Opinião
- 16 de julho de 2021
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Jeremias: esperança em tempos de caos
Por Christian Gillis
*Artigo publicado originalmente na edição 390 da revista Ultimato.
O profeta Jeremias viveu dias em que tudo que parecia sólido estava se desmanchando diante dos olhos dos israelitas. A perda da terra, a destruição do templo, a falta de colheitas, o colapso da organização social e política, as mortes por peste, fome e guerra, o exílio de milhares de compatriotas. Todas as referências do que parecia ser constante e significava lar, casa, chão e proteção foram dissolvidas; a insegurança tomou a mente e o coração do povo.
Um nó se instalou na cabeça dos judeus e muitos questionamentos brotaram na alma do povo: como tudo isso poderia acontecer aos que tinham as promessas, ao povo que mantinha o templo e cultuava continuamente com belas liturgias e sacrifícios? É nesse contexto de decadência e ruína do reino de Judá que Deus levanta Jeremias como seu porta-voz, para revelar o diagnóstico da situação, mas principalmente para indicar os caminhos a seguir e sobreviver à crise.
Jeremias é, mais que tudo, o profeta que quer trazer à memória o que pode dar esperança em meio à devastação. Embora sua mensagem inicie com a difícil constatação da derrocada de Israel do Sul, seu propósito é apontar para as saídas providenciadas por Deus, para a continuidade e os desenvolvimentos da história da salvação. Deus tem bons pensamentos e bons propósitos para a humanidade.
O início do ministério profético do jovem Jeremias se deu durante o reinado de Josias (640–609 a.C.), último rei de Judá que buscou servir a Deus. Josias havia promovido melhorias no templo, reformas no culto, e celebrado a Páscoa, e em seus dias a Lei foi redescoberta e anunciada ao povo. Apesar da aprovação e do endosso a tais reformas, Jeremias percebeu que elas eram superficiais, vindas do monarca para o povo, e que seus efeitos não seriam duradouros, pois o coração da população em geral estava distante de Deus. A adoração no templo era apenas estética; no dia a dia a alma dos israelitas estava mesmo voltada para os ídolos e deuses da fertilidade.
Os reis que governaram em seguida (Jeoacaz, Jeoaquim, Joaquim e Zedequias: 609–586 a.C., ano em que Jerusalém foi destruída pelos babilônios) fizeram o que era mau perante os olhos do Senhor. Diante da catástrofe iminente, Jeremias fez duros alertas convocando à conversão, na expectativa de que houvesse arrependimento nacional e a tragédia ainda pudesse ser evitada. Mas tanto o povo como os líderes políticos (reis e seus ministros) e religiosos (sacerdotes e profetas) resistiram à mensagem profética e, obstinados, optaram deliberadamente pela idolatria e pela quebra dos mandamentos da aliança, por perpetuar a violência, a injustiça, a opressão e manter as desigualdades sociais.
Convicto da invasão do país, da devastação das cidades, da desolação do templo, da captura e deportação do povo, da deposição da dinastia real, Jeremias passou a agir para salvar o maior número possível de pessoas. Suas mensagens repletas de imagens vívidas e dramatização avisavam do perigo imediato, mas também visavam orientar e encaminhar o povo para se proteger, de modo que sobrevivesse à conjuntura do desterro.
Jeremias, mais que anunciar desgraças, preocupou-se em discernir a saída das ruínas e dos escombros, em comunicar e apontar os caminhos futuros para depois da crise. Suas principais ênfases garantiam que Deus, por mais difícil que fosse o contexto, não abandonaria seus propósitos redentores nem suas promessas de bênção e salvação.
Vislumbrando o cenário posterior à crise do cativeiro babilônico, Jeremias percebeu e anunciou que Deus preservaria um remanescente do povo a partir do qual seus planos teriam continuidade e desenvolvimento e suas promessas, cumprimento cabal. Por meio de discursos e escritos, Jeremias procurou levantar os olhos do povo, fazê-lo olhar para o futuro, para os dias vindouros, para o tempo da restauração, o tempo em que o Senhor estabeleceria uma nova aliança, que iria muito além dos termos da antiga aliança, mediada por Moisés; uma aliança eterna e universal, mediada por um legítimo descendente de Davi (Jr 33.15-16), aliança que concederia perdão de pecados e uma profunda experiência de renovação das perspectivas, da mente e do coração (Jr 31.31-34).
Usando a chave de leitura proposta por Paulo para abordar o Primeiro Testamento, considerando que “tudo o que no passado foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que [...] tenhamos esperança” (Rm 15.4), há muita inspiração na volumosa obra de Jeremias para o momento que vivemos.
O profeta, ao registrar meticulosamente sua relação com os reis de então, inspira a postura que os servos de Deus devem ter em relação aos governos e à esfera política. Jeremias, ao mesmo tempo que estava atento e ciente do que acontecia no ambiente público, manteve-se apropriadamente distante do envolvimento político, diferentemente de muitos sacerdotes e profetas que se enredaram nos meandros do poder e de interesses vãos. Seu distanciamento adequado possibilitou a denúncia de governos que não tomavam medidas necessárias para cuidar do povo e proteger a vida da população.
Jeremias também indica a necessidade contínua de discernir agendas ocultas que movem alguns sacerdotes e profetas dissimulados que buscam a associação com o poder político, apoiam suas perversidades e induzem o povo a um torpor ideológico. A leitura de seu livro demonstra claramente como a religião muitas vezes é instrumentalizada por governantes, tendo em vista seus interesses efêmeros, com a colaboração de sacerdotes que operam o embuste religioso e profetas que falsificam a gravidade da situação.
Por fim, Jeremias ensina que, apesar de reis e governos maus, apesar de lideranças religiosas que perdem de vista os propósitos divinos, apesar do caos e confusão para os quais a história parece descambar, Deus é o Senhor dos Exércitos, aquele que julga não apenas a Israel, mas todas as nações, todos os governos. Os capítulos finais de seu livro destacam o juízo sobre as nações, inclusive sobre o poder imperial da Babilônia, sinalizando que o reinado do Senhor não se abala, seu reino é eterno haja o que houver, e que um dia todas as babilônias e seus governantes terão fim. Então, ainda que estejamos presenciando devastação hoje, mantenhamos a esperança em Deus viva no coração.
• Christian Gillis é pastor na Igreja Batista da Redenção, em Belo Horizonte, MG.
Imagem: O artista retrata as pedras quebradas de uma cidade outrora bela, grupos de pessoas no horizonte sendo levados para a Babilônia e a pequena figura do profeta, que se perde entre as ruínas. Ele não tem força espiritual para olhar a luz da lua. No entanto, sua luz cai sobre ele como um sinal de esperança. Créditos: Albert Soltanov, 2003
Leia mais
» Estudo bíblico “Jeremias: esperança em tempos de caos”
» Coletânea de devocionais do livro “Refeições Diárias com os Profetas Menores”
*Artigo publicado originalmente na edição 390 da revista Ultimato.
O profeta Jeremias viveu dias em que tudo que parecia sólido estava se desmanchando diante dos olhos dos israelitas. A perda da terra, a destruição do templo, a falta de colheitas, o colapso da organização social e política, as mortes por peste, fome e guerra, o exílio de milhares de compatriotas. Todas as referências do que parecia ser constante e significava lar, casa, chão e proteção foram dissolvidas; a insegurança tomou a mente e o coração do povo.
Um nó se instalou na cabeça dos judeus e muitos questionamentos brotaram na alma do povo: como tudo isso poderia acontecer aos que tinham as promessas, ao povo que mantinha o templo e cultuava continuamente com belas liturgias e sacrifícios? É nesse contexto de decadência e ruína do reino de Judá que Deus levanta Jeremias como seu porta-voz, para revelar o diagnóstico da situação, mas principalmente para indicar os caminhos a seguir e sobreviver à crise.
Jeremias é, mais que tudo, o profeta que quer trazer à memória o que pode dar esperança em meio à devastação. Embora sua mensagem inicie com a difícil constatação da derrocada de Israel do Sul, seu propósito é apontar para as saídas providenciadas por Deus, para a continuidade e os desenvolvimentos da história da salvação. Deus tem bons pensamentos e bons propósitos para a humanidade.
O início do ministério profético do jovem Jeremias se deu durante o reinado de Josias (640–609 a.C.), último rei de Judá que buscou servir a Deus. Josias havia promovido melhorias no templo, reformas no culto, e celebrado a Páscoa, e em seus dias a Lei foi redescoberta e anunciada ao povo. Apesar da aprovação e do endosso a tais reformas, Jeremias percebeu que elas eram superficiais, vindas do monarca para o povo, e que seus efeitos não seriam duradouros, pois o coração da população em geral estava distante de Deus. A adoração no templo era apenas estética; no dia a dia a alma dos israelitas estava mesmo voltada para os ídolos e deuses da fertilidade.
Os reis que governaram em seguida (Jeoacaz, Jeoaquim, Joaquim e Zedequias: 609–586 a.C., ano em que Jerusalém foi destruída pelos babilônios) fizeram o que era mau perante os olhos do Senhor. Diante da catástrofe iminente, Jeremias fez duros alertas convocando à conversão, na expectativa de que houvesse arrependimento nacional e a tragédia ainda pudesse ser evitada. Mas tanto o povo como os líderes políticos (reis e seus ministros) e religiosos (sacerdotes e profetas) resistiram à mensagem profética e, obstinados, optaram deliberadamente pela idolatria e pela quebra dos mandamentos da aliança, por perpetuar a violência, a injustiça, a opressão e manter as desigualdades sociais.
Convicto da invasão do país, da devastação das cidades, da desolação do templo, da captura e deportação do povo, da deposição da dinastia real, Jeremias passou a agir para salvar o maior número possível de pessoas. Suas mensagens repletas de imagens vívidas e dramatização avisavam do perigo imediato, mas também visavam orientar e encaminhar o povo para se proteger, de modo que sobrevivesse à conjuntura do desterro.
Jeremias, mais que anunciar desgraças, preocupou-se em discernir a saída das ruínas e dos escombros, em comunicar e apontar os caminhos futuros para depois da crise. Suas principais ênfases garantiam que Deus, por mais difícil que fosse o contexto, não abandonaria seus propósitos redentores nem suas promessas de bênção e salvação.
Vislumbrando o cenário posterior à crise do cativeiro babilônico, Jeremias percebeu e anunciou que Deus preservaria um remanescente do povo a partir do qual seus planos teriam continuidade e desenvolvimento e suas promessas, cumprimento cabal. Por meio de discursos e escritos, Jeremias procurou levantar os olhos do povo, fazê-lo olhar para o futuro, para os dias vindouros, para o tempo da restauração, o tempo em que o Senhor estabeleceria uma nova aliança, que iria muito além dos termos da antiga aliança, mediada por Moisés; uma aliança eterna e universal, mediada por um legítimo descendente de Davi (Jr 33.15-16), aliança que concederia perdão de pecados e uma profunda experiência de renovação das perspectivas, da mente e do coração (Jr 31.31-34).
Usando a chave de leitura proposta por Paulo para abordar o Primeiro Testamento, considerando que “tudo o que no passado foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que [...] tenhamos esperança” (Rm 15.4), há muita inspiração na volumosa obra de Jeremias para o momento que vivemos.
O profeta, ao registrar meticulosamente sua relação com os reis de então, inspira a postura que os servos de Deus devem ter em relação aos governos e à esfera política. Jeremias, ao mesmo tempo que estava atento e ciente do que acontecia no ambiente público, manteve-se apropriadamente distante do envolvimento político, diferentemente de muitos sacerdotes e profetas que se enredaram nos meandros do poder e de interesses vãos. Seu distanciamento adequado possibilitou a denúncia de governos que não tomavam medidas necessárias para cuidar do povo e proteger a vida da população.
Jeremias também indica a necessidade contínua de discernir agendas ocultas que movem alguns sacerdotes e profetas dissimulados que buscam a associação com o poder político, apoiam suas perversidades e induzem o povo a um torpor ideológico. A leitura de seu livro demonstra claramente como a religião muitas vezes é instrumentalizada por governantes, tendo em vista seus interesses efêmeros, com a colaboração de sacerdotes que operam o embuste religioso e profetas que falsificam a gravidade da situação.
Por fim, Jeremias ensina que, apesar de reis e governos maus, apesar de lideranças religiosas que perdem de vista os propósitos divinos, apesar do caos e confusão para os quais a história parece descambar, Deus é o Senhor dos Exércitos, aquele que julga não apenas a Israel, mas todas as nações, todos os governos. Os capítulos finais de seu livro destacam o juízo sobre as nações, inclusive sobre o poder imperial da Babilônia, sinalizando que o reinado do Senhor não se abala, seu reino é eterno haja o que houver, e que um dia todas as babilônias e seus governantes terão fim. Então, ainda que estejamos presenciando devastação hoje, mantenhamos a esperança em Deus viva no coração.
• Christian Gillis é pastor na Igreja Batista da Redenção, em Belo Horizonte, MG.
Imagem: O artista retrata as pedras quebradas de uma cidade outrora bela, grupos de pessoas no horizonte sendo levados para a Babilônia e a pequena figura do profeta, que se perde entre as ruínas. Ele não tem força espiritual para olhar a luz da lua. No entanto, sua luz cai sobre ele como um sinal de esperança. Créditos: Albert Soltanov, 2003
>> Confira a edição de julho/agosto da revista Ultimato: O que os profetas diriam?
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Ricardo Barbosa