Opinião
- 21 de outubro de 2016
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Imaginação e autenticidade: C. S. Lewis e as ferramentas da fantasia
"Era uma vez duas meninas e dois meninos: Susana, Lúcia, Pedro e Edmundo." Com esta frase, meu mundo se transformou. Meu pai havia reunido todos seus filhos para a leitura do primeiro capítulo de um livro que acabara de receber dos Estados Unidos. Ele leu em voz alta, criando vozes para cada personagem, reservando o vozeirão mais grave e sábio para o seu predileto, Aslam.
A imaginação de C. S. Lewis me transportou para fora da minha casa em Maringá para um outro país e outra dimensão. Como filho de pais que prezavam a boa literatura e valorizavam o papel da fantasia na vida de uma criança, sempre tive a impressão de habitar um mundo maior que nossa pequena cidade no interior do Paraná.
Lewis entendeu que a imaginação do escritor só surte o efeito desejado se ela encontra correspondência na capacidade do leitor em evocar imagens e experiências alheias a partir dos estímulos apresentados no texto. Respeitou a inteligência e os limites de quem o lia. Entendeu que a imaginação começa com o que todos nós temos em comum e avança pelos cenários e narrativas cada vez mais distantes e improváveis. Sabia que podia contar com a cumplicidade do leitor desde que as sequências e as emoções possuíssem o tilintar da autenticidade. Como leitores, conseguimos entender a maldade da Feiticeira Branca porque também já fizemos coisas erradas. Entendemos o pavor da Lúcia porque um dia também já sentimos medo. Enxergamos nos personagens as grandes virtudes que nos reconfortam, e percebemos as manifestações delas mesmo em espíritos, monstros ou animais que ganham vida nas páginas dos contos e romances.
Leitor voraz de inúmeros gêneros, Lewis aprendeu cedo a admirar a imaginação como veículo para revelar verdades. O livro A biblioteca de C. S. Lewis (Mundo Cristão, 2006), disseca as diversas influências literárias que moldaram seu pensamento. Entre os dez livros favoritos de Lewis, identificados pelo próprio autor em entrevista concedida em 1962 para a revista The Christian Century, figuram dois romances (Phantastes, de George MacDonald — um livro que lhe "batizou a imaginação" — e Descida ao inferno, de Charles Williams), um poema épico ficcional (A eneida, de Virgílio) e um discurso filosófico baseado num diálogo fictício (A consolação da filosofia, de Boécio). Até mesmo entre seus escritores prediletos de não-ficção, há diversos que utilizavam as linguagens figurativas da imaginação para ilustrar ou defender seus postulados ou para reduzir a resistência contra novas ideias, submetendo-as ao campo das experiências imaginadas e compartilhadas.
Os elementos de ficção estão presentes em quase tudo que C. S. Lewis escreveu. Mesmo nas suas obras de não-ficção, o escritor apela frequentemente para a imaginação do leitor. Ao trazer o leitor para algum campo imaginário com a finalidade de lidar com algum dilema ou paradoxo, Lewis sabe que a imaginação desarma o leitor de seus preconceitos e estabelece um terreno plano onde a troca de ideias e experiências é submetida às verdades partilhadas da existência. Assim, por exemplo, em O problema do sofrimento ele nos ajuda a entender a presença constante da tribulação na vida do cristão: "Se Ele embainha a espada por apenas um segundo, eu já começo a me comportar como um cachorrinho que sai do detestado banho — fico me chacoalhando para me secar e saio correndo novamente para o conforto da sujeira dum monte de esterco ou pelo menos da terra fresca do jardim. E por isto as tribulações não podem cessar..."
Quando Lewis convoca o leitor para embarcar num pequeno exercício imaginativo como este, ele utiliza um recurso poderoso da narrativa. E quando naturalmente abrimos um sorriso de reconhecimento ou de memória de infância, somos mais facilmente persuadidos. Tanto nos seus romances quanto nos seus ensaios mais acadêmicos, Lewis nunca abriu mão de se divertir com os seus leitores. E nunca deixou de usar a imaginação como caminho para chegar à alma para que esta voltasse, mudada, à realidade.
> Mark Carpenter é diretor-presidente da Editora Mundo Cristão e mestre em letras modernas pela USP.
Leia mais:
- O Apocalipse e a imaginação em Eugene Peterson
- Experimente improvisar: com o que podemos comparar o Reino de Deus?
- Meta-História e a imaginação teológica
Leituras Diárias das Crônicas de Nárnia – Um Ano com Aslam
A imaginação de C. S. Lewis me transportou para fora da minha casa em Maringá para um outro país e outra dimensão. Como filho de pais que prezavam a boa literatura e valorizavam o papel da fantasia na vida de uma criança, sempre tive a impressão de habitar um mundo maior que nossa pequena cidade no interior do Paraná.
Lewis entendeu que a imaginação do escritor só surte o efeito desejado se ela encontra correspondência na capacidade do leitor em evocar imagens e experiências alheias a partir dos estímulos apresentados no texto. Respeitou a inteligência e os limites de quem o lia. Entendeu que a imaginação começa com o que todos nós temos em comum e avança pelos cenários e narrativas cada vez mais distantes e improváveis. Sabia que podia contar com a cumplicidade do leitor desde que as sequências e as emoções possuíssem o tilintar da autenticidade. Como leitores, conseguimos entender a maldade da Feiticeira Branca porque também já fizemos coisas erradas. Entendemos o pavor da Lúcia porque um dia também já sentimos medo. Enxergamos nos personagens as grandes virtudes que nos reconfortam, e percebemos as manifestações delas mesmo em espíritos, monstros ou animais que ganham vida nas páginas dos contos e romances.
Leitor voraz de inúmeros gêneros, Lewis aprendeu cedo a admirar a imaginação como veículo para revelar verdades. O livro A biblioteca de C. S. Lewis (Mundo Cristão, 2006), disseca as diversas influências literárias que moldaram seu pensamento. Entre os dez livros favoritos de Lewis, identificados pelo próprio autor em entrevista concedida em 1962 para a revista The Christian Century, figuram dois romances (Phantastes, de George MacDonald — um livro que lhe "batizou a imaginação" — e Descida ao inferno, de Charles Williams), um poema épico ficcional (A eneida, de Virgílio) e um discurso filosófico baseado num diálogo fictício (A consolação da filosofia, de Boécio). Até mesmo entre seus escritores prediletos de não-ficção, há diversos que utilizavam as linguagens figurativas da imaginação para ilustrar ou defender seus postulados ou para reduzir a resistência contra novas ideias, submetendo-as ao campo das experiências imaginadas e compartilhadas.
Os elementos de ficção estão presentes em quase tudo que C. S. Lewis escreveu. Mesmo nas suas obras de não-ficção, o escritor apela frequentemente para a imaginação do leitor. Ao trazer o leitor para algum campo imaginário com a finalidade de lidar com algum dilema ou paradoxo, Lewis sabe que a imaginação desarma o leitor de seus preconceitos e estabelece um terreno plano onde a troca de ideias e experiências é submetida às verdades partilhadas da existência. Assim, por exemplo, em O problema do sofrimento ele nos ajuda a entender a presença constante da tribulação na vida do cristão: "Se Ele embainha a espada por apenas um segundo, eu já começo a me comportar como um cachorrinho que sai do detestado banho — fico me chacoalhando para me secar e saio correndo novamente para o conforto da sujeira dum monte de esterco ou pelo menos da terra fresca do jardim. E por isto as tribulações não podem cessar..."
Quando Lewis convoca o leitor para embarcar num pequeno exercício imaginativo como este, ele utiliza um recurso poderoso da narrativa. E quando naturalmente abrimos um sorriso de reconhecimento ou de memória de infância, somos mais facilmente persuadidos. Tanto nos seus romances quanto nos seus ensaios mais acadêmicos, Lewis nunca abriu mão de se divertir com os seus leitores. E nunca deixou de usar a imaginação como caminho para chegar à alma para que esta voltasse, mudada, à realidade.
> Mark Carpenter é diretor-presidente da Editora Mundo Cristão e mestre em letras modernas pela USP.
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