal Brasileira (Alencar, 2018:23)3,
A Assembleia de Deus no Brasil é brasileira? Brasileiríssima. Ela pode não ser a cara do Brasil, mas é um retrato fiel. E um dos principais. É uma das sínteses mais próximas da realidade brasileira. Como o Brasil, é moderna, mas conservadora; presente, mas invisível; imensa, mas insignificante; única, mas diversificada; plural, mas sectária; rica, mas injusta; passiva, mas festiva; feminina, mas machista; urbana, mas periférica; mística, mas secular; carismática, mas racionalizada; fenomenológica, mas burocrática; comunitária, mas hierarquizada; grande, mas fracionada; barulhenta, mas calada; presente, mas invisível; omissa, mas vibrante; sofredora, mas feliz. É brasileira.
Nossas igrejas no Brasil, não somente as ADs, são como as genealogias bíblicas. Abraão gerou Isaque; Isaque gerou Jacó; Jacó gerou outro homem. E assim seguem: é macho dando cria a macho. Assim, como nas genealogias, nossas historiografias denominacionais são uma enxurrada de nomes de homens; homens que produzem outros homens. Nada muito diferente de nossa sociedade patriarcal, mas nossas igrejas são igrejas formadas majoritariamente por mulheres. Nossas igrejas são femininas, construídas por mulheres, sustentadas financeiramente por mulheres, levantadas, construídas e mantidas por elas.
Quais nomes de mulheres eu poderia apontar nessas décadas que são fundamentais e poderiam entrar na relação de legado e louvor na história assembleiana? Elas não foram historiografadas, elas não foram registradas, elas não foram reconhecidas, elas foram propositalmente apagadas. Nenhuma diferença com relação a outras igrejas – presbiteriana, batista, católica... O método é igual em todas as instituições, e não somente instituições religiosas – é padrão social.
Como sociólogo weberiano, uso muito de tipos ideais. Então, em minha análise, os pentecostais, ou mais especificamente as ADs são construídas pelo grupo pppp – pobres, pretos, periféricos e pentecostais. As ADs explodem no início do século 20, resultado da migração interna com a crise da borracha, e registros escassos nos jornais falam de “pessoas que vieram do Norte” e iniciaram as igrejas. Diferente das denominações tradicionais – pretensamente chamadas de “históricas”, como se somente elas tivessem história –, as ADs não tiveram dinheiro estrangeiro ou estratégias missionárias elaboradas em seminários teológicos. Tanto no início do século 20, como também nas décadas de 1960 a 2000, escolhidas por esse projeto Legado & Louvor, as ADs acompanham a explosão demográfica decorrente de processos de urbanização e industrialização. São milhões de migrantes que, obrigados por questões fundiárias, climáticas e econômicas, saem de seus territórios originais e vão para grandes cidades. E essas igrejas/templos são os espaços mais sublimes de acolhimento. Elas recebem e acompanham as famílias; nessas comunidades essas pessoas se juntam, pois nelas têm alguns amigos ou parentes que vão lhes ajudar no cuidado das crianças, nas indicações de emprego, no adjutório na hora da doença, e na rotina do sofrimento e da morte. E quem são majoritariamente essas pessoas acolhedoras, essas figuras de ajuda mútua das famílias, de cooperação nos cuidados dos filhos, na urgência de medicamentos ou, muito mais, nos momentos de oração na tribulação da nova vida? São as mulheres. São mulheres ajudando outras mulheres. Mas a(s) história(s) oficial(is) as ignoram.
Quando falamos da luta dos direitos civis nos EUA, e da luta contra o apartheid na África do Sul – e não custa lembrar, lutas nas quais havia igrejas envolvidas contra e a favor –, falamos exclusivamente de Martin Luther King e de Mandela (e não sou idiota o suficiente para querer diminuir a importância deles), mas por que eles e muitos outros homens puderam se dedicar exclusivamente à luta no campo público/político? Porque eles e todos os demais tiveram mulheres para cuidar do campo particular, da família. Mulheres que foram ostracizadas, mesmo as que estavam com eles também na luta pública. Idem, nas ADs e demais igrejas no Brasil e no mundo.
Legado, louvor e lamento?
Com certeza o projeto Legado & Louvor é valido é necessário, mas não estaria faltando outro L: Lamento?
Atualmente, segundo estimativas, 30% da população brasileira é evangélica. Assim, temos provavelmente 60 milhões de evangélicos, e um número expressivo destes é pentecostal e majoritariamente feminino, pois, a população adulta é mais feminina que masculina; idem, a população pobre. Portanto, pobre, preta, periférica e pentecostal. E poderia acrescentar mais um p: preterida!
Sim, temos uma presença evangélica pentecostal assembleiana impossível de ser negada – a política que o diga –, mas podemos perguntar: qual legado e louvor essa massa tem para celebrar? A violência urbana aumenta, a fome está de volta, o número de encarcerados dispara, e assistimos a um crescimento absurdo de intolerância religiosa, racismos e feminicídios, enquanto há uma expansão de igrejas e templos. Seria uma irresponsabilidade infame fazer uma relação imediata entre os dados quantitativos, ademais, não temos pesquisas objetivas para afirmar que os dados estão interligados, e sabemos que os fenômenos sociais não são unicausais. No entanto, podemos, sim, especular: não deveriam estar correlacionados? O aumento quantitativo de templos e evangélicos nas periferias não deveria – também – produzir algum outro tipo de resultado?
Finalizo pensando no episódio em que Jesus faz uma crítica contundente aos líderes – nenhuma coincidência, todos homens – em Mateus 23.37:
"Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram”.
Gostamos, e usamos muitas metáforas masculinas em congressos, músicas, projetos, e até em nomes de igrejas – rei, general, senhor, pai –, mas ignoramos essa metáfora que o próprio Jesus usou para si mesmo: uma maternidade ignorada e respondida com assassinatos. Vivemos em um mundo, inclusive em igrejas, onde as mulheres são ignoradas, com pouca ênfase nessa ideia de maternidade acolhedora, preferindo celebrar uma cultura masculinizada de poder, defesa de armas e glamourização de assassinatos.
Louvor e legado por nossa história, sim. Mas não deveríamos também lamentar, como Jesus fez em Jerusalém, pelo que fizemos ou deixamos de fazer?
Notas
1. World Assemblies of God Fellowship.
2. Alencar, Gedeon. Matriz Pentecostal Brasileira. Assembleias de Deus – 1911-2011, São Paulo, Editora Recriar, 2018.
Saiba mais
»Legado & Louvor anuncia o programa da celebração do dia 3 de setembro
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» Louvores das décadas de 60 ao ano 2000 são destaques da nova playlist da RTM e Ultimato
Esta nota foi preparada a convite da comissão à frente do projeto Legado & Louvor.
Quais nomes de mulheres eu poderia apontar nessas décadas que são fundamentais e poderiam entrar na relação de legado e louvor na história assembleiana? Elas não foram historiografadas, elas não foram registradas, elas não foram reconhecidas, elas foram propositalmente apagadas
Muito óbvio e necessário que tenhamos que lembrar e celebrar períodos e pessoas que nos antecederam, porque somente chegamos aqui e somos o que somos pela existência e trabalho dessas pessoas.
As Assembleias de Deus (AD) nasceram no Brasil em 1911, enquanto o nome oficial somente veio a surgir nos EUA em 1914. Atualmente, segundo estimativas da Aliança Mundial das Assembleias de Deus, as ADs contam com 70 milhões de membros em mais de 190 países1. No Brasil, segundo o Censo de 2010, é a maior denominação pentecostal, com mais de 12 milhões de membros. Não é uma igreja, são várias. Tanto no Brasil, como quando nasceu nos EUA e se espalhou pelo mundo, são assembleias. Ou, como defino em meu livro, são a Matriz Pentecostal Brasileira (Alencar, 2018:23)3,
A Assembleia de Deus no Brasil é brasileira? Brasileiríssima. Ela pode não ser a cara do Brasil, mas é um retrato fiel. E um dos principais. É uma das sínteses mais próximas da realidade brasileira. Como o Brasil, é moderna, mas conservadora; presente, mas invisível; imensa, mas insignificante; única, mas diversificada; plural, mas sectária; rica, mas injusta; passiva, mas festiva; feminina, mas machista; urbana, mas periférica; mística, mas secular; carismática, mas racionalizada; fenomenológica, mas burocrática; comunitária, mas hierarquizada; grande, mas fracionada; barulhenta, mas calada; presente, mas invisível; omissa, mas vibrante; sofredora, mas feliz. É brasileira.
Nossas igrejas no Brasil, não somente as ADs, são como as genealogias bíblicas. Abraão gerou Isaque; Isaque gerou Jacó; Jacó gerou outro homem. E assim seguem: é macho dando cria a macho. Assim, como nas genealogias, nossas historiografias denominacionais são uma enxurrada de nomes de homens; homens que produzem outros homens. Nada muito diferente de nossa sociedade patriarcal, mas nossas igrejas são igrejas formadas majoritariamente por mulheres. Nossas igrejas são femininas, construídas por mulheres, sustentadas financeiramente por mulheres, levantadas, construídas e mantidas por elas.
Quais nomes de mulheres eu poderia apontar nessas décadas que são fundamentais e poderiam entrar na relação de legado e louvor na história assembleiana? Elas não foram historiografadas, elas não foram registradas, elas não foram reconhecidas, elas foram propositalmente apagadas. Nenhuma diferença com relação a outras igrejas – presbiteriana, batista, católica... O método é igual em todas as instituições, e não somente instituições religiosas – é padrão social.
Como sociólogo weberiano, uso muito de tipos ideais. Então, em minha análise, os pentecostais, ou mais especificamente as ADs são construídas pelo grupo pppp – pobres, pretos, periféricos e pentecostais. As ADs explodem no início do século 20, resultado da migração interna com a crise da borracha, e registros escassos nos jornais falam de “pessoas que vieram do Norte” e iniciaram as igrejas. Diferente das denominações tradicionais – pretensamente chamadas de “históricas”, como se somente elas tivessem história –, as ADs não tiveram dinheiro estrangeiro ou estratégias missionárias elaboradas em seminários teológicos. Tanto no início do século 20, como também nas décadas de 1960 a 2000, escolhidas por esse projeto Legado & Louvor, as ADs acompanham a explosão demográfica decorrente de processos de urbanização e industrialização. São milhões de migrantes que, obrigados por questões fundiárias, climáticas e econômicas, saem de seus territórios originais e vão para grandes cidades. E essas igrejas/templos são os espaços mais sublimes de acolhimento. Elas recebem e acompanham as famílias; nessas comunidades essas pessoas se juntam, pois nelas têm alguns amigos ou parentes que vão lhes ajudar no cuidado das crianças, nas indicações de emprego, no adjutório na hora da doença, e na rotina do sofrimento e da morte. E quem são majoritariamente essas pessoas acolhedoras, essas figuras de ajuda mútua das famílias, de cooperação nos cuidados dos filhos, na urgência de medicamentos ou, muito mais, nos momentos de oração na tribulação da nova vida? São as mulheres. São mulheres ajudando outras mulheres. Mas a(s) história(s) oficial(is) as ignoram.
Quando falamos da luta dos direitos civis nos EUA, e da luta contra o apartheid na África do Sul – e não custa lembrar, lutas nas quais havia igrejas envolvidas contra e a favor –, falamos exclusivamente de Martin Luther King e de Mandela (e não sou idiota o suficiente para querer diminuir a importância deles), mas por que eles e muitos outros homens puderam se dedicar exclusivamente à luta no campo público/político? Porque eles e todos os demais tiveram mulheres para cuidar do campo particular, da família. Mulheres que foram ostracizadas, mesmo as que estavam com eles também na luta pública. Idem, nas ADs e demais igrejas no Brasil e no mundo.
Legado, louvor e lamento?
Com certeza o projeto Legado & Louvor é valido é necessário, mas não estaria faltando outro L: Lamento?
Atualmente, segundo estimativas, 30% da população brasileira é evangélica. Assim, temos provavelmente 60 milhões de evangélicos, e um número expressivo destes é pentecostal e majoritariamente feminino, pois, a população adulta é mais feminina que masculina; idem, a população pobre. Portanto, pobre, preta, periférica e pentecostal. E poderia acrescentar mais um p: preterida!
Sim, temos uma presença evangélica pentecostal assembleiana impossível de ser negada – a política que o diga –, mas podemos perguntar: qual legado e louvor essa massa tem para celebrar? A violência urbana aumenta, a fome está de volta, o número de encarcerados dispara, e assistimos a um crescimento absurdo de intolerância religiosa, racismos e feminicídios, enquanto há uma expansão de igrejas e templos. Seria uma irresponsabilidade infame fazer uma relação imediata entre os dados quantitativos, ademais, não temos pesquisas objetivas para afirmar que os dados estão interligados, e sabemos que os fenômenos sociais não são unicausais. No entanto, podemos, sim, especular: não deveriam estar correlacionados? O aumento quantitativo de templos e evangélicos nas periferias não deveria – também – produzir algum outro tipo de resultado?
Finalizo pensando no episódio em que Jesus faz uma crítica contundente aos líderes – nenhuma coincidência, todos homens – em Mateus 23.37:
"Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram”.
Gostamos, e usamos muitas metáforas masculinas em congressos, músicas, projetos, e até em nomes de igrejas – rei, general, senhor, pai –, mas ignoramos essa metáfora que o próprio Jesus usou para si mesmo: uma maternidade ignorada e respondida com assassinatos. Vivemos em um mundo, inclusive em igrejas, onde as mulheres são ignoradas, com pouca ênfase nessa ideia de maternidade acolhedora, preferindo celebrar uma cultura masculinizada de poder, defesa de armas e glamourização de assassinatos.
Louvor e legado por nossa história, sim. Mas não deveríamos também lamentar, como Jesus fez em Jerusalém, pelo que fizemos ou deixamos de fazer?
Notas
1. World Assemblies of God Fellowship.
2. Alencar, Gedeon. Matriz Pentecostal Brasileira. Assembleias de Deus – 1911-2011, São Paulo, Editora Recriar, 2018.
- Gedeon Alencar é licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); mestre e doutor em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), respectivamente; professor visitante da Faculdade Unida, membro do Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo (GEPP-PUC-SP), da Rede Latina de Estudos Pentecostais (RELEP), e da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e Caribe (CEHILA). Há duas décadas pesquisa as Assembleias de Deus, tendo publicado livros como "Matriz Pentecostal Brasileira. Assembleias de Deus – 1911-2011" (Editora Recriar), "Assembleias de Deus: origem, implantação e militância – 1911-1946" (Arte Editorial), "Protestantismo Tupiniquim. Hipóteses sobre a (não) contribuição à cultura brasileira (Arte Editorial).
Saiba mais
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- 31 de agosto de 2022
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