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- 28 de junho de 2019
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John Stott: radical, mas não um extremista
Por Reinaldo Percinoto Jr.
Ao termos contato com os escritos e reflexões bíblicas de John Stott, não demora muito para percebermos a profunda reverência (ou seria uma reverente profundidade?) que ele cultivava pelas Escrituras. E sua devoção pela Palavra de Deus invariavelmente acabava refletida em seus posicionamentos e atitudes marcadamente equilibradas.
Stott, cuja postura humilde e discreta era reconhecida e atestada por todos que tiveram o privilégio de um convívio pessoal, vez ou outra deixava transparecer seu esforço e disciplina em busca de uma compreensão íntegra e integral das Escrituras. Foi assim em fevereiro de 1996, quando estava participando de uma visita ministerial a Cuba, e, num momento mais privado com estudantes e obreiros do movimento estudantil daquele país, comentou que lia a Bíblia todo ano – “o Antigo Testamento uma vez e o Novo Testamento duas vezes”, dizia. E, compartindo com eles o trecho de 2 Coríntios 4.16-18, expôs aspectos pessoais de sua vida e ministério cristão. Destacou que o versículo 16 possuía um significado especial para ele, “onde o apóstolo [Paulo] estabelece um contraste entre o exterior e o interior. Uma vez que já tenho 75 anos, estou consciente de que meu "exterior" está se desgastando: sinto a diminuição do poder do corpo e da mente. Mas creio que também conheço o que significa ser renovado dia após dia "interiormente". Há uma pequena tensão entre os dois aspectos, entre o exterior e o interior, entre o desgaste e a renovação. Peço a Deus que a vida de Jesus se manifeste em minha vida mortal, e que continue dando-me forças para ministrar até quando Ele queira”.
Esse mesmo equilíbrio era demonstrado por ele ao descrever sua “peregrinação” com a Palavra de Deus. Ao falar do impacto pessoal que a Bíblia exercia em sua vida cotidiana, dizia estar convencido de que a Escritura Sagrada era tanto “inspirada por Deus (quer dizer, que se origina Nele) como útil (valiosa para nós)”, lembrando o que é afirmado por Paulo em 2 Timóteo 3.16. “Esta é a razão pela qual devemos sempre manter unidas a autoridade e a interpretação da Bíblia”, completava. Segundo ele, não havia muito valor em reconhecer que a Bíblia possui autoridade, se não a podemos compreender. E, por outro lado, é igualmente de pouco valor termos uma Bíblia “inteligível”, mas que carece de autoridade. “Então”, dizia, “necessitamos de uma Bíblia que seja tanto inteligível como autoritativa. Minha preocupação pessoal é permitir que Deus me examine e que eu escute sua Palavra com humildade. É bom estudar a Bíblia para esclarecê-la, mas é ainda mais importante "pôr-se debaixo" da Escritura e receber com mansidão o que ela – ou mais exatamente, Deus – tem a dizer-nos”. E concluía: “Por isso, diariamente, procuro humilhar-me diante da Escritura, clamando a Deus para que me fale através dela, e para que me dê a graça para entender, crer e obedecer”.
Esta postura de acolhimento reverente à Palavra de Deus nos lembra a prática monástica de leitura das Escrituras, sistematizada pelo monge cartuxo Guigo II, no século 12, e que se tornou conhecida como “Lectio divina”. Esta prática nos convida a desenvolver uma capacidade de deixarmos para trás nossas preocupações e distrações, abandonando a exigência de que as Escrituras nos deem uma resposta direta e imediata às nossas preocupações atuais mais prementes. Vamos até a Bíblia para ouvir o que o Senhor irá falar; este é o pressuposto da lectio divina, permeado pela mesma atitude e oração do ainda pequeno Samuel: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1 Samuel 3.10).
Uma outra contribuição importante de Stott para a nossa prática de leitura bíblica tem a ver com o desenvolvimento de um processo hermenêutico, ou seja, um processo que nos ajude na compreensão e aplicabilidade do texto que estamos lendo. Ele começa com um convite a reconhecermos que existe “um largo e profundo abismo entre o mundo bíblico e o mundo moderno”, o nosso mundo. Esse “abismo” representa cerca de dois mil anos de mudanças e transformações culturais. Portanto, nosso exercício hermenêutico passa pela tarefa de construirmos “pontes” que permitam a comunicação entre esses “dois mundos”. E isso só se torna possível na medida em que nos dispomos a estudar seriamente os dois extremos do abismo; quer dizer, a ambos os mundos. E Stott lembra que “uma das principais razões que torna isso possível é o fato de que nossa humanidade continua sendo essencialmente a mesma, ainda que nossas culturas possam variar”.
E nesta busca por “construir pontes”, ele nos aconselhava a fazer duas perguntas básicas a cada texto bíblico em estudo, e “fazê-las na ordem correta”. Primeiro, “o que significava/significa?”; e em segundo lugar, “o que nos diz hoje?”. Essa prática relativamente simples nos permite entender o significado do texto em questão; lembrando que este significado não muda com o passar do tempo, pois “um texto quer dizer o que o seu autor quis dizer” (E. D. Hirsh), e que um mesmo texto pode ter um número ilimitado de aplicações, mas apenas um significado: aquele que seu autor estabeleceu. E então, posteriormente, podemos fazer a segunda pergunta, que nos ajudará a encontrar a mensagem contemporânea (para nossos dias) a partir daquele significado original (para os ouvintes/leitores originais). E Stott arrematava suas explicações sobre este processo de “engenharia bíblico-teológica” asseverando que “apenas a reflexão profunda e continuada permitirá uma interação criativa entre o passado e o presente, entre o original e o contemporâneo, entre Deus e nós”.
O legado de John Stott para a santa tarefa da leitura e do estudo das Escrituras é imenso. Ele foi um radical bíblico, no sentido mais verdadeiro deste termo, mas preservando um saudável e notável equilíbrio, que o impediu de sucumbir diante dos extremos do liberalismo teológico e do fundamentalismo religioso. Deus foi gracioso com ele, e devemos orar para que seja conosco também!
Nota
Literatura consultada: “La Biblia: El libro que no tiene competencia”, John Stott, Colección Peregrinajes, Comunidad Internacional de Estudiantes Evangélicos (CIEE).
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Reinaldo Percinoto Jr. mora em Viçosa, MG, com sua esposa Maira e seus dois filhos, João Marcos e Daniel.
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