Opinião
- 02 de junho de 2023
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Indígenas e ribeirinhos cuidam da criação de Deus?
Se queremos o jardim de Deus guardado e cuidado, precisamos de um olhar mais cuidadoso que nos livre de repetir discursos prontos e acríticos
Por Phelipe Reis
De uns tempos para cá, tenho ouvido com muita frequência a afirmação de que os povos tradicionais, como os indígenas e os ribeirinhos, protegem seus territórios e cuidam do meio ambiente. Tal afirmação reverberada com certo exagero, tem gerado um desconforto em mim, diante de algumas observações que faço em minhas viagens pelo Amazonas.
Sendo natural do interior do Amazonas e vivendo aqui há trinta anos, tenho tido o privilégio de conhecer rios e comunidades na região do baixo Amazonas. Nos últimos quatro anos, tenho viajado com bastante frequência pelos rios Uaicurapá, Mamuru, Tracajá e pelos rios Andirá e Marau, dentro da Terra Indígena Andirá-Marau, onde vive o povo Sateré-Mawé, cuja população chega a cerca de 10 mil pessoas.
Certa vez, numa viagem pelo rio Marau, após horas de navegação de barco e rabeta, chegamos a uma comunidade Sateré muito distante. Me chamou a atenção a grande quantidade de lixo plástico espalhada pela aldeia – eram embalagens de salgadinhos e bolachas, produtos de higiente e limpeza, balas e doces em geral. Isso deve-se, naturalmente, a uma mudança sociocultural de anos, causada, em parte, pela influência do estilo de vida urbano importado pelos Sateré – processo que se reflete nos hábitos alimentares das pessoas.
Hoje, por exemplo, produtos naturais, carne de caça e pesca, perderam espaço para itens industrializados, como salsicha, calabresa, carne em conserva enlatada, etc., o que aumenta a produção de resíduos plásticos em locais em que não há nenhum sistema de gestão ou coleta desse material. O destino deles será o fogo, o solo ou a água, no processo sazonal de cheia e vazante do rio. Esse mesmo cenário se repete em praticamente todas as outras comunidades indígenas, pelo rio Andirá e Marau.
Gerson Guaita, servidor do ICMBIO em Santarém, PA, descreve observações semelhantes quanto às mudanças nos costumes das comunidades tradicionais: “Anteriormente, a alimentação se baseava exclusivamente em produtos da floresta, nada que gerasse resíduo não orgânico. Hoje não, é grande o consumo de enlatados e produtos embalados e o destino das embalagens acaba sendo o mesmo de antes, porém estes impactam muito mais o ambiente”.
A bióloga e mobilizadora do movimento ambientalista cristão Renovar Nosso Mundo, Raquel Arouca, comenta algo na mesma direção: “Nas minhas visitas ao Amazonas, também vi muito lixo nas comunidades, mas observei que eles não tinham muita percepção do [problema] do lixo, nem da troca de estilo de vida que está ocorrendo e nenhuma percepção das consequências daquela nova realidade”. Por outro lado, Arouca é enfática ao afirmar que “a presença dos povos originários é sinônimo de floresta em pé”.
Dialogando com a reflexão aqui posta, o teólogo Werner Fuchs diz que esse padrão de consumo urbano baseado em produtos industrializados, muitas vezes, é projetado para populações ribeirinhas e indígenas como algo chique. “É uma forma de colonizar as mentes e alterar costumes. Por trás está o interesse comercial, que rejeita ou omite qualquer interesse de sustentabilidade”, afirma Fuchs.
Em outra ocasião, navegando pelo rio Mamuru, passamos em diversas comunidades ribeirinhas, atravessando a fronteira entre Amazonas e Pará, e pude observar a placa de uma associação em várias locais. Os moradores me contaram que a associação era beneficiada por uma madeireira que atuava na região e fornecia trabalho para as pessoas, internet, barcos e outras benfeitorias às comunidades. Essa madeireira foi alvo de uma operação da Polícia Federal em 2020, em que uma grande quantidade de madeira ilegal foi apreendida. O ministro da época, Ricardo Salles, foi ao local e liberou a madeira.
De um lado, é possível perceber claramente o aparelhamento e a ineficiência dos órgãos responsáveis e, do outro, temos o silêncio, a omissão e a conivência de uma população explorada, cooptada e empobrecida, que prefere receber uns trocados no final do mês e ter sinal de internet em casa no meio da floresta, mesmo que seja a custo da destruição desta floresta.
Outro aspecto que me intriga nesta reflexão é observarmos vários indígenas, de um extremo ao outro do Amazonas, que se alinham com uma vertente política que quer “explorar os recursos da Amazônia”, desprezando dispositivos legais importantes conquistado com luta ao longo dos anos e sem considerar os impactos socioambientais a médio e longo prazo. Percebemos que muitos desconhecem o complexo jogo de interesses político-econômicos que interferem nessa questão. Dessa forma, negligencia-se a importante responsabilidade de cuidar, zelar e respeitar o jardim criado por Deus.
Contribuindo com nossa reflexão, o teólogo Timóteo Carriker argumenta que essa perspectiva meio romântica da contribuição indígena decorre de uma visão, tanto da academia quanto da mídia, que ainda segue a ideia ultrapassada do “bom selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau. Ele acrescenta que essa perspectiva já foi abandonada por antropólogos fora do Brasil, mas que, estranhamente, grande parte da antropologia brasileira ainda mantém este discurso, o que influencia a mídia e fomenta um discurso acrítico. Carriker conclui: “Obviamente, a teologia indígena tem o seu lugar na discussão teológica como qualquer teologia étnica tem. Acredito que temos até de privilegiar qualquer perspectiva antes e ainda marginalizada, mas não romantizar ou, pior, elevá-la ao absoluto”.
O que pretendo apontar com tudo isso? Minhas colocações se dão a partir da observação da realidade e dos fatos, bem como da vivência e conversas com ribeirinhos e indígenas. Embora não nos permitam chegar a conclusões, obviamente, pois não podemos generalizar um imenso universo tendo como referência este pequeno recorte da Amazônia enquadrado pelas minhas lentes, penso que podem apontar para questões importantes que necessitam de pesquisas e discussões mais aprofundadas.
Essa percepção mais crítica e profunda que sugiro, evita que deslizemos no erro de alimentarmos visões ingênuas e discursos enviesados acerca da relação dos povos tradicionais com o meio ambiente, sem considerar as complexas transformações e as relações de interesses em seus mais diversos aspectos sociais, culturais e econômicos.
Numa perspectiva cristã, Gerson Guaita aponta caminhos para aprofundar a reflexão: “Já passei por diversas comunidades ribeirinhas e vejo pessoas completamente dedicadas ao cuidado ambiental e outras agindo na ilegalidade, com mentalidade exploratória. Acredito que a cosmovisão cristã nos ajuda a entender melhor esse contexto. Sendo população tradicional ou não, todos somos seres que precisamos nos reconectar com Deus, com o próximo e com a criação”.
Faço coro com Gerson e defendo que se queremos de fato a Amazônia em pé, o jardim de Deus guardado e cuidado, precisamos elaborar um olhar mais cuidadoso e criterioso que nos livre de repetir discursos prontos e acríticos, propagados pela academia, mídia e influencers autodeclarados indígenas, muitos dos quais nunca se banharam nos rios e nunca tocaram os pés no chão, onde vivem os povos aos quais afirmam pertencer.
Saiba mais:
» Mudanças climáticas e as tragédias: qual o papel da igreja?, live de Diálogos de Esperança
» Ética ambiental: pensando como uma montana
» Jesus e a Terra: A ética ambiental nos Evangelhos, James Jones
» E-book Teologia Bíblica da Criação, Timóteo Carriker
» Assim na Terra como no Céu - Experiências socioambientais na igreja local, Gínia César Bontempo, org.
» O que a igreja pode fazer diante das tragédias ambientais?
Por Phelipe Reis
De uns tempos para cá, tenho ouvido com muita frequência a afirmação de que os povos tradicionais, como os indígenas e os ribeirinhos, protegem seus territórios e cuidam do meio ambiente. Tal afirmação reverberada com certo exagero, tem gerado um desconforto em mim, diante de algumas observações que faço em minhas viagens pelo Amazonas.
Sendo natural do interior do Amazonas e vivendo aqui há trinta anos, tenho tido o privilégio de conhecer rios e comunidades na região do baixo Amazonas. Nos últimos quatro anos, tenho viajado com bastante frequência pelos rios Uaicurapá, Mamuru, Tracajá e pelos rios Andirá e Marau, dentro da Terra Indígena Andirá-Marau, onde vive o povo Sateré-Mawé, cuja população chega a cerca de 10 mil pessoas.
Certa vez, numa viagem pelo rio Marau, após horas de navegação de barco e rabeta, chegamos a uma comunidade Sateré muito distante. Me chamou a atenção a grande quantidade de lixo plástico espalhada pela aldeia – eram embalagens de salgadinhos e bolachas, produtos de higiente e limpeza, balas e doces em geral. Isso deve-se, naturalmente, a uma mudança sociocultural de anos, causada, em parte, pela influência do estilo de vida urbano importado pelos Sateré – processo que se reflete nos hábitos alimentares das pessoas.
Hoje, por exemplo, produtos naturais, carne de caça e pesca, perderam espaço para itens industrializados, como salsicha, calabresa, carne em conserva enlatada, etc., o que aumenta a produção de resíduos plásticos em locais em que não há nenhum sistema de gestão ou coleta desse material. O destino deles será o fogo, o solo ou a água, no processo sazonal de cheia e vazante do rio. Esse mesmo cenário se repete em praticamente todas as outras comunidades indígenas, pelo rio Andirá e Marau.
Gerson Guaita, servidor do ICMBIO em Santarém, PA, descreve observações semelhantes quanto às mudanças nos costumes das comunidades tradicionais: “Anteriormente, a alimentação se baseava exclusivamente em produtos da floresta, nada que gerasse resíduo não orgânico. Hoje não, é grande o consumo de enlatados e produtos embalados e o destino das embalagens acaba sendo o mesmo de antes, porém estes impactam muito mais o ambiente”.
A bióloga e mobilizadora do movimento ambientalista cristão Renovar Nosso Mundo, Raquel Arouca, comenta algo na mesma direção: “Nas minhas visitas ao Amazonas, também vi muito lixo nas comunidades, mas observei que eles não tinham muita percepção do [problema] do lixo, nem da troca de estilo de vida que está ocorrendo e nenhuma percepção das consequências daquela nova realidade”. Por outro lado, Arouca é enfática ao afirmar que “a presença dos povos originários é sinônimo de floresta em pé”.
Dialogando com a reflexão aqui posta, o teólogo Werner Fuchs diz que esse padrão de consumo urbano baseado em produtos industrializados, muitas vezes, é projetado para populações ribeirinhas e indígenas como algo chique. “É uma forma de colonizar as mentes e alterar costumes. Por trás está o interesse comercial, que rejeita ou omite qualquer interesse de sustentabilidade”, afirma Fuchs.
Em outra ocasião, navegando pelo rio Mamuru, passamos em diversas comunidades ribeirinhas, atravessando a fronteira entre Amazonas e Pará, e pude observar a placa de uma associação em várias locais. Os moradores me contaram que a associação era beneficiada por uma madeireira que atuava na região e fornecia trabalho para as pessoas, internet, barcos e outras benfeitorias às comunidades. Essa madeireira foi alvo de uma operação da Polícia Federal em 2020, em que uma grande quantidade de madeira ilegal foi apreendida. O ministro da época, Ricardo Salles, foi ao local e liberou a madeira.
De um lado, é possível perceber claramente o aparelhamento e a ineficiência dos órgãos responsáveis e, do outro, temos o silêncio, a omissão e a conivência de uma população explorada, cooptada e empobrecida, que prefere receber uns trocados no final do mês e ter sinal de internet em casa no meio da floresta, mesmo que seja a custo da destruição desta floresta.
Outro aspecto que me intriga nesta reflexão é observarmos vários indígenas, de um extremo ao outro do Amazonas, que se alinham com uma vertente política que quer “explorar os recursos da Amazônia”, desprezando dispositivos legais importantes conquistado com luta ao longo dos anos e sem considerar os impactos socioambientais a médio e longo prazo. Percebemos que muitos desconhecem o complexo jogo de interesses político-econômicos que interferem nessa questão. Dessa forma, negligencia-se a importante responsabilidade de cuidar, zelar e respeitar o jardim criado por Deus.
Contribuindo com nossa reflexão, o teólogo Timóteo Carriker argumenta que essa perspectiva meio romântica da contribuição indígena decorre de uma visão, tanto da academia quanto da mídia, que ainda segue a ideia ultrapassada do “bom selvagem”, de Jean-Jacques Rousseau. Ele acrescenta que essa perspectiva já foi abandonada por antropólogos fora do Brasil, mas que, estranhamente, grande parte da antropologia brasileira ainda mantém este discurso, o que influencia a mídia e fomenta um discurso acrítico. Carriker conclui: “Obviamente, a teologia indígena tem o seu lugar na discussão teológica como qualquer teologia étnica tem. Acredito que temos até de privilegiar qualquer perspectiva antes e ainda marginalizada, mas não romantizar ou, pior, elevá-la ao absoluto”.
O que pretendo apontar com tudo isso? Minhas colocações se dão a partir da observação da realidade e dos fatos, bem como da vivência e conversas com ribeirinhos e indígenas. Embora não nos permitam chegar a conclusões, obviamente, pois não podemos generalizar um imenso universo tendo como referência este pequeno recorte da Amazônia enquadrado pelas minhas lentes, penso que podem apontar para questões importantes que necessitam de pesquisas e discussões mais aprofundadas.
Essa percepção mais crítica e profunda que sugiro, evita que deslizemos no erro de alimentarmos visões ingênuas e discursos enviesados acerca da relação dos povos tradicionais com o meio ambiente, sem considerar as complexas transformações e as relações de interesses em seus mais diversos aspectos sociais, culturais e econômicos.
Numa perspectiva cristã, Gerson Guaita aponta caminhos para aprofundar a reflexão: “Já passei por diversas comunidades ribeirinhas e vejo pessoas completamente dedicadas ao cuidado ambiental e outras agindo na ilegalidade, com mentalidade exploratória. Acredito que a cosmovisão cristã nos ajuda a entender melhor esse contexto. Sendo população tradicional ou não, todos somos seres que precisamos nos reconectar com Deus, com o próximo e com a criação”.
Faço coro com Gerson e defendo que se queremos de fato a Amazônia em pé, o jardim de Deus guardado e cuidado, precisamos elaborar um olhar mais cuidadoso e criterioso que nos livre de repetir discursos prontos e acríticos, propagados pela academia, mídia e influencers autodeclarados indígenas, muitos dos quais nunca se banharam nos rios e nunca tocaram os pés no chão, onde vivem os povos aos quais afirmam pertencer.
Saiba mais:
» Mudanças climáticas e as tragédias: qual o papel da igreja?, live de Diálogos de Esperança
» Ética ambiental: pensando como uma montana
» Jesus e a Terra: A ética ambiental nos Evangelhos, James Jones
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» Assim na Terra como no Céu - Experiências socioambientais na igreja local, Gínia César Bontempo, org.
» O que a igreja pode fazer diante das tragédias ambientais?
É natural do Amazonas, casado com Luíze e pai da Elis e do Joaquim. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e mestre em Missiologia no Centro Evangélico de Missões (CEM). É missionário e colaborador do Portal Ultimato.
- Textos publicados: 190 [ver]
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Ricardo Barbosa