Prateleira
- 06 de março de 2007
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Lamento sobre a soberania islâmica do macho evangélico
Para celebrar a semana da mulher, Prateleira traz ao leitor uma série de artigos publicados pela revista Ultimato sobre o tema. Todos os dias, com exclusividade, você vai ler aqui um novo artigo. Abrimos a série com a colunista Bráulia Ribeiro.
"Sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta"
Lembro-me do momento na infância em que descobri que mulheres de alguma forma valiam menos do que homens. Um dia minha mãe se referiu a meu irmão mais novo como seu primogênito. Reagi: “Eu sou a primeira filha, mamãe...” E ela, como boa judia mineira, conformada: “Não, minha filha, mulher não conta...”
Aquele “mulher não conta” ecoou nos meus ouvidos de criança por muito tempo. Assim que me tornei missionária, bem jovem, não me senti limitada por ser mulher. Na missão a consciência de gênero era difusa. Eu valia não pelo sexo, mas por ser eu, quem Deus me criou para ser. Vivi com liberdade servindo a Deus, descobrindo índios na selva remota. Mas mesmo assim o pseudo-machismo bíblico tinha eco em mim. Casei-me e me apaguei. Agora eu tinha um homem para ocupar o palco do destino que Deus tinha para nós (submissão, sob-missão, sem missão pessoal). O projeto de ser esposa adequadamente tomou o lugar do projeto de vida. A necessidade de destino foi substituída pelo conforto dos braços machos ao meu redor.
Não sei quantos anos dormi assim em berço esplêndido. Quando acordei já era mulher de meia-idade, menos mulher por menos encantos. Vi-me mulher inteira mas o fui em pedaços. Não consegui combinar a mulher com valor intrínseco com esposa e mãe. Deixei-me sufocar pela cultura teológica que me extraía a importância e a autonomia.
Ironicamente só despertei quando, ao visitar uma tribo que contactara vinte anos antes, vi-me obrigada a me desnudar, quarentona, do mesmo jeito que o fazia quando jovem solteira. Minha nudez ousada era a mesma, mas minha alma era caída, pesada de preconceitos. Deus usou aquele momento único de nudez real para me confrontar com quem eu era. Continuo casada e feliz, mas já não sou uma metade. Sou um ser inteiro, inteiro em seu valor.
Muitos homens no Brasil repousam sua masculinidade numa falsa noção de superioridade de gênero, que crêem ser bíblica. Tenho pena desses homens que se sentem superiores apoiados num sofisma. Sua identidade é construída em alicerce de areia e está sempre ameaçando ruir-se, tornando-os vítimas miseráveis da mentira que pregaram para si mesmos. Essa noção nos aprisiona aos gêneros em vez de nos libertar na identidade pessoal. Nosso deusinho repete os preconceitos e machismos da cultura brasileira com uma roupagem religiosa.
O homem-macho é auto-suficiente. A mulher é ser inferior, incapaz. Ele é senhor em si mesmo, mas ela precisa dele e, sem um representante masculino qualquer (mesmo solteira terá de ter algum macho líder), nem autorizada espiritualmente está. Universalizando o padrão que Deus estabeleceu apenas para o lar, aleijam funcionalmente a mulher no Corpo de Cristo. Assim como as muçulmanas, as mulheres evangélicas são impedidas de exercer liderança ou espiritualidade plena.
Muitos homens evangélicos, embriagados de testosterona religiosa, ainda são guiados pela soberania do seu sexo. E por causa disso muitos vivem numa Jihad teológica. Em vez de amarem uns aos outros, inventam biblicismos para justificar adultérios; se sentem roubados por Deus de seu direito fundamental de ter um harém e formam um harém espírito-emocional ao redor de si mesmos. Enquanto isso muitas mulheres crentes frustradas se policiam para parar antes, saber menos, demonstrar mais medo, ser mais frágeis, mutilando o Corpo de Cristo de sua contribuição. Se não fizerem isso podem terminar como as mulheres da música de Chico Buarque de Hollanda: “sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta”. São mulheres descartáveis do reino evangélico-islâmico.
• Bráulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, e presidente da JOCUM — Jovens com Uma Missão. E-mail: braulia_ribeiro@yahoo.com
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"Sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta"
Lembro-me do momento na infância em que descobri que mulheres de alguma forma valiam menos do que homens. Um dia minha mãe se referiu a meu irmão mais novo como seu primogênito. Reagi: “Eu sou a primeira filha, mamãe...” E ela, como boa judia mineira, conformada: “Não, minha filha, mulher não conta...”
Aquele “mulher não conta” ecoou nos meus ouvidos de criança por muito tempo. Assim que me tornei missionária, bem jovem, não me senti limitada por ser mulher. Na missão a consciência de gênero era difusa. Eu valia não pelo sexo, mas por ser eu, quem Deus me criou para ser. Vivi com liberdade servindo a Deus, descobrindo índios na selva remota. Mas mesmo assim o pseudo-machismo bíblico tinha eco em mim. Casei-me e me apaguei. Agora eu tinha um homem para ocupar o palco do destino que Deus tinha para nós (submissão, sob-missão, sem missão pessoal). O projeto de ser esposa adequadamente tomou o lugar do projeto de vida. A necessidade de destino foi substituída pelo conforto dos braços machos ao meu redor.
Não sei quantos anos dormi assim em berço esplêndido. Quando acordei já era mulher de meia-idade, menos mulher por menos encantos. Vi-me mulher inteira mas o fui em pedaços. Não consegui combinar a mulher com valor intrínseco com esposa e mãe. Deixei-me sufocar pela cultura teológica que me extraía a importância e a autonomia.
Ironicamente só despertei quando, ao visitar uma tribo que contactara vinte anos antes, vi-me obrigada a me desnudar, quarentona, do mesmo jeito que o fazia quando jovem solteira. Minha nudez ousada era a mesma, mas minha alma era caída, pesada de preconceitos. Deus usou aquele momento único de nudez real para me confrontar com quem eu era. Continuo casada e feliz, mas já não sou uma metade. Sou um ser inteiro, inteiro em seu valor.
Muitos homens no Brasil repousam sua masculinidade numa falsa noção de superioridade de gênero, que crêem ser bíblica. Tenho pena desses homens que se sentem superiores apoiados num sofisma. Sua identidade é construída em alicerce de areia e está sempre ameaçando ruir-se, tornando-os vítimas miseráveis da mentira que pregaram para si mesmos. Essa noção nos aprisiona aos gêneros em vez de nos libertar na identidade pessoal. Nosso deusinho repete os preconceitos e machismos da cultura brasileira com uma roupagem religiosa.
O homem-macho é auto-suficiente. A mulher é ser inferior, incapaz. Ele é senhor em si mesmo, mas ela precisa dele e, sem um representante masculino qualquer (mesmo solteira terá de ter algum macho líder), nem autorizada espiritualmente está. Universalizando o padrão que Deus estabeleceu apenas para o lar, aleijam funcionalmente a mulher no Corpo de Cristo. Assim como as muçulmanas, as mulheres evangélicas são impedidas de exercer liderança ou espiritualidade plena.
Muitos homens evangélicos, embriagados de testosterona religiosa, ainda são guiados pela soberania do seu sexo. E por causa disso muitos vivem numa Jihad teológica. Em vez de amarem uns aos outros, inventam biblicismos para justificar adultérios; se sentem roubados por Deus de seu direito fundamental de ter um harém e formam um harém espírito-emocional ao redor de si mesmos. Enquanto isso muitas mulheres crentes frustradas se policiam para parar antes, saber menos, demonstrar mais medo, ser mais frágeis, mutilando o Corpo de Cristo de sua contribuição. Se não fizerem isso podem terminar como as mulheres da música de Chico Buarque de Hollanda: “sem carinho, sem coberta, no tapete atrás da porta”. São mulheres descartáveis do reino evangélico-islâmico.
• Bráulia Ribeiro é missionária em Porto Velho, RO, e presidente da JOCUM — Jovens com Uma Missão. E-mail: braulia_ribeiro@yahoo.com
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