Opinião
- 04 de dezembro de 2018
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Justiça e transformação social: os sinais do reino
Por Mauricio Cunha
“Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.” (Isaías 1: 17)
“Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o desamparado.” (Salmos 82:3)
“Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene.” (Amós 5:24)
O tema da justiça social e sua relação com a Missão sempre foi alvo de controvérsias na Igreja. A discussão sobre as questões relativas à Justiça e transformação se inserem num contexto mais amplo, da relação da Igreja com a cultura abrangente, evocando diferentes concepções teológicas e filosóficas. Recentemente, a polêmica foi aguçada nos Estados Unidos, com a publicação do texto Statement on Social Justice and the Gospel, apoiado por John MacArthur, Douglas Wilson, Voddie Baucham, entre outros líderes cristãos.
Mais de 4.500 pastores americanos assinaram a Declaração, denunciando o chamado “evangelho da justiça social”.
Este artigo apresenta um contraponto, em face da relevância do tema para a Igreja brasileira, a nossa realidade social, e as sérias implicações que a disseminação deste conteúdo pode trazer para a Missão da Igreja e as iniciativas e organizações de base cristã que atuam na área da Justiça Social.
A Declaração constitui mais um capítulo desta grande controvérsia nos EUA, colocando em polos opostos o grupo defensor da Justiça Social e o grupo mais conservador e fundamentalista da igreja americana, especialmente nas questões relativas ao racismo. Ela é uma resposta ao movimento da “Justiça Social”, que vê o racismo no próprio DNA da América, acreditando na primazia da identidade de grupo baseada na cor da pele (assim, seu uso sem remorso da frase “privilégio branco”), juntamente com uma sociologia que vê o mundo como uma luta de poder de “soma zero” entre grupos étnicos (ou seja, se um ganha, é porque o outro está perdendo). Embora esta seja uma questão também latente no Brasil, no nosso caso, talvez, pudéssemos traçar um paralelo com a questão da luta de classes e da desigualdade social, e não apenas racial.
Segundo Scott Allen (DNA), há diversos pontos positivos no chamado “evangelho social” norte-americano, entre eles a preocupação com questões sociais, como a pobreza, o racismo e a situação do refugiado; o anseio por ver as comunidades florescerem, e a não-adoção uma teologia antibíblica, prejudicada pelo dualismo sagrado-secular. Ou seja, os defensores do evangelho social acreditam que a igreja dever estar engajada na cultura, lutando contra a injustiça e trabalhando para libertar os empobrecidos e oprimidos.
No entanto, pesa contra esta corrente de pensamento uma questão fundamental, que é adoção acrítica de algumas suposições sobre justiça social provenientes da cultura mais ampla e sem respaldo bíblico. Inadvertidamente, permitiu-se que suposições seculares informassem sua teologia do engajamento cultural. Como exemplo, sua mentalidade antibíblica é bem captada nesta citação do defensor do evangelho social, o jornalista Horace Greeley:
“O coração do homem não é depravado. . . suas paixões não induzem a fazer errado e, portanto, por suas ações, não produzem o mal. O mal só flui da desigualdade social. Dê [pessoas] escopo completo, liberdade, um desenvolvimento perfeito e completo, e a felicidade universal deve ser o resultado ... cria uma nova forma de sociedade na qual isso será possível. . . então você terá a sociedade perfeita; então você terá o Reino dos Céus.”
Vemos aqui uma negação do pecado inerente ao coração humano como resultado da Queda, ignorando a dimensão individual da salvação. A confusão sobre a justiça precisa ser substituída por um cuidadoso discernimento das diferenças fundamentais entre a justiça bíblica e a “justiça social” nos termos “mundanos” ou meramente humanistas.
O problema com esta corrente da “justiça social” não é sua paixão em engajar a cultura e lutar pela justiça, mas a ideologia antibíblica que, muitas vezes, vem no mesmo pacote.
A História se repete
Em resposta ao movimento do “evangelho social” e suas concepções humanistas, o movimento fundamentalista levantou-se para defender o evangelho e o ensino bíblico ortodoxo, condenando os defensores do evangelho social por seu ensino supostamente herético. Mas ao fazê-lo, eles jogaram o “bebê para fora com a água do banho”. Qualquer conversa sobre transformação social e cultural passou a ser suspeita. Lutar por justiça virou uma distração da pregação do evangelho. Para este grupo, a igreja deve se retirar da cultura secular e se concentrar exclusivamente na santidade pessoal e no evangelismo.
O que foi perdido neste episódio trágico foi a histórica teologia bíblica de justiça e engajamento cultural, uma abordagem ao ministério que une o anúncio do evangelho e o discipulado ao impacto social e cultural.
O debate de hoje sobre “justiça social” na igreja evangélica parece assustadoramente semelhante ao debate que levou à divisão na igreja protestante ocidental no início do século XX, com o recrudescimento do fundamentalismo. As tendências extremas permanecem, o pêndulo continua a girar de lado a lado, e as polarizações voltam. O História se repete, e a igreja não aprende.
Considerações sobre o Statement
Reconhecemos a grande contribuição e o imenso legado deixado por alguns líderes que assinaram o Statement, assim como reforçamos que a maioria das afirmações, especialmente as de ordem dogmática acerca das verdades fundamentais da fé cristã, está correta e reflete a ortodoxia bíblica. Nos entanto, destacamos humildemente aqui ao menos dois fragmentos problemáticos do texto, que podem trazer sérias implicações para a Missão da Igreja, seu engajamento social e seu trabalho de Discipulado da Nação, especialmente num país como o nosso, repleto de desigualdades e injustiças. São eles:
Sessão 8 (A Igreja):
“Nós enfaticamente negamos que ensinos acerca de questões sociais – ou ativismos que visam remodelar a cultura – são tão vitais para a vida e a saúde da igreja quanto a pregação do evangelho e a exposição das Escrituras. Historicamente, tais coisas tendem a se tornar distorções que inevitavelmente levam ao abandono do evangelho.”
Sessão 14 (Racismo):
“Nós enfaticamente negamos que o ativismo sociopolítico deve ser visto como um componente integral do evangelho ou como primários à Missão da Igreja. Embora os crentes podem e devem utilizar todos os meios legais que Deus providencialmente estabeleceu para ter algum efeito sobre leis de uma sociedade, nós negamos que estas atividades constituam, nem evidência de fé salvadora, ou constituam uma parte central da missão da igreja dada a ela por Jesus Cristo, seu Cabeça. Nós negamos que leis e regulamentos possuam qualquer poder inerente para mudar corações pecaminosos”.
Isso chega muito perto de dizer que cuidar dos pobres, lutar contra o racismo, o aborto, o tráfico humano, o abuso sexual de crianças, a violência contra mulher, a letalidade da juventude, etc., é uma atividade de segunda linha e uma “distração” do Evangelho. Phil Johnson, um colaborador próximo de John MacArthur, chegou a afirmar que: “ganhar a cultura, engajar a cultura, mudar a cultura tão ambígua quanto ela é, a própria linguagem significa que a abandono da missão já está em andamento”.
Para Johnson, trabalhar pela transformação social e cultural reflete a "abandono da missão". Essa é outra maneira de dizer "uma distração" da missão central da igreja - a proclamação do evangelho. Significa também a negação da história de reformadores sociais cristãos: Amy Carmichael, William Wilberforce, William Carey, entre outros.
Nós já ouvimos isso antes, e o resultado no século XX foi a redução do escopo da Missão no Século XX e a “perda da batalha cultural” no mundo ocidental.
Podemos apontar diversos problemas com estes fragmentos do Statement. Percebe-se uma falta de análise contextual das Escrituras e a desconsideração da necessidade de uma mediação socioanalítica contextualizada. Cremos que a Verdade de Deus é eterna, imutável, supracultural e supratemporal, mas a elaboração desta Verdade, ou seja, sua interpretação e aplicação se dão em contexto, no tempo e na história.
Paul Hiebert, missiólogo, afirma que toda igreja precisa desenvolver uma teologia contextual, que faça sentido em sua cultura e que responda a questões de relevância cultural. Não podemos apregoar o amor de Deus e ignorar a iniquidade estrutural e sistêmica de sociedades profundamente fundamentadas na desigualdade e exclusão. No decorrer da história da Igreja, há várias evidências de diferentes elaborações teológicas, missiológicas e eclesiológicas, elaboradas de acordo com contextos e situações diferentes, ou em reação a realidades sociopolíticas de dominação e exclusão (por exemplo, a igreja donatista, no norte da África).
Outra questão profundamente problemática no Statement é o fato de, se não ignorar, pelo menos minimizar o aspecto coletivo da obra redentora de Cristo. Segundo Scott Allen (DNA), a Cruz de Cristo tem aplicação tanto pessoal quanto cultural. Há um paralelo entre o processo de salvação individual (justificação, santificação e glorificação) e o processo social e global do avanço do Reino (a cruz, a Grande Comissão e o Discipulado das Nações, e a consumação dos séculos). Ambas as implicações são, num mesmo sentido, processos de 3 passos. Ambas fluem do trabalho consumado de Cristo na cruz, e sua vitória sobre o mal. A primeira (individual) torna possível a segunda (social / global). Em ambos os casos, o “pedaço do meio” (santificação pessoal e o discipulado público das nações) é um processo complexo de vitórias e fracassos, avanços e retrocessos, altos e baixos, em que vivemos como novas criaturas em um mundo ainda caído.
A dimensão coletiva do pecado, negligenciada na Declaração, é reafirmada de várias formas nas Escrituras, tanto no Antigo Testamento como no Novo. Assim, vemos a advertência de Ezequiel (“Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão, e próspera ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado” – 16:49), e o próprio Jesus tratando o pecado coletivamente, referindo-se a cidades inteiras. “Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se operaram, há muito elas se teriam arrependido em cilício e em cinza” (Mateus 11:21); “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que a ti são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta a sua ninhada debaixo das asas, e não quiseste”! (Lucas 13:34).
Percebe-se, então, que o que está em jogo entre o debate sobre a preponderância do pecado (ou da dimensão da salvação) “individual versus coletiva” talvez seja o mesmo debate “indivíduo & sociedade” das ciências sociais, que, ao negar a busca do equilíbrio, reduz a leitura de mundo e, consequentemente, a missiologia cristã.
O Movimento internacional DNA – Disciple Nations Alliance, que está ativo no Brasil, afirma que a Justiça é um produto da cultura do reino. Significa fazer o que é certo para os outros, e reparar o que está errado. O movimento advoga uma visão bíblica e equilibrada de Justiça, rompendo com o dualismo sagrado versus secular que conduz ao reducionismo fundamentalista, sem abraçar ideologias humanistas na concepção de justiça social.
Timothy Keller nos instrui que, para andarmos com Deus, temos de fazer justiça, com amor misericordioso. O termo Justiça (mishpat), em suas várias formas, ocorre mais de duzentas vezes no Antigo Testamento Hebraico. De acordo com seu significado mais básico, devemos tratar as pessoas com imparcialidade. Mishpat significa absolver ou punir cada pessoa nos méritos do caso, independentemente da raça ou posição social. As pessoas que cometerem o mesmo erro devem receber a mesma punição. Contudo, mishpat significa mais do que punição justa pelo erro cometido. Significa assegurar os direitos de cada um. Mishpat, é dar às pessoas o que lhes é devido, seja punição, seja proteção ou cuidado. Conforme a Bíblia, a mishpat, ou a justiça, de uma sociedade é avaliada de acordo com o tratamento dado a esses grupos. Qualquer negligência em relação às necessidades de quem faz parte desse quarteto não é simplesmente falta de misericórdia ou caridade, mas violação da justiça, da mishpat. Deus ama e defende quem tem menos poder econômico e social, e devemos agir da mesma forma. É esse o significado de “fazer justiça”. (KELLER, p. 24 a 26)
O conceito de Justiça Social não é encontrado, nestes termos, nas Escrituras, mas está claramente ancorado na narrativa bíblica. Miller (2015) nos traz um resgate histórico do termo, iniciando com Tomás de Aquino, que utilizou o termo justiça geral, trazendo a noção do direcionamento do homem para o bem comum, e não apenas o seu próprio bem. Em 1840, o jesuíta italiano Luigi Taparelli Dazeglio, a partir do conceito de Aquino, cunhou o termo justiça social, em resposta às profundas transformações que aconteciam em decorrência da Revolução Industrial. Na perspectiva de Taparelli, o conceito de justiça social estava enraizado na liberdade e no respeito pelos seres humanos e na habilidade de uma sociedade em permitir que a família, a igreja e as organizações e associações de base comunitária florescessem, para o bem da coletividade. Suas ideias influenciaram também a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891. Embora hoje, muitas vezes, o termo “justiça social” possa estar associado apenas ao discurso “de esquerda” e de ações do Estado para redistribuição da riqueza, sua origem tem base teológica e cristã.
Não vamos repetir o trágico erro da Igreja ocidental do início do século XX. A necessidade urgente de hoje, como era naquela época, é recuperar uma abordagem bíblica e ortodoxa da justiça e do engajamento cultural.
Fontes:
- Abraçando uma teologia de unidade na diversidade: Lições da história da igreja no norte da África – Mons Gumar Selsto e Frank-Ole Thoresen, Ultimato.
- CUNHA, Mauricio. O Reino de Deus e a transformação social: fundamentos, princípios e ferramentas. Viçosa: Ultimato, 2018.
- KELLER, Timothy. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Vida Nova, 2013.
- MILLER, Darrow. Rethinking Social Justice: restoring biblical compassion. Seattle: YWAM Publishing, 2015
- Notas de Scott Allen, DNA – Disciple the Nations Alliance
• Mauricio José da Silva Cunha é engenheiro agrônomo, administrador de empresas e mestre em antropologia social. É fundador e presidente do Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral (CADI). É autor dos livros O Reino de Deus e a Transformação Social, O Reino entre Nós e Cosmovisão Cristã e Transformação. É assessor da Aliança Evangélica Brasileira e conselheiro nacional de assistência social.
Leia mais
» A luta pela justiça social tem respaldo bíblico?
“Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.” (Isaías 1: 17)
“Fazei justiça ao fraco e ao órfão, procedei retamente para com o aflito e o desamparado.” (Salmos 82:3)
“Antes, corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene.” (Amós 5:24)
O tema da justiça social e sua relação com a Missão sempre foi alvo de controvérsias na Igreja. A discussão sobre as questões relativas à Justiça e transformação se inserem num contexto mais amplo, da relação da Igreja com a cultura abrangente, evocando diferentes concepções teológicas e filosóficas. Recentemente, a polêmica foi aguçada nos Estados Unidos, com a publicação do texto Statement on Social Justice and the Gospel, apoiado por John MacArthur, Douglas Wilson, Voddie Baucham, entre outros líderes cristãos.
Mais de 4.500 pastores americanos assinaram a Declaração, denunciando o chamado “evangelho da justiça social”.
Este artigo apresenta um contraponto, em face da relevância do tema para a Igreja brasileira, a nossa realidade social, e as sérias implicações que a disseminação deste conteúdo pode trazer para a Missão da Igreja e as iniciativas e organizações de base cristã que atuam na área da Justiça Social.
A Declaração constitui mais um capítulo desta grande controvérsia nos EUA, colocando em polos opostos o grupo defensor da Justiça Social e o grupo mais conservador e fundamentalista da igreja americana, especialmente nas questões relativas ao racismo. Ela é uma resposta ao movimento da “Justiça Social”, que vê o racismo no próprio DNA da América, acreditando na primazia da identidade de grupo baseada na cor da pele (assim, seu uso sem remorso da frase “privilégio branco”), juntamente com uma sociologia que vê o mundo como uma luta de poder de “soma zero” entre grupos étnicos (ou seja, se um ganha, é porque o outro está perdendo). Embora esta seja uma questão também latente no Brasil, no nosso caso, talvez, pudéssemos traçar um paralelo com a questão da luta de classes e da desigualdade social, e não apenas racial.
Segundo Scott Allen (DNA), há diversos pontos positivos no chamado “evangelho social” norte-americano, entre eles a preocupação com questões sociais, como a pobreza, o racismo e a situação do refugiado; o anseio por ver as comunidades florescerem, e a não-adoção uma teologia antibíblica, prejudicada pelo dualismo sagrado-secular. Ou seja, os defensores do evangelho social acreditam que a igreja dever estar engajada na cultura, lutando contra a injustiça e trabalhando para libertar os empobrecidos e oprimidos.
No entanto, pesa contra esta corrente de pensamento uma questão fundamental, que é adoção acrítica de algumas suposições sobre justiça social provenientes da cultura mais ampla e sem respaldo bíblico. Inadvertidamente, permitiu-se que suposições seculares informassem sua teologia do engajamento cultural. Como exemplo, sua mentalidade antibíblica é bem captada nesta citação do defensor do evangelho social, o jornalista Horace Greeley:
“O coração do homem não é depravado. . . suas paixões não induzem a fazer errado e, portanto, por suas ações, não produzem o mal. O mal só flui da desigualdade social. Dê [pessoas] escopo completo, liberdade, um desenvolvimento perfeito e completo, e a felicidade universal deve ser o resultado ... cria uma nova forma de sociedade na qual isso será possível. . . então você terá a sociedade perfeita; então você terá o Reino dos Céus.”
Vemos aqui uma negação do pecado inerente ao coração humano como resultado da Queda, ignorando a dimensão individual da salvação. A confusão sobre a justiça precisa ser substituída por um cuidadoso discernimento das diferenças fundamentais entre a justiça bíblica e a “justiça social” nos termos “mundanos” ou meramente humanistas.
O problema com esta corrente da “justiça social” não é sua paixão em engajar a cultura e lutar pela justiça, mas a ideologia antibíblica que, muitas vezes, vem no mesmo pacote.
A História se repete
Em resposta ao movimento do “evangelho social” e suas concepções humanistas, o movimento fundamentalista levantou-se para defender o evangelho e o ensino bíblico ortodoxo, condenando os defensores do evangelho social por seu ensino supostamente herético. Mas ao fazê-lo, eles jogaram o “bebê para fora com a água do banho”. Qualquer conversa sobre transformação social e cultural passou a ser suspeita. Lutar por justiça virou uma distração da pregação do evangelho. Para este grupo, a igreja deve se retirar da cultura secular e se concentrar exclusivamente na santidade pessoal e no evangelismo.
O que foi perdido neste episódio trágico foi a histórica teologia bíblica de justiça e engajamento cultural, uma abordagem ao ministério que une o anúncio do evangelho e o discipulado ao impacto social e cultural.
O debate de hoje sobre “justiça social” na igreja evangélica parece assustadoramente semelhante ao debate que levou à divisão na igreja protestante ocidental no início do século XX, com o recrudescimento do fundamentalismo. As tendências extremas permanecem, o pêndulo continua a girar de lado a lado, e as polarizações voltam. O História se repete, e a igreja não aprende.
Considerações sobre o Statement
Reconhecemos a grande contribuição e o imenso legado deixado por alguns líderes que assinaram o Statement, assim como reforçamos que a maioria das afirmações, especialmente as de ordem dogmática acerca das verdades fundamentais da fé cristã, está correta e reflete a ortodoxia bíblica. Nos entanto, destacamos humildemente aqui ao menos dois fragmentos problemáticos do texto, que podem trazer sérias implicações para a Missão da Igreja, seu engajamento social e seu trabalho de Discipulado da Nação, especialmente num país como o nosso, repleto de desigualdades e injustiças. São eles:
Sessão 8 (A Igreja):
“Nós enfaticamente negamos que ensinos acerca de questões sociais – ou ativismos que visam remodelar a cultura – são tão vitais para a vida e a saúde da igreja quanto a pregação do evangelho e a exposição das Escrituras. Historicamente, tais coisas tendem a se tornar distorções que inevitavelmente levam ao abandono do evangelho.”
Sessão 14 (Racismo):
“Nós enfaticamente negamos que o ativismo sociopolítico deve ser visto como um componente integral do evangelho ou como primários à Missão da Igreja. Embora os crentes podem e devem utilizar todos os meios legais que Deus providencialmente estabeleceu para ter algum efeito sobre leis de uma sociedade, nós negamos que estas atividades constituam, nem evidência de fé salvadora, ou constituam uma parte central da missão da igreja dada a ela por Jesus Cristo, seu Cabeça. Nós negamos que leis e regulamentos possuam qualquer poder inerente para mudar corações pecaminosos”.
Isso chega muito perto de dizer que cuidar dos pobres, lutar contra o racismo, o aborto, o tráfico humano, o abuso sexual de crianças, a violência contra mulher, a letalidade da juventude, etc., é uma atividade de segunda linha e uma “distração” do Evangelho. Phil Johnson, um colaborador próximo de John MacArthur, chegou a afirmar que: “ganhar a cultura, engajar a cultura, mudar a cultura tão ambígua quanto ela é, a própria linguagem significa que a abandono da missão já está em andamento”.
Para Johnson, trabalhar pela transformação social e cultural reflete a "abandono da missão". Essa é outra maneira de dizer "uma distração" da missão central da igreja - a proclamação do evangelho. Significa também a negação da história de reformadores sociais cristãos: Amy Carmichael, William Wilberforce, William Carey, entre outros.
Nós já ouvimos isso antes, e o resultado no século XX foi a redução do escopo da Missão no Século XX e a “perda da batalha cultural” no mundo ocidental.
Podemos apontar diversos problemas com estes fragmentos do Statement. Percebe-se uma falta de análise contextual das Escrituras e a desconsideração da necessidade de uma mediação socioanalítica contextualizada. Cremos que a Verdade de Deus é eterna, imutável, supracultural e supratemporal, mas a elaboração desta Verdade, ou seja, sua interpretação e aplicação se dão em contexto, no tempo e na história.
Paul Hiebert, missiólogo, afirma que toda igreja precisa desenvolver uma teologia contextual, que faça sentido em sua cultura e que responda a questões de relevância cultural. Não podemos apregoar o amor de Deus e ignorar a iniquidade estrutural e sistêmica de sociedades profundamente fundamentadas na desigualdade e exclusão. No decorrer da história da Igreja, há várias evidências de diferentes elaborações teológicas, missiológicas e eclesiológicas, elaboradas de acordo com contextos e situações diferentes, ou em reação a realidades sociopolíticas de dominação e exclusão (por exemplo, a igreja donatista, no norte da África).
Outra questão profundamente problemática no Statement é o fato de, se não ignorar, pelo menos minimizar o aspecto coletivo da obra redentora de Cristo. Segundo Scott Allen (DNA), a Cruz de Cristo tem aplicação tanto pessoal quanto cultural. Há um paralelo entre o processo de salvação individual (justificação, santificação e glorificação) e o processo social e global do avanço do Reino (a cruz, a Grande Comissão e o Discipulado das Nações, e a consumação dos séculos). Ambas as implicações são, num mesmo sentido, processos de 3 passos. Ambas fluem do trabalho consumado de Cristo na cruz, e sua vitória sobre o mal. A primeira (individual) torna possível a segunda (social / global). Em ambos os casos, o “pedaço do meio” (santificação pessoal e o discipulado público das nações) é um processo complexo de vitórias e fracassos, avanços e retrocessos, altos e baixos, em que vivemos como novas criaturas em um mundo ainda caído.
A dimensão coletiva do pecado, negligenciada na Declaração, é reafirmada de várias formas nas Escrituras, tanto no Antigo Testamento como no Novo. Assim, vemos a advertência de Ezequiel (“Eis que esta foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão, e próspera ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do pobre e do necessitado” – 16:49), e o próprio Jesus tratando o pecado coletivamente, referindo-se a cidades inteiras. “Ai de ti, Corazin! ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se operaram, há muito elas se teriam arrependido em cilício e em cinza” (Mateus 11:21); “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que a ti são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta a sua ninhada debaixo das asas, e não quiseste”! (Lucas 13:34).
Percebe-se, então, que o que está em jogo entre o debate sobre a preponderância do pecado (ou da dimensão da salvação) “individual versus coletiva” talvez seja o mesmo debate “indivíduo & sociedade” das ciências sociais, que, ao negar a busca do equilíbrio, reduz a leitura de mundo e, consequentemente, a missiologia cristã.
O Movimento internacional DNA – Disciple Nations Alliance, que está ativo no Brasil, afirma que a Justiça é um produto da cultura do reino. Significa fazer o que é certo para os outros, e reparar o que está errado. O movimento advoga uma visão bíblica e equilibrada de Justiça, rompendo com o dualismo sagrado versus secular que conduz ao reducionismo fundamentalista, sem abraçar ideologias humanistas na concepção de justiça social.
Timothy Keller nos instrui que, para andarmos com Deus, temos de fazer justiça, com amor misericordioso. O termo Justiça (mishpat), em suas várias formas, ocorre mais de duzentas vezes no Antigo Testamento Hebraico. De acordo com seu significado mais básico, devemos tratar as pessoas com imparcialidade. Mishpat significa absolver ou punir cada pessoa nos méritos do caso, independentemente da raça ou posição social. As pessoas que cometerem o mesmo erro devem receber a mesma punição. Contudo, mishpat significa mais do que punição justa pelo erro cometido. Significa assegurar os direitos de cada um. Mishpat, é dar às pessoas o que lhes é devido, seja punição, seja proteção ou cuidado. Conforme a Bíblia, a mishpat, ou a justiça, de uma sociedade é avaliada de acordo com o tratamento dado a esses grupos. Qualquer negligência em relação às necessidades de quem faz parte desse quarteto não é simplesmente falta de misericórdia ou caridade, mas violação da justiça, da mishpat. Deus ama e defende quem tem menos poder econômico e social, e devemos agir da mesma forma. É esse o significado de “fazer justiça”. (KELLER, p. 24 a 26)
O conceito de Justiça Social não é encontrado, nestes termos, nas Escrituras, mas está claramente ancorado na narrativa bíblica. Miller (2015) nos traz um resgate histórico do termo, iniciando com Tomás de Aquino, que utilizou o termo justiça geral, trazendo a noção do direcionamento do homem para o bem comum, e não apenas o seu próprio bem. Em 1840, o jesuíta italiano Luigi Taparelli Dazeglio, a partir do conceito de Aquino, cunhou o termo justiça social, em resposta às profundas transformações que aconteciam em decorrência da Revolução Industrial. Na perspectiva de Taparelli, o conceito de justiça social estava enraizado na liberdade e no respeito pelos seres humanos e na habilidade de uma sociedade em permitir que a família, a igreja e as organizações e associações de base comunitária florescessem, para o bem da coletividade. Suas ideias influenciaram também a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891. Embora hoje, muitas vezes, o termo “justiça social” possa estar associado apenas ao discurso “de esquerda” e de ações do Estado para redistribuição da riqueza, sua origem tem base teológica e cristã.
Não vamos repetir o trágico erro da Igreja ocidental do início do século XX. A necessidade urgente de hoje, como era naquela época, é recuperar uma abordagem bíblica e ortodoxa da justiça e do engajamento cultural.
Fontes:
- Abraçando uma teologia de unidade na diversidade: Lições da história da igreja no norte da África – Mons Gumar Selsto e Frank-Ole Thoresen, Ultimato.
- CUNHA, Mauricio. O Reino de Deus e a transformação social: fundamentos, princípios e ferramentas. Viçosa: Ultimato, 2018.
- KELLER, Timothy. Justiça Generosa: a graça de Deus e a justiça social. São Paulo: Vida Nova, 2013.
- MILLER, Darrow. Rethinking Social Justice: restoring biblical compassion. Seattle: YWAM Publishing, 2015
- Notas de Scott Allen, DNA – Disciple the Nations Alliance
• Mauricio José da Silva Cunha é engenheiro agrônomo, administrador de empresas e mestre em antropologia social. É fundador e presidente do Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral (CADI). É autor dos livros O Reino de Deus e a Transformação Social, O Reino entre Nós e Cosmovisão Cristã e Transformação. É assessor da Aliança Evangélica Brasileira e conselheiro nacional de assistência social.
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Ricardo Barbosa