Opinião
- 15 de agosto de 2014
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Igreja, drogas e descriminalização: é possível pensar o possível?
Quando o assunto é dependência química, é inegável o papel realmente redentor que as igrejas exercem sobre esse tema. E não é de hoje que o tema tomou a mídia e o debate nacional, mas desde décadas. As pequenas igrejas pentecostais, sempre lá, presentes nas favelas e periferias das cidades, são porta de alternativa de mudança de vida para dependentes e jovens integrantes do “exército” do tráfico.
No entanto, quem quer que tente ultrapassar a fronteira da ação social direta, do convite à conversão, pelo evangelismo, e intervir no debate por uma mudança na política pública e legal sobre drogas no Brasil, corre um sério risco de se frustrar com a resistência, com a força de paradigmas comprovadamente ineficazes e excludentes, e com a hostilidade que lhe espera. Neste desafio está pensar, por exemplo, na descriminalização do usuário de drogas como alternativa. Cada vez mais, quem se aproxima da causa dos direitos humanos e do tema da violência, se convence de que a criminalização do usuário (ou a criminalização de um grupo social específico que usa) não nos deixa nenhum outro legado além de penitenciárias superlotadas e uma juventude de maioria negra e pobre de vida brutalmente interrompida. Parece que só falta a Igreja refletir sobre isso.
Talvez devêssemos reconhecer, primeiramente, o papel da estigmatização, como fundamento da criminalização de territórios e corpos. É o estigma que sustenta, em certa medida, uma compreensão de onde (e principalmente contra quem) a repressão deve ser intensificada. Vemos, por exemplo, como os evangelhos nos mostram Samaria como um lugar estigmatizado e, consequentemente, criminalizado. A surpresa dos discípulos, no capítulo 4 do Evangelho de João, em verem Jesus conversando com uma mulher, não era apenas por se tratar de uma mulher, mas por, além disso, ela ser uma samaritana. No capítulo 9 de Lucas é também pelo estigma que Tiago e João esperam que Jesus apenas autorize, para que eles possam orar fazendo descer fogo do céu para consumir os samaritanos que vetam a passagem de Jesus.
Assim como esta Samaria dos evangelhos criminalizada nos aparece, também se criminaliza as “Samarias contemporâneas”, que carregam sobre si o peso da desconfiança, legitimam a repressão, onde o proibido é violentamente reprimido. Só nesses espaços, a chamada “guerra às drogas” é empreendida de forma ostensiva e com força letal, e só nesses espaços, ser morto como suspeito de envolvimento com o tráfico, equivale a ser morto como traficante.
Outro aspecto a ser levado em consideração é a repressão, ou a “Guerra as Drogas”, como paradigma de enfrentamento do problema. Pouco importa se a política que utilizamos hoje não tenha sido fruto de nossa própria construção, mas sim uma imposição do governo dos Estados Unidos no início da década de 70, para resolver um problema interno seu. Pouco importa se em 40 anos desta política sendo a principal e mais difundida, o consumo sequer tenha diminuído ou o tráfico tenha perdido sua força. Ao contrário, o tráfico de drogas segue sendo a atividade ilegal mais rentável do mundo, e os verdadeiros barões da droga seguem milionários, longe dos morros e das favelas.
“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus...”. É totalmente oportuna lembrar essa recomendação do Cristo aos discípulos no capítulo 5 do Evangelho de Mateus. Repare que escribas e fariseus não são injustos, mas criam no modelo repressor e punitivo como equilibrador das tensões e das desigualdades sociais. É como coibir o adultério pelo medo do apedrejamento. Mas o adultério tem um universo de “disparadores” subjetivos, que o apedrejamento como punição se torna um risco totalmente razoável de se correr (uma mulher que trai, o faz apenas por aventura? Por carência? Apanhava? Era rejeitada? Ameaçada? Foi traída? Violentada? Necessidade financeira? Uma dívida?). Há tantas razões pelas quais um homem ou uma mulher adulteram quanto alguém usa drogas ou um jovem se rende ao tráfico, e a pergunta é se a repressão e a política de “guerra às drogas” dão conta desse drama que é atravessado pelo social.
Talvez estejamos num momento crucial. Não há mais para onde nossa política sobre o assunto possa ir, ancorada na repressão pura e simples. Algo deve ser pensado para nos permitir avançar. Aos que são inspirados pelo amor, pela justiça e pela misericórdia, caberia alguma contribuição que nos permita ter uma política mais humana e eficaz.
• Ronilso Pacheco congrega na Comunidade Cristã S8 e estuda teologia na PUC do Rio de Janeiro. Integra a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS), o Congresso Nacional Underground Cristão (CNUC) e a Rede FALE, e é interlocutor para as igrejas na ONG Viva Rio.
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Talvez devêssemos reconhecer, primeiramente, o papel da estigmatização, como fundamento da criminalização de territórios e corpos. É o estigma que sustenta, em certa medida, uma compreensão de onde (e principalmente contra quem) a repressão deve ser intensificada. Vemos, por exemplo, como os evangelhos nos mostram Samaria como um lugar estigmatizado e, consequentemente, criminalizado. A surpresa dos discípulos, no capítulo 4 do Evangelho de João, em verem Jesus conversando com uma mulher, não era apenas por se tratar de uma mulher, mas por, além disso, ela ser uma samaritana. No capítulo 9 de Lucas é também pelo estigma que Tiago e João esperam que Jesus apenas autorize, para que eles possam orar fazendo descer fogo do céu para consumir os samaritanos que vetam a passagem de Jesus.
Assim como esta Samaria dos evangelhos criminalizada nos aparece, também se criminaliza as “Samarias contemporâneas”, que carregam sobre si o peso da desconfiança, legitimam a repressão, onde o proibido é violentamente reprimido. Só nesses espaços, a chamada “guerra às drogas” é empreendida de forma ostensiva e com força letal, e só nesses espaços, ser morto como suspeito de envolvimento com o tráfico, equivale a ser morto como traficante.
Outro aspecto a ser levado em consideração é a repressão, ou a “Guerra as Drogas”, como paradigma de enfrentamento do problema. Pouco importa se a política que utilizamos hoje não tenha sido fruto de nossa própria construção, mas sim uma imposição do governo dos Estados Unidos no início da década de 70, para resolver um problema interno seu. Pouco importa se em 40 anos desta política sendo a principal e mais difundida, o consumo sequer tenha diminuído ou o tráfico tenha perdido sua força. Ao contrário, o tráfico de drogas segue sendo a atividade ilegal mais rentável do mundo, e os verdadeiros barões da droga seguem milionários, longe dos morros e das favelas.
“Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus...”. É totalmente oportuna lembrar essa recomendação do Cristo aos discípulos no capítulo 5 do Evangelho de Mateus. Repare que escribas e fariseus não são injustos, mas criam no modelo repressor e punitivo como equilibrador das tensões e das desigualdades sociais. É como coibir o adultério pelo medo do apedrejamento. Mas o adultério tem um universo de “disparadores” subjetivos, que o apedrejamento como punição se torna um risco totalmente razoável de se correr (uma mulher que trai, o faz apenas por aventura? Por carência? Apanhava? Era rejeitada? Ameaçada? Foi traída? Violentada? Necessidade financeira? Uma dívida?). Há tantas razões pelas quais um homem ou uma mulher adulteram quanto alguém usa drogas ou um jovem se rende ao tráfico, e a pergunta é se a repressão e a política de “guerra às drogas” dão conta desse drama que é atravessado pelo social.
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• Ronilso Pacheco congrega na Comunidade Cristã S8 e estuda teologia na PUC do Rio de Janeiro. Integra a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS), o Congresso Nacional Underground Cristão (CNUC) e a Rede FALE, e é interlocutor para as igrejas na ONG Viva Rio.
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